Texto sob autoria de: André Luis Forti Scherer

André Luis Forti Scherer

Economista, Técnico da FEE

Significados e impasses do acordo Mercosul-União Europeia

A geoeconomia tem-se modificado profundamente nesta segunda década do século XXI. Movimentos tectônicos, nem sempre perceptíveis nas superfícies, vêm pouco a pouco abalando os pilares da antiga “Nova Ordem Mundial” da década de 90 do século passado. Originados na crise financeira mundial que atingiu, sem deslocar definitivamente, a hegemonia das finanças no capitalismo contemporâneo, esses movimentos propiciaram o surgimento de novas forças na política em escala global, muitas delas questionadoras da antiga ordem por um viés ainda mais conservador e autoritário. Na esfera internacional, esses movimentos ainda se traduzem em esboços do questionamento tanto do multilateralismo quanto da busca pela liberalização das trocas e dos investimentos. O protecionismo é, hoje, sentimento difuso que paira sobre as discussões envolvendo o comércio internacional, muitas vezes brandido por Estados Unidos e Europa como proposta ou ameaça, em oposição à postura liberalizante que orientou a conduta dos países desenvolvidos até a crise financeira global.

Nesse contexto, não deixa de ser surpreendente a retomada de negociações para a conclusão de um acordo há muito em tela entre o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a União Europeia (UE), o qual tomou forma, efetivamente, em maio de 2016. Nesse momento, houve troca de ofertas envolvendo o comércio de bens e de serviços, investimentos e compras governamentais entre os dois blocos, substituindo as tratativas anteriores datadas de 2004 e suspensas em 2006.

Pela análise do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)1, com base em dados obtidos junto à Secretaria de Comércio da Argentina, enquanto o Mercosul simplificou a estrutura de sua oferta, a União Europeia propôs em sentido oposto, aumentando o número de exclusões em relação à oferta anterior. É importante notar que a amplitude das ofertas é condicionada de modo tácito pela UE, a partir de vantagens inerentes à maior diversidade da pauta comercial, a qual possibilita concomitantemente a exclusão de produtos de maior sensibilidade aos produtores locais.

Em complemento à troca de ofertas, foi apresentado um documento de condicionalidades, apontando os requisitos para que as ofertas efetivas tenham validade. Para o Mercosul, é imprescindível que o direito de importação do qual partam os cronogramas de desoneração contemple não apenas as tarifas ad valorem e específicas para cada produto, mas também suas combinações, incluindo as variantes por normas técnicas e a aplicação de preços de entrada. Já a União Europeia exige que se eliminem as restrições à exportação aplicadas por alguns países-membros do bloco do sul, em especial a Argentina.

Na oferta de 2016, a proposta do Mercosul estrutura-se a partir de sete diferentes prazos para a eliminação de direitos de importação. Esses prazos estendem-se, progressivamente, por até 15 anos (Tabela 1). Houve uma ampliação da cobertura de produtos incluída na proposta, passando o total de produtos abrangidos pela negociação de 71% em 2004 para 87% em 2016, o que a torna uma oferta mais atrativa aos europeus. Essa maior cobertura explica-se pela exclusão da categoria preferência fixa (produtos sem possibilidade de redução tarifária posterior) presente em 2004. Ademais, na atual oferta, a redução tarifária proposta é linear em 15 anos para produtos correspondentes a 47,6% do valor médio das importações do bloco oriundas da UE entre 2010 e 2012, enquanto, na oferta anterior, a redução tarifária se concentrava nos anos finais dos 17 anos de sua extensão.

Quanto aos serviços, a oferta do Mercosul inclui, como propostas relativas ao conjunto dos estados- membros, a liberalização da compra de terras em áreas de fronteira e propostas sobre o tratamento a ser dado aos empregados das empresas europeias. O restante das propostas na área de serviços fica ao encargo individual dos países do bloco. Na área de compras públicas, dada a inexistência de um regime comum do Mercosul, cada país fará sua própria oferta, estando abarcadas, para todo o Mercosul, apenas compras em âmbito federal, sendo que Brasil e Argentina incluem também as compras realizados por empresas estatais, o que não ocorre com Paraguai e Uruguai.

A oferta da União Europeia seguiu tendo uma estrutura complexa. Além das reduções tarifárias, estão presentes grupos de posições sujeitas a preferências fixas, cotas e preços de entrada (preços mínimos de importação impostos pela UE a determinados produtos agrícolas). Embora a cobertura dos itens ofertados para redução tarifária imediata tenha-se ampliado frente a 2004, os produtos aí incluídos já têm, em grande parte, isenção tarifária. Outra categoria controversa diz respeito às exclusões. Seu número cresceu frente à oferta de 2004 e inclui produtos sensíveis, como carne de gado, etanol, óleo de girassol, fumo e alguns tipos de vinhos.

