Texto sob autoria de: Bruno Mariotto Jubran

Bruno Mariotto Jubran

Internacionalista, Pesquisador da FEE International Affairs Researcher at the FEE.

A flexibilização global das relações de trabalho é uma tendência generalizada? Uma breve análise da situação da Ásia Oriental

Ao longo das últimas décadas, em particular, após a grande crise econômica mundial, no final da primeira década do século XXI, tem-se observado e discutido o fenômeno da deterioração das relações de trabalho, com particular interesse na União Europeia e nos Estados Unidos. Em 2013, a Revista Internacional do Trabalho, vinculada à Organização Internacional do Trabalho (OIT), dedicou uma edição inteira à identificação da situação das relações de trabalho no contexto europeu, com conclusões, em geral, pessimistas. Essa situação guarda semelhanças com o contexto dos Estados Unidos e mesmo de alguns países latino-americanos, inclusive o Brasil. É possível identificar uma correlação entre a globalização da economia, por um lado, e a deterioração das relações de trabalho, ao menos nas regiões mais desenvolvidas. Contudo, o que se passa em outras partes do mundo? Neste artigo, aborda-se a situação observada na Ásia Oriental, para onde se volta a atenção quanto às melhores práticas de políticas públicas, dada a rápida evolução recente das economias da região.

Antes da análise da indagação proposta, cabe ressalvar que os sistemas nacionais de proteção ao trabalhador encontram-se em uma situação mais favorável aos trabalhadores na Europa, na América do Norte e mesmo em alguns países mais industrializados da América Latina, em comparação com outras partes do mundo. No entanto, é necessário considerar não apenas a situação estática desses sistemas, mas também a tendência recente em ambos os grupos. Como a grande maioria dos estudos têm-se voltado para a investigação da problemática no continente europeu e na América Latina e identificado considerável piora nesse quesito, neste texto, enfoca-se a situação do trabalho na Ásia Oriental, com ênfase em três das economias emergentes mais representativas dessa região: China, Índia e Coreia do Sul.

O caso chinês parece bastante elucidativo. Não obstante o fato de as normas chinesas ainda permanecerem em um nível bastante inferior às de seus análogos na Europa quanto à renumeração e ao acesso a direitos básicos, como à aposentadoria, o Governo chinês tem-se movido no sentido de aprimorar a política trabalhista. A base da atual legislação trabalhista chinesa é relativamente recente (em vigor desde 1995), complementada pela Lei de Contratos Coletivos de Trabalho, de 2004. Como afirmam Wu e Sun (2014), vige um sistema liderado pelo Governo, que apresenta não apenas a atribuição de mediar e arbitrar conflitos entre trabalhadores e empregadores, mas também de impor condições e limites relativos a salários e horas trabalhadas, além de impelir as partes a negociarem, entre outros aspectos. Por um lado, a concessão de direitos pode ser entendida como uma resposta dos dirigentes nacionais às crescentes ondas de agitação de trabalhadores chineses em tempos recentes e ao aumento expressivo dos casos de disputas trabalhistas pelo País, iniciados em meados da década de 90. Os autores apontam que, em 1992, registraram-se 18.000 disputas trabalhistas, ao passo que, em 2008, esse número aumentou cerca de 90 vezes. A legislação trabalhista chinesa, além de ser mais restritiva em comparação a de seus equivalentes ocidentais, permanece assentada em uma lógica individualizada, em que são vedados o direito de greve e a criação de sindicatos independentes. Porém, como visto anteriormente nesta revista, a melhora relativa do bem-estar dos trabalhadores, mormente nas grandes cidades, pode ser entendida como parte dos desígnios do Partido Comunista da China de redirecionar o modelo econômico baseado nas exportações de bens industrializados para o desenvolvimento calcado no mercado interno, dada a permanente turbulência da economia mundial. A ampliação dos direitos trabalhistas, assim, apresenta uma relevante dimensão propositiva e, inclusive, estratégica.

