Da Primeira República a Michel Temer, passando por Vargas: histórias e memórias das leis trabalhistas

Os anos finais da Primeira República conheceram os primeiros esforços para regulamentar as relações de trabalho no Brasil. Durante os governos de Epitácio Pessoa, Artur Bernardes e Washington Luís, foram aprovadas leis sobre acidentes de trabalho (1919), caixas de aposentadoria e pensões (1923), férias (1925) e trabalho infantil (1926). Esses registros históricos certamente surpreenderão aqueles que atribuem a Getúlio Dornelles Vargas o pioneirismo das leis trabalhistas.

Na virada do século XX para o século XXI, vários trabalhos de história oral realizados com idosos no meio rural constataram a imensa reverência prestada pelos trabalhadores do campo a Getúlio.1 Nos depoimentos, creditam-lhe a exclusividade da outorga de direitos. Uma senhora, em um desses relatos, atribuiu ao governante alguns atos que de fato não decorreram de sua pena, como a aposentadoria rural e a abolição da escravidão (!).

O contraponto entre história e memória permite realizar algumas reflexões. Como dito, Vargas não foi o primeiro a estabelecer uma legislação referente a direitos dos trabalhadores, ao contrário do que se tem como senso comum. Ademais, verifica-se que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e os direitos nela assegurados não foram inócuos entre a população rural, como comumente se pensa; caso contrário, sua recordação não teria sido retida.

Getúlio, de fato, aprimorou a legislação existente, criou novas leis e as sistematizou na CLT, em 1943. Entre 1930 e 1945, instituiram-se a carteira de trabalho e o salário mínimo, instalou-se a Justiça do Trabalho, regulamentaram-se as associações sindicais, limitou-se a jornada de trabalho a 44 horas semanais, determinou-se a licença maternidade e o direito a períodos de descanso, entre outras prerrogativas.

Entretanto, a percepção sobre as leis promulgadas na Primeira República, esparsas e assistemáticas, tem uma grande diferença em relação à memória sobre a legislação aprovada no período posterior. Se aquelas são reconhecidas pela historiografia como resultantes de décadas de luta do movimento operário, a CLT é recordada, no senso comum, como uma dádiva outorgada por um presidente carismático e benevolente. Essa memória é tão consolidada que admite poucas narrativas alternativas.

A historiadora Ângela de Castro Gomes (2005) dissecou a ideologia implícita na ideia de outorga. Inscrita a legislação trabalhista em um circuito de reciprocidade, o apoio dos trabalhadores ao ditador era tido como contraparte necessária. De ato “livre, gratuito e generoso”, a dádiva encerra obrigações de retribuição. Todavia, memória e história diferem. Mesmo se apresentadas como outorga, os historiadores argumentam que, tal como na Primeira República, as leis trabalhistas foram conquistadas pela luta dos trabalhadores ou por meio da negociação com sindicatos (previamente sujeitos a aprovação oficial, a partir de 1931, ano da Lei de Sindicalização). De acordo com Gomes, coube “ao Estado antecipar-se e elaborar a legislação, antes mesmo que o espírito associativo dos trabalhadores organizasse o sindicato”. Eis o trunfo de Vargas: assumir uma postura antecipatória e preventiva no que diz respeito aos direitos trabalhistas e receber os louros por isso.

Por que a memória dos trabalhadores atribui, com tanta convicção, até hoje, os direitos sociais à generosidade e à benevolência daquele presidente? A influência ideológica da ditadura do Estado Novo foi tão absoluta e eficaz assim? A ingenuidade dos populares os faria plenamente permeáveis ao discurso oficial, transmitido diariamente na Hora do Brasil?2 Pelo contrário: os trabalhadores longe estavam de ser inocentes. Construíram, de forma bastante astuta, aquele “pacto” implícito com o Presidente (cuja memória ecoou por muito tempo), porque ele ajudava a assegurar prerrogativas. A legislação era usada como instrumento de luta contra eventuais violações de direitos, e a Justiça do Trabalho, tomada como o fórum adequado para dirimir aquelas questões.

A CLT foi apelidada de “bíblia do trabalhador”, por ser um corpo escrito, fundamentado no prestígio de Vargas (para além de sua saída do poder, em 1945, e suicídio, em 1954), ao qual a população pobre podia apelar. Destaca-se que parcela significativa dos trabalhadores era analfabeta e tinha acesso à legislação trabalhista pelos discursos governamentais transmitidos pelas ondas do rádio. Isso se deu, até mesmo, entre trabalhadores rurais. Ainda que diretamente não contemplados pela CLT, utilizavam-na como argumento em seus pleitos ou mesmo quando escreviam cartas para Getúlio, conforme Dezemone (2009) e Ribeiro (2009) demonstraram.