Em serviços, a oferta europeia separa os serviços comerciais daqueles que envolvem a presença de técnicos e de outros funcionários, mostrando a preocupação recente com o tema das migrações, embora demonstre abertura à inclusão de novos serviços com o tempo. No que tange às compras públicas, a oferta da UE permite a participação de empresas do Mercosul como se fossem nacionais. No entanto, permite que os países-membros imponham limitações a essa participação, tanto em obras públicas como na compra de bens e serviços pelo Estado.

As ofertas seguiram para consultas internas ao setor privado dos estados-parte em cada bloco — leia-se para a apreciação das federações empresariais em cada continente —, havendo reuniões pré-agendadas para a continuidade dessa discussão. A próxima deverá ocorrer em julho, em Bruxelas. A previsão é que o debate quanto ao texto definitivo do acordo esteja concluído até o final de 2017, com a discussão sobre as ofertas sendo encerradas em 2018.

Essa tentativa de acordo pode ser analisada quanto a suas perspectivas a partir de três eixos distintos: as idiossincrasias do Mercosul, com a instabilidade política e econômica recente que se abateu sobre o bloco, as mudanças na geoeconomia internacional, com a ascensão de Trump ao poder nos Estados Unidos, e o ponto de vista da Europa.

O Mercosul passou por grandes estremecimentos no período recente, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista político. Essa instabilidade tem, lentamente, reforçado a posição argentina. A posse de Macri na Presidência da Argentina, em dezembro de 2015, marcou uma mudança na postura do País frente ao bloco regional, eleito como sua prioridade em política externa. Nos períodos anteriores, a posição da Argentina era de dificultar as propostas mais liberais no Mercosul, especialmente quando o protagonismo era brasileiro. No entanto, havia uma preocupação em não romper com a visão externa pro trade do bloco, evitando, assim, uma maior aproximação com as propostas de estreitamento dos laços intrabloco e de fortalecimento do comércio sul-sul defendidas pela Venezuela. Sua posição era, então, marcada por certa dubiedade, o que enfraquecia o protagonismo do País.

A Argentina de Macri tem revisto suas posições antigas, aproximando-se mais da posição histórica brasileira e uruguaia. Isso permite maior acordo no bloco, situação reforçada pela suspensão da Venezuela, a qual também aumenta a pressão para que se encaminhem com celeridade questões pendentes, de modo a demonstrar que o entrave principal para o avanço se encontrava na política chavista.

O relativo entendimento estratégico existente, reforçado pela mudança na condução da política externa brasileira, tem ampliado a agenda comum entre os países-membros, com constantes reuniões bilaterais, em que pesem os problemas políticos presentes nos diversos países. Essa conjunção de fatores é que explica, do ponto de vista do Mercosul, o vigor com que foi retomado o acordo com a União Europeia. Entretanto a instabilidade política interna dos países da região e os interesses de classe contrariados pela crise econômica podem dificultar o cumprimento dos prazos previstos. A relativa timidez da proposta europeia, ela mesma condicionada pelas especificidades da política interna, é outro fator que pode dificultar o avanço rápido da proposta do ponto de vista do Mercosul.

As mudanças no Mercosul ocorrem em um contexto de turbulência internacional. A condução da política externa do Governo Trump é outro fator que provoca mudanças na cena das negociações internacionais. Trata-se de uma modificação muito mais “cultural” do que efetiva, mas que vem perturbando a agenda internacional de um modo inédito nas últimas décadas e, em especial, modificando a natureza das relações entre Europa e EUA.

Trump, eleito com discurso protecionista vago, tem tido muitas dificuldades em instrumentalizar seu ideário na prática. Os recentes recuos em propostas, que colocariam em xeque o North America Free Trade Agreement (NAFTA), e a falta de ímpeto para colocar barreiras à entrada de produtos chineses mostram um Trump atento ao público interno e à classe empresarial dos Estados Unidos. No entanto, a mesma cautela na conduta norte-americana não foi vista em acordos ainda em discussão ou em estágio inicial de implementação. A retirada dos EUA das negociações do Acordo Trans-Pacífico abriu imensa avenida para a consolidação dos interesses chineses na Ásia, com reflexos sobre a estratégia da Europa para a região. Também a retirada norte-americana do Acordo de Paris é outro elemento que abalou a confiança europeia na capacidade dos EUA de liderar a agenda internacional. A navegação terá de ser feita com maior grau de experimentação, já que o capitão parece ter-se aposentado sem deixar ninguém em seu lugar.