A Índia, segundo país mais populoso do mundo após a própria China e com participação cada vez mais saliente na economia e na política global, apresenta um quadro significativamente distinto. Por um lado, o País contou com cerca de 84% de sua mão de obra em ocupações informais em 2012, de acordo com dados da OIT, um nível superior inclusive ao de outros países em desenvolvimento. Por outro lado, esse percentual tem-se reduzido ao longo das últimas décadas, ainda que de forma bastante lenta. No início da presente década, o Governo indiano promoveu mudanças, no sentido de garantir direitos trabalhistas, com enfoque em grupos específicos, como a criação da Lei Sobre Assédio Sexual de Mulheres no Trabalho, de 2013, e da Política Nacional Para Trabalhadores Domésticos, de 2011, como relata uma recente publicação do Programa de Trabalho Decente. Cabe ressalvar, entretanto, o avanço da percepção favorável à flexibilização das normas trabalhistas por parte do Governo de Narendra Modi.

Outro interessante caso regional é o da Coreia do Sul. Apesar do rápido avanço econômico nas últimas décadas, que lhe alçou à condição de “Tigre Asiático”, o País foi atingido pela grande crise global de 2008, depois de ter sido atingido, de forma ainda mais contundente, pela crise do Leste Asiático, em 1997. Durante a crise dos anos 90, o País viu-se em uma aguda crise de escassez de divisas externas que gerou impactos em seus indicadores macroeconômicos. Assim como fizeram outros países da região, o Governo sul-coreano solicitou resgate junto ao Fundo Monetário Internacional, o qual, por sua vez, condicionou a assistência a políticas fiscais, que impactaram fortemente as relações de trabalho. Após a taxa de desemprego aumentar rapidamente (de cerca de 2,5% no final de 1997 para 8,5% no final de 1998), o ajuste recessivo foi paulatinamente substituído por um enfoque diferenciado, denominado, à época, Grande Acordo Social Para a Superação da Crise Econômica. Essa política congregava tanto elementos pró-mercado como a ampliação da rede de seguridade social aos trabalhadores. No lado do capital, manteve a preocupação de estabilizar o nível de preços e salários e facilitou a execução de férias coletivas; no lado do trabalho, ativou a política de geração de empregos, a ampliação do seguro-desemprego e o empoderamento de sindicatos de trabalhadores. A manutenção dessa solução de meio-termo suavizou os danos causados pela crise global a partir da segunda metade de 2008, a ponto de a taxa de emprego sair praticamente ilesa durante todo o período. Na fase mais recente, têm ocorrido divergentes pressões políticas, ora por parte de grandes grupos empresariais, ora por parte de sindicatos, para alterar as normas trabalhistas vigentes. Em 2017, a ascensão do Partido Democrático, de centro-esquerda, encorajou os sindicatos a reivindicar políticas que combatam a elevada proporção de trabalhadores ocupados em meia-jornada e reduzam o número de horas trabalhadas, indicador que se encontrava entre as maiores médias da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A partir da análise de três das maiores economias da região da Ásia Oriental, retoma-se a pergunta original deste texto. Esses casos permitem afirmar que, embora as leis trabalhistas nos três países permaneçam em patamares bastante inferiores aos da Europa e aos da América do Norte, não se verifica uma adesão clara à tendência de flexibilização das relações de trabalho nem significativas mudanças no conteúdo da própria legislação. O principal destaque, em termos legais, cabe à Índia, cujas inovações têm o potencial de melhorar a situação das mulheres no ambiente de trabalho. No entanto, é no aspecto das disputas políticas que se pode verificar ganhos relativos do conjunto dos trabalhadores. No caso sul-coreano, destacam-se importantes concessões ao conjunto dos trabalhadores, como a política de manutenção de empregos e o aumento do poder de barganha dos sindicatos. No caso chinês, as melhorias na situação dos trabalhadores respondem tanto aos temores de uma convulsão social generalizada como ao propósito de rever a inserção econômica do País, dependente das exportações de bens.

