Reforma trabalhista: um retrocesso dos direitos sociais

Em entrevista à Panorama, a juíza do trabalho Valdete Souto Severo critica a reforma trabalhista brasileira, porque entende que muitos aspectos da nova legislação violam regras da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e são um retrocesso dos direitos sociais. Valdete fala de “reforma”, entre aspas, para demarcar sua compreensão de que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi alterada substancialmente, com o objetivo de proteger apenas os empregadores, subvertendo a razão histórica pela qual existe a legislação trabalhista.

A entrevistada é Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP) e juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. É Mestre em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital, da USP, e da Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. É membro da Associação de Juízes Pela Democracia (AJD) e professora, coordenadora e diretora da Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul (Femargs).

Panorama: Como a reforma trabalhista brasileira tem sido percebida em organismos internacionais?

De modo negativo. A OIT já se pronunciou oficialmente, revelando sua preocupação com o desmanche do sistema de proteção a quem trabalha, perpetrado pela Lei 13.467/2017. Há alguns dias, inclusive, a OIT divulgou uma recomendação feita em relatório do seu Comitê de Peritos, pedindo que o Governo considere a revisão de alguns pontos da “reforma” trabalhista.

Panorama: Na sua visão, há comprometimento do País com o cumprimento de normas estabelecidas em convenções da OIT?

Sem dúvida há. A regulação sobre o trabalho intermitente, a possibilidade de ajustar individualmente a perda do intervalo, a referência ao fato de que questões relativas à jornada não são atinentes à saúde do trabalho e a dificuldade que a “reforma” cria para o acesso à justiça são todas alterações que estão na contramão das orientações da OIT em matéria de proteção ao trabalho.

Panorama: A reforma brasileira atual encontra forte inspiração na reforma espanhola, aprovada no início desta década. O que fundamenta essas flexibilizações das legislações trabalhistas no Brasil e na Europa?

A “reforma” brasileira é, na realidade, um recorte do que há de pior nas alterações legislativas neoliberais ocorridas na Espanha, em Portugal, na Itália e na Inglaterra. Vários dispositivos, de certo modo copiados de recentes legislações europeias, foram piorados, como é o caso do contrato de trabalho intermitente, que, aqui no Brasil, não tem previsão de um número mínimo de horas a serem trabalhadas por mês. As alterações relativas ao chamado “negociado sobre o legislado” não são propriamente inspiradas em leis de outros países, pois tanto a previsão legal acerca da atuação sindical quanto a realidade de atuação dos sindicatos e de intervenção do Estado na atuação coletiva são peculiares ao Brasil. E não há um fator exclusivo que explique nossa “reforma”. O texto da Lei 13.467/2017 contém alterações que são claramente reivindicações de determinados setores da economia, alterações que constituem a vontade de um pequeno grupo de juízes que, apenas após a aprovação da lei, revelou-se como formado pelos “pais da reforma”, e cópias de legislações estrangeiras. É extremamente agressiva nos âmbitos tanto material quanto processual e revela um momento de retração dos direitos sociais, que também está sendo sentido na Europa. As explicações para essa retração são múltiplas. A crise do capital é cíclica e decorre de circunstâncias que são objetivamente produzidas pelo próprio sistema — como o desemprego, a concentração de renda, o esgotamento de recursos naturais, etc. Por sua vez, os direitos sociais, notadamente os trabalhistas, constituem algo “arrancado do capital”, como escreveu Marx, algo com o que o capitalismo lida de forma tensa. Direitos sociais, em uma lógica capitalista de meritocracia e acumulação de riquezas, em uma realidade na qual as oportunidades não são e nunca serão para todos, constituem uma concessão que só é possível na medida em que não comprometa demais essa ordem excludente. É por isso que a história dos direitos sociais, e também a do Direito do Trabalho, é uma história de avanços e retrocessos. Os direitos sociais já foram considerados mecanismo de auxílio para o enfrentamento de crise econômica, como no caso da criação da OIT, em 1919, ou do New Deal, mas também já foram considerados, como hoje, “bode expiatório”, culpados dessas consequências objetivas da nossa escolha de convívio social.