Para a União Europeia, a hesitação norte-americana em dar sequência aos acordos amplamente debatidos em anos anteriores tem sido vista com preocupação, mas também como fonte de oportunidades para a ampliação de sua presença comercial e política. A dubiedade da política norte-americana abre, por exemplo, caminho para que a Europa retome interesse no acordo com o Mercosul, em um momento em que a mudança na política externa brasileira parecia se inclinar em direção à promoção de um acordo preferencial com os Estados Unidos.

A União Europeia também tem seus próprios fantasmas políticos a enfrentar. A eleição de Macron na França deu novo alento ao bloco, abalado pelo resultado do plebiscito britânico que levou ao Brexit. Os constantes ataques terroristas transformaram o combate à imigração em tema inescapável na agenda interna da política dos estados-membros. O nacionalismo extremado, apesar de derrotado na França em segundo turno, ganhou força política e não pode mais ser ignorado. Isso tem limitado o potencial da agenda externa do bloco, ao mesmo tempo em que existem pressões para que as populações locais e nacionais venham a ser ouvidas nas decisões da União Europeia. Como exemplo, a Comissão Europeia decidiu, em 16 de maio deste ano, que os acordos comerciais mais amplos devem ser ratificados pelos 33 parlamentos nacionais e regionais dos 28 países que compõem o bloco. Caso não seja modificada, essa decisão aponta para um prazo entre cinco e 10 anos para a entrada em vigor de um acordo amplo como esse entre União Europeia e Mercosul, em caso de não ser obstaculizado em definitivo por nenhum desses parlamentos.

Visto de um ponto de vista mais amplo, o que parece estar em jogo nesses impasses é a crescente falta de legitimidade social dos acordos meramente comerciais. Essas tratativas sempre se mostraram mero arcabouço institucional para legitimação dos interesses das maiores empresas em áreas como comércio, investimentos e proteção à propriedade intelectual e tecnológica, com pequeno impacto positivo perceptível para os cidadãos dos países envolvidos. Acordos que envolvam efetivamente as populações são cada vez mais necessários para a legitimação política dessas decisões em um mundo pleno de informações, de modo a permitir barrar a volta de um nacionalismo nostálgico. Nesse sentido, embora os esforços de retomada de entendimentos devam ser saudados, as propostas de acordo comercial entre Mercosul e União Europeia podem ser classificadas como um anacronismo nesta segunda década do século XXI.


1 A descrição das ofertas trocadas entre Mercosul e UE que se segue está baseada em: BANCO INTERAMERICANO DE DESARROLLO (BID). Instituto para la Integración de América Latina y el Caribe (INTAL). Sector de Integración y Comercio (INT). Los Futuros del Mercosur: nuevos rumbos de la integración regional. 2017. (Nota Técnica n. IDB-TN-1263). Disponível em: <https://publications.iadb.org/handle/11319/8172?locale-attribute=es&>. Acesso em: 15 maio 2017.

Dilemas da política monetária nos EUA

Os rumos da política monetária dos EUA têm implicações financeiras e econômicas tão abrangentes que o futuro das taxas de juros norte-americanas é conhecido como “a questão de um trilhão de dólares” entre os analistas e especuladores financeiros. Ela ganha maior relevância — e se torna mais difícil de responder — quando se sabe que os caminhos percorridos após a crise de 2007-08 pelo Federal Reserve (Fed), o banco central do País, levaram a uma situação inédita de taxas de juros muito próximas a zero, situação comum aos demais países desenvolvidos. E, ainda menos convencional, isso ocorre em um contexto econômico global de crescimento relativamente baixo e com recorrentes pressões deflacionistas, acrescentando elementos que tornam imprevisível o timing da retomada da situação pré-crise, de taxas de juros reais positivas. Não se trata de mero acaso que as expressões “estagnação secular” e “novo normal” estejam tão em voga no jargão econômico criado após 2008, denotando a ideia de um ciclo longo, de baixo crescimento, no qual as políticas monetária e fiscal têm capacidade de amenizar, mas não de resolver, o baixo crescimento.