Cabe reforçar que não se verifica uma situação de bonança para os trabalhadores nesses três países. Em primeiro lugar, como visto, sua situação permanece altamente precária, sobretudo na Índia. Em segundo lugar, não há como afirmar que essa tendência de melhoria relativa permanecerá incólume, dado que o aumento do poder de barganha do conjunto dos trabalhadores pode levar à reação de setores empresariais nesses mesmos países. Já se nota semelhante movimentação nesse sentido, na Índia, onde as pressões por flexibilizações têm ganhado espaço nos debates públicos. Diante dessa breve exposição, é válido concluir que as relações de trabalho nas economias emergentes mais significativas da Ásia Oriental têm testemunhado um processo distinto dos da Europa, da América do Norte e mesmo de partes da América Latina. No entanto, é demasiado cedo indicar a permanência dessa tendência oriental sui generis em relação a essa temática.

O regime internacional de mudanças climáticas: a evolução, as contradições e a posição do Brasil

A atenuação de uma das principais causas das mudanças climáticas, o aumento das emissões de gases causadores do efeito estufa por ação antrópica, mantém-se como um dos principais debates globais. Em período recente, verificam-se importantes desdobramentos institucionais mundiais, em conformidade com uma das 17 Metas de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU).[1] A despeito do grande consenso entre cientistas e organizações sobre as causas e os possíveis transtornos das alterações climáticas, diversos fatores explicam as contradições políticas desse tema, entre os quais citamos: as configurações socioeconômicas díspares entre as sociedades, o recente desengajamento de alguns países ricos e altamente emissores de gases do efeito estufa (GEE), sobretudo dióxido de carbono (CO2), e a carência de instrumentos eficazes para identificar infrações e punir seus responsáveis.

Apesar de as discussões sobre a necessidade de preservação ambiental acompanharem a história da humanidade, apenas na década de 70 é que o tema passou a ser encarado de forma genuinamente global, com a realização da Conferência de Estocolmo (1972). A partir de então, a Organização Mundial Meteorológica, uma agência especializada do Sistema ONU, passou a ter uma relevância crescente, que culminou na criação do Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) em 1988, cujo mote é a pesquisa científica que fornece apoio para as negociações internacionais nesse tema.

Atualmente, existem três principais dispositivos que se dedicam a produzir normas e padrões para atenuar as emissões globais de GEE, a saber: a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, em inglês), o Protocolo de Kyoto e o Acordo de Paris. A UNFCCC foi um dos resultados da Conferência das Nações Unidas para o Ambiente e o Desenvolvimento, de 1992, designação oficial da Rio-92. Desde então, os países que aderiram ao instrumento realizam reuniões anuais, as Convenções das Partes (em inglês, COP), que são a principal instância decisória no âmbito do referido acordo e têm como objetivo principal fazer avançar as discussões mais substanciais sobre o tema. Em novembro de 2017, ocorrerá a COP-23 na cidade de Bonn (Alemanha).

Um dos fundamentos da UNFCCC é o das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, em que é reconhecido o papel central dos países mais industrializados nas elevadas emissões atuais e no passado e que, portanto, devem arcar com um ônus significativamente maior para a mitigação do problema. Foram criadas duas listas especiais de países (conhecidas como Anexo I e Anexo II), cada qual com atribuições específicas em relação aos que não estavam referenciados em nenhuma delas. O Anexo I refere-se aos “países industrializados”, incluindo os da Europa Central e Oriental com “economia de transição”. Esse conjunto deveria manter, no ano de 2000, os níveis de emissões registrados em 1990, além de realizar relatórios anuais sobre suas políticas à Convenção. Os países do Anexo II, por sua vez, cuja totalidade se insere no Anexo I, deveriam, também, alocar verbas para financiar projetos de combate às mudanças climáticas em países em desenvolvimento, além de facilitar a transferência de tecnologias para eles. Os países em desenvolvimento, ausentes de ambas as listas, comprometeram-se na divulgação de relatórios, mas com uma frequência menor e com metas mais genéricas em relação aos listados no Anexo I. O acordo concede, ainda, atenção especial às mazelas ecológicas em países de menor desenvolvimento[2].