Há, ainda, o fato de que a história do capital, nos últimos séculos, tem oscilado entre períodos de maior abertura democrática, em que a luta pela liberdade efetiva e pela melhor distribuição de bens ganha espaço, e períodos de avanço do discurso fascista, que é um discurso concentrador, inimigo das liberdades e, por consequência, das garantias sociais. O mundo ocidental, infelizmente, por uma série de razões que não há como serem elencadas neste espaço, está passando por uma fase conservadora, o que não se reflete apenas na “reforma” trabalhista, mas também na forma de governar e na escolha de governantes em países de diferentes tradições históricas e nas políticas de intolerância com as diferenças, entre tantos outros exemplos. Já passamos por isso, mas é evidente que, quanto mais avançamos no tempo sob a mesma forma de organização social, quanto mais aumentamos como número de seres humanos sobre a Terra, quanto menos recursos naturais e áreas de exploração temos ao nosso dispor, pior fica.

Há, ainda, o fato de que somos um país de tradição escravista e colonialista, que ainda funciona na lógica da relação senhor-escravo, na qual os direitos sociais nunca foram realmente respeitados. Basta ver a nossa dificuldade em efetivar direitos que estão há décadas na Constituição, como é o caso da garantia contra despedida arbitrária. Temos uma cultura de que o trabalhador “ganha emprego” e o empregador “dá trabalho”. É difícil lidar com o senso comum (ideologia) que habita nas relações sociais. Mesmo os trabalhadores e trabalhadoras muitas vezes acabam reproduzindo o discurso de que são gratos ao seu empregador, como se não estivessem vendendo tempo de vida por remuneração, inclusive pela absoluta impossibilidade de sobreviver de outro modo em um sistema capitalista de produção.

É importante mencionar, ainda, para que compreendamos o espectro simbólico dessa “reforma”, que ela só se torna possível em nosso país a partir da ruptura democrática operada em 2016. Bem ou mal, desde que promovemos (de modo conciliado, é verdade) a abertura democrática após os anos de chumbo da ditadura civil-militar, sabíamos quais eram as regras do jogo democrático. Não havia possibilidade concreta (tanto assim que isso não aparece em qualquer das campanhas eleitorais que disputaram as eleições, seja para o Parlamento, seja para a Presidência da República) de retirada ostensiva de direitos sociais, porque sequer havíamos alcançado o que costumamos chamar de “patamar mínimo civilizatório”. As poucas conquistas auferidas durante a última década e meia, no Brasil, endereçaram-se a uma espécie de inclusão por renda, sem que tenhamos conseguido alterar as bases e a qualidade da estrutura pública de educação, saúde, moradia e sem que conseguíssemos fazer valer a Constituição de 1988, no que tange ao sistema de proteção ao trabalho. Ainda assim, havia uma espécie de consenso, retratado no texto da Constituição, acerca da necessidade de avanços. O golpe parlamentar perpetrado em 2016 promoveu uma ruptura desse diálogo de consenso. A partir de então, tudo passou a ser permitido. As regras do jogo foram alteradas sem que houvesse sequer a preocupação de fingir que continuavam sendo respeitadas. O que vale para alguns não vale para outros. O parlamento — o mais conservador de todos os tempos no País, segundo pesquisa oficial — aprovou a “reforma” de modo sorrateiro, mudando um projeto original que tinha poucos artigos, votando, a portas fechadas, em troca de vantagens e privilégios, em uma tramitação relâmpago e completamente de costas para a vontade social. Foi mais ou menos como se a cortina caísse e nos deparássemos com uma realidade completamente diferente daquela que até então enxergávamos. Obviamente essa realidade já estava lá, há muito tempo, e tem estreita relação com a herança escravista que mencionei antes. A questão é que o disfarce que, em alguma medida, se materializava em práticas de contenção da lógica destruidora do capital foi eliminado. Agora, temos um Governo que financia campanha mentirosa em favor da reforma da Previdência, aprova portaria que praticamente autoriza trabalho em situação de escravidão, um parlamento que propõe criminalizar o aborto e que segue aprovando, quase todos os dias, leis que destroem garantias sociais, e um judiciário que não consegue realizar sua única missão: proteger e fazer valer a ordem constitucional.