Em entrevistas de história oral realizadas em 2008 e 2009, com velhos trabalhadores, negros e pobres da região de Osório, constatou-se ser grande, em seus olhares retrospectivos, o sentimento de injustiça vivida, decorrente de “não ter com quem contar” e, portanto, estar vulnerável a abusos. Um deles relatou que os moradores da localidade iam para a labuta e, ao voltar, encontravam suas casas incendiadas: “eles botavam fogo e tu não tinha pra quem recorrer”. Em suas recordações, os momentos em que essa sensação de desamparo se ameniza são os governos de Getúlio Vargas, quando a “bíblia do trabalhador” representou esse “com quem contar”. A CLT tinha, assim, uma potência simbólica que extrapolava as garantias da lei em seu plano prático.

Se a “ideologia da outorga” pôde ser instrumentalizada positivamente pela classe trabalhadora em décadas passadas, hoje ela se torna nefasta a seus intuitos. A memória do carisma de Vargas (que dava esteio à “bíblia do trabalhador”) tornou-se rarefeita. Nessa situação, reiterá-la facilita a remoção de direitos (não sem descontentamentos, é evidente). Se se joga sobre o governante a prerrogativa de conceder direitos, ele também pode retirá-los verticalmente. A reforma trabalhista de Michel Temer subtrai ou flexibiliza uma série de direitos conquistados por meio da CLT. Por exemplo, o tempo de descanso sofre uma diminuição, a jornada de trabalho pode chegar a 12 horas e o acordo de demissão passa a ser negociado diretamente entre o trabalhador e a patronal. O negociado passou a prevalecer sobre o legislado, esvaziando a Justiça do Trabalho.

A CLT passou por várias alterações entre 1943 e o tempo presente. No entanto, a recente concentração de modificações só encontra paralelo naquelas realizadas no ano de 1967 pela ditadura civil-militar. Essas, porém, não avançaram sobre diversas prerrogativas do corpo original da lei, que sofreram mudanças apenas agora. Os movimentos sociais contemporâneos costumam afirmar que nem mesmo o regime ditatorial atacou os direitos assegurados pela CLT, o que é, todavia, apenas parcialmente verdadeiro.

De qualquer forma, o recente predomínio do negociado sobre o legislado contraria efetivamente o espírito original da lei varguista. Ela partia do princípio de que deveria haver um corpo jurídico capaz de promover a proteção do trabalhador (entendido como parte mais débil em uma relação de poder diante do empregador). Sua recomposição em um fundamento legal com base na ficcional ideia liberal de simetria, abstraindo exatamente a desigualdade da capacidade de barganha entre as partes, é uma mudança, sim, inédita.

Se se levar em consideração o impacto de seus efeitos sobre a vida dos trabalhadores e a perda de direitos historicamente adquiridos, pode-se dizer que a reforma teve resistência pequena por parte dos movimentos sociais. A par de aspectos como o impacto do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, a violência policial e anos de sindicatos “domesticados” e desmobilizados, é possível que esse desânimo esteja, também, relacionado ao simbolismo da outorga. Se os direitos são culturalmente percebidos, no Brasil, como benesse governamental (a abolição da escravidão e a independência são outros exemplos), lamenta-se, mas o que se dá se retira.

Seria importante, portanto, restituir uma verdade histórica, em face da memória arraigada: por trás de aparentes concessões, havia demandas pregressas represadas e negociação de sindicatos que, ao contrário do que se pensa, não eram marionetes de Getúlio, pacatos “pelegos”. O “pacto” entre o presidente Vargas (e, mais tarde, João Goulart) e os trabalhadores estava cheio de fissuras, exploradas a fim de conquistar e conservar ganhos individuais e coletivos.

O diálogo entre história e memória é difícil, mas elas não constituem um par antinômico: antes, essa relação pode ser ilustrada pela imagem de gêmeos siameses, que compartilham órgãos e sangue, que se alimentam mutuamente, mas são seres distintos. Essa complementaridade, então, é discutida por Paul Ricœur (2007) e Fernando Catroga (2001). O passado sempre se presta a usos políticos, conforme sublinham François Hartog e Jacques Revel (2001). A história, tanto quanto a memória, é veículo para tal. Ao apresentar a imagem de um varguismo prestes a ser destruído, setores políticos procuram justificar uma suposta modernização pelas reformas neoliberais (que, no entanto, redundam em relações trabalhistas arcaicas, por meio da privação de direitos sociais). Desconstitui-se o legado de mais de um século de lutas por direitos, que vai mesmo além de Getúlio Vargas. Diante disso, tem-se a quem recorrer, com quem contar?


1 DEZEMONE, Marcus Ajuruam de Oliveira. Memória camponesa: Identidades e conflitos em terras de café (1888-1987). Fazenda Santo Inácio, Trajano de Moraes – RJ. 2004. Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2004.

RIOS, Ana L. e MATTOS, Hebe Maria. Memórias do cativeiro. Família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

2 Programa radiofônico oficial que noticiava os atos do Governo e veiculava a palavra do Presidente e dos seus ministros. A partir de 1962, passou a chamar-se Voz do Brasil.