Na 3.a COP, ocorrida em 1997, o segundo pilar desse regime foi alcançado — o Protocolo de Kyoto, no Japão (em vigor a partir de 2005), por meio do qual os países se comprometem a manter sua política de redução das emissões via metas vinculantes, mantendo-se o princípio das diferenciações entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. O primeiro período de redução de emissões iniciou-se apenas em 2008, com término em 2012, durante o qual foi prevista uma redução de 5% das emissões dos GEE, em comparação com os níveis de 1990. O segundo período, de oito anos, foi definido na COP18, de Doha (Catar), e abrange o início de 2013 até o final de 2020, com metas de 18% abaixo dos níveis de 1990. Além disso, o Protocolo previu três “mecanismos de flexibilidade”: o Comércio Internacional de Emissões[3], o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL)[4], do qual o Brasil foi um dos patrocinadores, e a Implementação Conjunta[5]. Diante desses instrumentos, as partes do Protocolo de Kyoto conseguiram alcançar, de forma relativamente confortável, as metas do primeiro período. Um dos principais motivos foi a brusca da redução dos níveis de emissão em quase todas as economias de transição da Europa Central e Oriental, dadas as suas persistentes dificuldades econômicas, especialmente na década de 90. A Rússia, que é um dos principais emissores globais, “conseguiu” reduzir, entre 1990 e 2009, quase 30%, enquanto a Ucrânia teve uma diminuição de mais de 60% no mesmo período.[6]

O terceiro e mais recente pilar desse regime é o Acordo de Paris, em vigor a partir de outubro de 2016, cuja grande meta é manter a temperatura média global, no máximo, até 2 graus acima da média pré-industrial. Uma das novidades foi a previsão de que todos os países, independentemente de seu estágio de desenvolvimento, elaborassem relatórios mais frequentes acerca de seus esforços e suas intenções de lidar com a questão, as chamadas “contribuições nacionalmente determinadas” (NDC, na sigla em inglês), suavizando-se o princípio da responsabilidade diferenciada contemplada tanto na Convenção-Quadro como no Protocolo de Kyoto.

Evidentemente, as configurações econômicas, demográficas e sociais discrepantes entre os países alimentam as divergências políticas entre eles e trazem enormes dificuldades para alcançar consensos. Quando a Convenção-Quadro foi redigida, no início da década de 90, já ocorriam importantes controvérsias sobre as responsabilidades dos países em desenvolvimento e dos desenvolvidos nas emissões de GEE. Para agravar a situação, desde então, alguns países em desenvolvimento, como a China, a Índia e alguns produtores de petróleo, viram suas emissões aumentarem consideravelmente. A China, a maior emissora de CO2 desde meados da primeira década do século XXI, registra, atualmente, quase o dobro das emissões dos EUA, que estão na segunda posição nesse quesito.

Entretanto, como defendem a China, a Índia e mesmo o Brasil, qualquer negociação sobre novos acordos ou metas deve ser sempre balizada em comparações per capita e com base no nível de desenvolvimento de cada país, dado que alguns apresentam mais recursos e flexibilidade para investir em tecnologias mais limpas. Quando levamos em consideração esses parâmetros, o quadro é bastante distinto em relação às emissões absolutas. Em geral, países que são grandes produtores de petróleo, apresentam maior renda per capita ou estão localizados em regiões temperadas tendem a apresentar índices mais elevados.

O Brasil, nesse contexto, tem-se posicionado historicamente como defensor da ideia de desenvolvimento sustentável e do princípio das responsabilidades diferenciadas entre os governos. Além do alinhamento geral com grandes países emergentes ao longo de todo o período, a diplomacia nacional trabalhou ativamente com os EUA na formulação e na implementação do MDL. Em 2015, no quadro da NDC do Acordo de Paris, o País propôs a redução das emissões de GEE “em 37% dos níveis de 2005, em 2025” e “43% abaixo dos níveis de 2005, em 2030”.[7] Entretanto, ainda pairam grandes dúvidas a respeito de que as metas estipuladas sejam alcançadas no período, diante da recente aceleração do desflorestamento na Amazônia (um dos principais responsáveis pela emissão de GEE no País), ao mesmo tempo em que importantes integrantes da cúpula de Michel Temer não escondem seu desconforto com os moldes da participação brasileira no Acordo de Paris.[8]