Há, portanto, dentro de um movimento que é internacional e que, de certo modo, viabiliza a “reforma”, características muito particulares da ordem metabólica do capital no Brasil, e o resultado é um absurdo retrocesso.

Panorama: O debate sobre a reforma da CLT é bastante antigo e apresenta interessantes nuances, mas tem sido erroneamente retratado que apenas setores neoliberais defendem alterações. No entanto, vozes à esquerda do espectro político nacional também fazem importantes críticas ao referido código. Quais são os principais aspectos salientados pelos progressistas brasileiros?

Veja, a “reforma” da CLT não foi feita. Não há como falar em “reforma”, quando mais de 200 dispositivos são alterados e todos eles, sem exceção, têm o objetivo (declarado pelos “pais” da Lei 13.467/2017) de proteger empregadores, ou seja, subvertem a razão histórica pela qual temos uma legislação trabalhista. É como incluir no Estatuto da Criança e do Adolescente uma regra permitindo o abuso sexual em determinadas circunstâncias e seguir afirmando que se trata de regra de proteção ou dispor que os pais têm o direito de infligir castigos físicos e psicológicos às crianças e adolescentes e seguir insistindo que estamos “reformando” o estatuto da criança e do adolescente. Então, sequer é possível discutir as críticas necessárias à legislação trabalhista em um ambiente como o que estamos enfrentando, porque houve um deslocamento do discurso. O que chamamos de “reforma” (e por isso escrevo entre aspas) é um golpe cujo objetivo final é eliminar a noção que temos de Direito do Trabalho. Para que a pergunta não fique sem resposta, observo que, se tivéssemos de falar em críticas à CLT desde a perspectiva da razão histórica pela qual existem leis trabalhistas (proteger quem trabalha), teríamos de iniciar pela necessária extinção das regras sobre justa causa, que punem apenas o empregado e não são compatíveis com a lógica contratual que insistimos em utilizar no trato das relações de trabalho.

Nesse momento de investida fascista sobre os direitos trabalhistas, parece-me que não é hora de apontar os defeitos, mas sim de reconhecer as qualidades do ordenamento jurídico trabalhista, inclusive para o efeito de compreender a perversidade da destruição que a Lei 13.467/2017 pretende realizar. O processo do trabalho, por exemplo, tem regras que foram copiadas nas recentes alterações do Código de Processo Civil (CPC). Aliás, conta com uma lógica de efetividade que o CPC até hoje não alcançou. Apenas para dar um exemplo, desde a criação dos decretos de 1932 que deram origem à parte processual da CLT, contamos com um processo único, que só termina quando o bem da vida for realmente entregue ao credor, nos casos de procedência. O CPC, até 2005, separava conhecimento e execução. Então, para além dos aspectos críticos que podem ser levantados contra o texto da CLT, parece-me que o momento, estrategicamente, é de defesa desse conjunto de regras, sobretudo por sua importância simbólica. A resistência deve encaminhar-se para a revogação da Lei 13.467/2017 ou, pelo menos, a neutralização de parte dos seus efeitos nocivos.

Panorama: Após a entrada em vigor das novas regras, que alterações mais significativas são identificadas na rotina da Justiça do Trabalho?

Há uma queda no número de ações ajuizadas, que talvez não tenha a ver tanto com o receio de que as alterações processuais lesivas sejam aplicadas, mas com a expectativa natural dos atores sociais (especialmente dos advogados e das advogadas) acerca da interpretação (constitucional ou não) que será feita das novas regras. Nas audiências, percebo uma postura arrogante por parte de algumas (poucas, é verdade) grandes empresas, que invocam as alterações legislativas como verdadeiras armas contra o direito do trabalhador ou da trabalhadora. Vem crescendo, também, o número de demandas em que não há sequer pagamento das verbas resilitórias, o que faz com que o tempo do processo, muitas vezes, seja fatal, inclusive para a sobrevivência física de quem trabalha.