Os condicionantes da atuação do Fed, hoje, ultrapassam os limites dos EUA. Embora desde que o dólar se tornou efetivamente a moeda de reserva internacional inconteste, ou seja, a partir dos anos 50 e, ainda mais, a partir da liberalização financeira dos anos 70, as decisões de política monetária nos Estados Unidos afetem decisivamente os demais países, é na atual década, após a crise financeira de 2007-08, que o Fed assume que a situação financeira em outros países pode influenciar de forma importante suas decisões. O combate aos efeitos da crise financeira ampliou o papel do Fed na conformação de uma rede de bancos centrais pelo mundo todo, a partir de uma sucessão de acordos de ajuda mútua em caso de crises. Além disso, pode-se inferir que, tendo sua atuação posta em xeque no episódio da quebra do banco Lehman Brothers em 2008, que deflagrou uma crise no sistema financeiro internacional, o Fed tenha adotado elementos de cautela quanto aos efeitos inesperados de suas decisões.

Em um momento em que a solidez do sistema financeiro, sobretudo na Europa e no Japão, não está consolidada e em que diversos países apresentam taxas de juros nominais negativas, o Fed parece não desejar adotar a tradicional postura norte-americana de tomar suas decisões de forma relativamente independente e deixar que o mundo reaja de forma adaptativa. Embora seja reconhecido que uma elevação nas taxas de juros nos EUA fortaleceria ainda mais o dólar, com consequências para o crescimento que ultrapassam em muito as fronteiras dos Estados Unidos, não seria esse o elemento externo crucial na mira do Fed, mas sim aquilo que se sabe que irá ocorrer e cujos efeitos são desconhecidos (known unknowns), ou seja, as consequências sistêmicas radicalmente incertas sobre os mercados financeiros interconectados que uma elevação das taxas de juros poderia ocasionar a partir das mudanças nos preços dos ativos que certamente ocorreriam. Cabe aqui destacar que a manutenção de taxas de juros muito baixas por razoável período de tempo tem levado a mudanças no portfólio das carteiras de aplicações financeiras em direção a ativos de maior risco e formado novas bolhas — como nos mercados de ações e em alguns mercados de imóveis —, o que seria impactado em caso de uma rápida retomada de juros reais positivos pelos EUA, com consequências sistêmicas desconhecidas. Também a possiblidade de redução do ritmo de crescimento da economia mundial e dos efeitos aí encadeados parece ter sido levada em conta, ao menos no episódio do início de 2016 que apontava uma desaceleração do ritmo de crescimento chinês, o qual influiu nas decisões norte-americanas quanto à elevação dos juros. Ao que parece, prudentemente, o Fed não está disposto a correr o risco de ser apontado como partícipe de um novo episódio de crise com consequências mundiais e tem considerado também as consequências externas de sua atuação em suas decisões.

Entretanto, é sabido que a situação interna dos EUA ainda é o elemento principal na tomada de decisões pelo Fed. E, aqui, as informações disponíveis revelam um quadro contraditório capaz de afetar o ritmo da normalização das taxas de juros, em tela desde 2013. É necessário relembrar que o Fed, no combate aos efeitos da crise financeira, aumentou sua carteira de ativos de US$ 1 trilhão para US$ 4 trilhões entre 2007 e 2014, com adoção de sucessivas rodadas de aquisição de títulos públicos e privados, com o objetivo principal de dar liquidez a mercados específicos e reduzir as taxas de juros de mercado.

Essa política inédita de expansão monetária, replicada por outros bancos centrais de países desenvolvidos e, com especificidades e maior agressividade, pelo People’s Bank of China (PBOC), teve resultados controversos até o momento. Sendo uma política com objetivos primordialmente financeiros, essa, não por acaso, teve seus melhores resultados justamente nos mercados diretamente relacionados às finanças. Assim, foi inequivocamente bem-sucedida na tentativa de estabilizar a crise financeira e dar uma aparência de normalidade aos diversos mercados, apesar dos efeitos já mencionados sobre os portfólios de ativos. No entanto, foi incapaz de promover um ritmo crescente de avanço na atividade econômica, com um crescimento abaixo das expectativas de mercado na primeira metade de 2016. E, para piorar o quebra-cabeça envolvendo as decisões de política monetária pelo Fed, a inflação não atinge a meta proposta pela instituição de 2% ao ano, enquanto o desemprego se encontra em um nível relativamente baixo, flutuando em torno de 5%. Assim, os principais indicadores não fornecem, até o momento, uma clara direção quanto à conveniência e à funcionalidade de uma elevação dos juros no curto prazo.