Essa teia de acordos, que apresenta enorme potencial de eficácia no combate às mazelas globais ecológicas, tem gerado e reproduzido importantes contradições que podem comprometer todo o esforço mundial de promover o desenvolvimento econômico em bases mais limpas do que no passado. Assim, a ausência de atualização periódica em relação às listas do Protocolo de Kyoto tem produzido casos flagrantes de oportunismo em relação a alguns países outrora “em desenvolvimento”. As monarquias do Golfo Pérsico, apesar de apresentarem elevadíssimos índices de renda per capita e colocarem-se entre os maiores poluidores em termos relativos, mantém-se livres das atribuições reservadas aos países do Anexo I. Não menos grave tem sido o desengajamento de países centrais desses regimes. Além do exemplo notório dos EUA, que já se haviam negado a aprovar o Protocolo de Kyoto e, mais recentemente, têm buscado a desvinculação do Acordo de Paris, outras potências têm seguido esses passos. O Canadá, alegando problemas econômicos, retirou-se do Protocolo de Kyoto em 2012, enquanto a Rússia decidiu não participar da segunda rodada de redução das emissões no âmbito desse instrumento e encontra forte oposição interna para ratificar o Acordo de Paris.

Apesar de o regime internacional de mudanças climáticas ter conhecido inegáveis avanços e contar com elementos cada vez mais eficazes de supervisão e de controle nas últimas décadas, nada assegura que o sistema continue na mesma direção. Diferentemente das décadas anteriores, quando o desinteresse pela questão era maior em países em desenvolvimento, em tempos recentes, temos verificado um aumento das críticas em países mais ricos. Nesse sentido, o caso dos EUA parece-nos menos como uma exceção e, cada vez mais, infelizmente, como uma regra. Ao mesmo tempo, países de industrialização mais tardia, como a China e a Índia, têm-se colocado como protagonistas no desenvolvimento de uma matriz energética mais limpa, dados os graves problemas ambientais a que suas populações têm-se submetido.


[1] UNITED NATIONS. Department of Economic and Social Affairs. Sustainable Development Goals. Disponível em: <https://sustainabledevelopment.un.org/?menu=1300>. Acesso em: 26 jul. 2017.

[2] Essa categoria é usada de forma abrangente no sistema ONU e é atualizada anualmente pela Assembleia Geral. Foi decidido, em 2016, que Angola, por exemplo, deixará de ser um país de menor desenvolvimento em 2021.

[3] Institui um sistema de créditos de carbono, cujas autoridades emissoras são, geralmente, governos (nacionais ou locais), que se baseia numa lógica de incentivos econômicos, para promover a redução de gases do efeito estufa. De forma geral, as empresas que pretendem aumentar suas emissões precisam comprar créditos de carbono do próprio governo ou de outras empresas detentoras desses créditos.

[4] Permite a determinada parte dos países do Anexo 1 investir em projetos de redução de carbono, em países em desenvolvimento.

[5] Permite que dado país do Anexo 1 invista em projetos de redução de emissão em outro país “B” dessa lista. Nesse caso, a redução será contabilizada a favor do primeiro; o segundo, por sua vez, auferirá o aporte de investimentos estrangeiros e a transferência de tecnologia.

[6] THE WORLD BANK. Total greenhouse gas emissions (kt of CO2 equivalent). 2017. Disponível em: <http://data.worldbank.org/indicator/EN.ATM.GHGT.KT.CE>. Acesso em: 27 jul. 2017.

[7] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Pretendida contribuição nacionalmente determinada para consecução do objetivo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre mudança do clima. [2015]. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_desenvsust/BRASIL-iNDC-portugues.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2017.

[8] GINARDI, G. Para Blairo Maggi, metas brasileiras para o clima são só ‘intenção’. Portal Estadão, 17 de novembro de 2016. Disponível em: <http://sustentabilidade.estadao.com.br/blogs/ambiente-se/para-blairo-maggi-metas-brasileiras-para-o-clima-sao-so-intencao/>. Acesso em: 31 jul. 2017.

