Carlos Aguiar de Medeiros é professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É graduado em Economia e Mestre em Engenharia de Produção pela UFRJ e Doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisa principalmente os seguintes temas: desenvolvimento, desemprego, crescimento, tecnologia, estado, mercado, instituições, padrões monetários, balança de pagamentos, crescimento e industrialização e inserção internacional.
Em entrevista à revista Panorama, Carlos avalia o que foi central para o regime de crescimento chinês e pontua que o País se distingue pela produção de bens sofisticados. O pesquisador também analisa a oferta de alimentos e a sustentabilidade ambiental na China, além de discutir as mudanças nas relações entre esse país e os EUA, depois da vitória de Trump nas eleições americanas.
Panorama: Muitos analistas apontam que a China vem realizando uma transição de um modelo previamente “liderado pelas exportações” para uma nova estratégia de crescimento baseada no mercado interno. O senhor concorda com essa caracterização? Que tipo de qualificação pode ser feita a esse respeito?
Não há consenso na literatura sobre a definição e a medida de um regime de crescimento “liderado pelas exportações”. É evidente que, na China, é elevada a participação das exportações brutas na demanda final. Entretanto, é muito alta a parcela de valor adicionado externo contido nas exportações chinesas. O investimento foi o componente com maiores crescimentos absoluto e relativo na última década. Uma parcela desse investimento está associada às exportações. Outra parcela, mais elevada, está ligada à expansão da urbanização e da indústria pesada, liderada por empresas estatais. A questão central para o crescimento chinês (independentemente do seu regime de crescimento) é manter taxas elevadas (num momento em que a economia mundial cresce a taxas reduzidas) e construir uma “sociedade harmoniosa”, isto é, um sistema de proteção social e leis de regulação do trabalho, de forma a reduzir a desigualdade na apropriação da renda. Trata-se aqui não apenas de uma questão econômica, mas, sobretudo, de uma questão política.
Panorama: Como se poderiam qualificar os resultados já alcançados a partir do esforço chinês de desenvolvimento científico e tecnológico nos últimos anos?
A guinada chinesa voltada para a construção de uma economia centrada na inovação e não apenas na produção com tecnologia externa de bens sofisticados ocorreu nos anos 2000 e foi, em grande parte, induzida por preocupações estratégicas associadas tanto à defesa quanto à energia. Ela resultou em ampla expansão dos recursos em pesquisa e desenvolvimento (P&D), financiada, em grande parte, por empresas chinesas, forte demanda e financiamento do Governo voltados para áreas tecnologicamente estratégicas, como semicondutores, pesquisa espacial, energia alternativa, fármacos, infraestrutura (comunicação e trens de alta velocidade) e computadores de alta performance. Ela é, em grande medida, baseada em firmas chinesas (principalmente estatais), e a prioridade é a construção de tecnologias proprietárias e marcas próprias domésticas. Com efeito, a China distingue-se pela produção de bens sofisticados, não pelas atividades de desenho e inovação. Mudar essa situação constitui estratégia de governo dos anos 2000. Em energia alternativa, a indústria Chinesa está no estado da arte; na aviação e na pesquisa espacial, permanece ainda defasada, mesmo que haja importantes estratégias de catching-up. Em relação à indústria centrada na tecnologia de informação e comunicação, até o presente, o grande desafio é a área de semicondutores. Houve indiscutível progresso na eletrônica de consumo e em outras áreas de alto conteúdo tecnológico dessa indústria, em um esforço de substituição de importações, incluindo as atividades mais sofisticadas dessa produção.
Panorama: Uma das questões centrais do desenvolvimento chinês sempre foi a da oferta de alimentos. Essa centralidade persiste? Que tipo de oportunidade pode ser aberta, do ponto de vista do comércio externo?
Certamente, a China possui uma das menores disponibilidades de terra arável per capita e, com o processo de urbanização, vem mudando sua dieta alimentar. A oportunidade já está aberta. A China tornou-se hoje o maior importador mundial de soja e outras commodities agrícolas. Essa demanda tende a seguir crescendo em termos absolutos, ainda que a um ritmo decrescente, à medida que se eleva o nível de renda.
Panorama: Em que medida as questões relativas à sustentabilidade ambiental assumem importância no caso chinês?
A degradação ambiental e a poluição são uma questão central numa economia ainda movida, em grande parte, a carvão; por outro lado, a elevada expansão da indústria automobilística tem aumentado a emissão de CO2. Os últimos planos quinquenais destacam e priorizam fontes alternativas de energia (eólica, elétrica), mas, mesmo que em forte expansão, eles ainda não constituem uma alternativa energética real.
Panorama: De um modo geral, quais são as principais mudanças sociais internas ou externas induzidas pelo forte desenvolvimento chinês das últimas décadas? De que modo elas constituem desafio à sua continuidade?
A principal “movida” social interna foi a dissolução, desde os anos 80, das instituições de controle e regulação social centradas na comuna e na fábrica estatal e a adoção de instituições capitalistas baseadas no emprego assalariado e no mercado, ainda que num processo de transição gradual, em que o Estado permanece no controle das terras, do crédito e, em geral, da taxa de investimento. Nesse capitalismo regulado pelo Estado, o conflito social é amplo em relação tanto à expropriação de terra quanto à regulação do trabalho, à taxa de salários e à introdução de direitos sociais. O governo chinês vem avançando na construção de um ainda incipiente Estado Social (renda mínima, previdência, saúde), e as perspectivas são positivas, mas com resultados em médio e longo prazos.
Panorama: Com a vitória de Trump nos EUA e sua aparente proximidade com a Rússia, como fica o xadrez das relações internacionais envolvendo a China?
É cedo para especular, mas é possível que as mudanças sejam menos descontínuas do que se poderia pensar com base no temperamento e no estilo do presidente americano. De fato, ele suspendeu a participação dos EUA no Acordo do Transpacífico, um acordo construído precisamente para isolar a China e ampliar o comércio dos EUA com os países asiáticos parceiros da China. É possível que haja alguma elevação das tarifas incidentes sobre exportações chinesas e sistemáticas acusações de manipulação do câmbio, mas não creio que mudanças substanciais possam ocorrer na relação comercial entre os EUA e a China, até porque existe uma grande complementaridade nesse comércio, e rigorosamente todas as grandes empresas americanas ou exportam para a China ou produzem na China e exportam de lá. Independentemente do saldo negativo, as exportações americanas para a China cresceram substancialmente nos últimos anos. A China é hoje o maior detentor de títulos do tesouro americano, com mais de um trilhão de dólares. A aproximação com Taiwan e a negação do princípio de uma única China poderia ter um efeito drástico na histórica relação com Pequim, mas o governo americano já recuou. Fustigar a China com críticas à sua expansão nos mares do Sul ou por meio de uma maior aproximação com o Japão não mudaram nada de forma substancial. A prioridade chinesa é reconstruir e expandir as relações comerciais com os países da “rota da seda” e obter liberalização comercial, e investimentos em infraestrutura financiados por bancos chineses são uma estratégia central.