É certo, no entanto, que o Fed, ao encerrar a política de facilitação monetária em 2013 e aumentar pela primeira vez sua meta de juros, em dezembro de 2015, para uma faixa entre 0,25% e 0,50%, tem promovido a ideia de uma normalização futura nas taxas de juros, o que tem sido capaz de trazer um equilíbrio instável aos mercados de ativos, funcional ao objetivo de ganhar tempo no sentido da busca de um consenso mínimo que reduza a dramaticidade dessa prometida normalização monetária. O ritmo tem sido lento, e essas expectativas, instáveis. O ano de 2016 se iniciou com expectativas de mercado de até três elevações de juros pelo Fed. Até setembro não ocorreu nenhuma, e as expectativas haviam-se modificado no sentido de que apenas um único aumento ocorreria no ano, em 0,25 ponto percentual, embora nem mesmo essa elevação possa ser considerada certa.

As expectativas majoritárias no mercado norte-americano até meados de 2016 sinalizavam taxas de juros em torno de 1,5% ao final de 2017 e 2,5% em 2018, antes de se estabilizarem em 3% em prazo mais longo.

Como já afirmado, nada garante que, tal qual no passado recente, essas previsões não possam ser revisadas. E, pior, considerando-se as seguidas idas e vindas da instituição, embora plenamente justificáveis dada a complexidade do cenário econômico atual, o mercado financeiro começa a apontar uma falha do Fed em orientar de modo crível as expectativas futuras. A pesquisa CNBC Fed Survey[1] realizada ao final de agosto de 2016, na qual 60% dos agentes de mercado afirmaram que falta ao banco central dos EUA um quadro de análise claro quanto à orientação de suas decisões, demonstra essa crescente desconfiança. Ao mesmo tempo, a baixa taxa de juros tem levado tanto os bancos comerciais quanto as seguradoras e os fundos de pensão a demandarem uma revisão premente da política monetária nos EUA, dado o impacto dos juros reais negativos sobre sua rentabilidade. Ou seja, o Fed vem sendo pressionado pelo mercado a afirmar mais claramente aquilo que é determinante para suas decisões, abandonando a conveniente dubiedade prevalente entre 2014 e 2016.

Na ponta produtiva, é reconhecido desde os anos 50, quiçá desde os anos 30, que apenas condições favoráveis do lado da oferta são incapazes de alavancar novos investimentos, caso a oportunidade para tal não esteja claramente afirmada também pelo lado da demanda. Como mostra o economista Phillip Arestis, a efetividade das políticas de facilitação monetária para o crescimento econômico depende do que os agentes afetados (detentores de títulos e bancos) pretendem fazer com as somas adicionais de recursos e, ao mesmo tempo, do modo como os mercados financeiros e as empresas reagem em suas expectativas de gasto, especialmente quanto à inflação futura. Ora, ao mesmo tempo em que frações dessa riqueza são destinadas aos mercados de risco, a despeito das baixas taxas oferecidas, os mercados de dívidas governamentais batem recordes de demanda, exacerbando as contradições quanto ao destino desse excedente monetário e reforçando a proeminência da preferência pela liquidez.

Ademais, o contexto da economia mundial não ajuda em nada a conformar condições mais favoráveis para que as decisões acima expostas se resolvam positivamente. A realidade é que o comércio internacional e a produção industrial mundial têm crescido a taxas em ritmo lento, ao mesmo tempo em que prossegue o deslocamento do dinamismo capitalista em direção à Ásia. Isso aumenta as dúvidas sobre a capacidade de condições favoráveis de endividamento em trazer efeitos duradouros sobre os investimentos produtivos nos EUA. Em contraposição, a capacidade de geração de empregos de sua economia se reafirmou após 2010. Entretanto, esses empregos reproduzem em sua característica o padrão do ciclo de crescimento anterior (2002-07), ou seja, estão ligados ao crescimento do setor de serviços, à recuperação da renda e da capacidade de endividamento das famílias e aos efeitos das novas bolhas financeiras na geração de uma sensação de normalidade. A propalada retomada do investimento industrial em território norte-americano segue, até o momento, ligada principalmente à indústria de extração de petróleo, também abalada em sua capacidade de expansão pela queda nos preços dessa commodity após 2015.

Em suma, a estabilização precária dos mercados financeiros soma-se a uma frágil retomada da atividade produtiva, em condições internacionais adversas. De momento, a única certeza que esse conjunto de variáveis nos impõe é que o horizonte do retorno das taxas de juros reais positivas de forma consistente nos Estados Unidos ainda deve ser bastante lento.


[1] LIESMAN, S. Fed doesn’t have real plan to make policy: CNBC survey respondents. CNBC, 24 Aug. 2016. Disponível em: . Acesso em: 04 out. 2016.