Editorial

O acordo Mercosul-União Europeia: novos capítulos, novas incertezas

A negociação de um acordo entre o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a União Europeia (UE) tem sido uma das prioridades na política externa do Governo Temer, especialmente após a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, que fez com que as expectativas brasileiras de uma abrangente parceria comercial hemisférica se esvaecessem. As tratativas de implementação de uma área de livre-comércio entre os dois blocos, as quais se arrastam há pelo menos duas décadas, conheceram importantes desdobramentos recentes, com a apresentação recíproca de propostas atualizadas. A enorme relevância política, econômica e cultural do bloco europeu para o Brasil e para o RS, a abrangência setorial do futuro acordo e as expectativas sobre seus possíveis efeitos nas economias nacional e estadual tornam imprescindível a discussão do tema neste momento, e cabe à Fundação de Economia e Estatística cumprir essa tarefa. Mesmo com as substanciais mudanças no comando do Brasil e da Argentina, a provável permanência da orientação política dos países-chave da UE em horizonte próximo e com a retirada dos EUA de acordos comerciais, o acordo padece de dificuldades crônicas e enfrenta desafios adicionais, os quais, no mínimo, podem retardar sua celebração por alguns anos.

A reativação das conversações entre o Mercosul e a UE ocorre em um momento bastante conturbado da política e da economia global. A eleição de Donald Trump, crítico aos grandes acordos de livre-comércio dos quais os EUA participam, a vitória do projeto contrário à UE no Reino Unido (Brexit) e a emergência de movimentos contestatórios com viés nacionalista e antiliberais em todos os países europeus, com graus variáveis de extremismo e de sucesso eleitoral até o momento, sinalizam a tendência de fortalecimento do protecionismo comercial nos países desenvolvidos. Ao mesmo tempo, diversos países latino-americanos têm testemunhado a emergência de governos mais propensos a abraçar abrangentes acordos comerciais e a inserção global atrelada aos centros hegemônicos tradicionais e menos suscetíveis aos crônicos problemas sociais na região.

De forma geral, os negociadores da UE têm sofrido enormes dificuldades para celebrar acordos econômicos com grandes atores da economia mundial. Além das dificuldades em concluir um acordo com os EUA, como vimos em publicação passada da Panorama Internacional1, os europeus têm enfrentado desafios para estabelecer instrumento análogo com a Índia, com as monarquias do Golfo Pérsico, e até mesmo com a Austrália e o Japão. As exceções mais notáveis são alguns países em sua borda oriental que se encontram em intenso conflito com a Rússia, como a Ucrânia, alguns países da África Ocidental, onde a influência francesa ainda se faz presente, e a Coreia do Sul. A situação estratégica da União Europeia obriga-a a concentrar esforços na resolução de complexos entraves políticos, como o próprio Brexit, a distribuição dos contingentes de refugiados entre os seus membros, o acirramento das tensões com a Rússia e, recentemente, a deterioração das relações entre a Alemanha e os Estados Unidos sob Trump. O adensamento de laços com os chineses divide a opinião dos governos na região: enquanto a Alemanha vislumbra a possibilidade de aumentar suas exportações aos asiáticos, outros, como a Itália e a Espanha, veem-se aflitos diante da possibilidade de acumularem maiores déficits com os chineses.

O pesquisador Robson Valdez traz-nos a contextualização da interação entre a UE e o Mercosul, na qual se insere o acordo em questão. Ao realizar uma retrospectiva desde a década de 90, o autor aponta alguns dados sobre a situação atual do comércio entre os blocos. Chama a atenção para a acentuada assimetria entre os dois blocos: enquanto a UE é o principal parceiro para o Mercosul (se tomarmos “parceiro comercial” tanto países individuais como grupos de países que negociam em conjunto), este se posiciona apenas em 8.º lugar no comércio externo da UE. Uma eventual modificação nos dispositivos que regulam o fluxo comercial entre ambos os blocos deverá trazer mais impactos para o Mercosul do que para a UE.

O que realmente há de novidade na retomada das conversações desde maio de 2016? Ao analisar a renovação das propostas de ambas as partes, o pesquisador André Scherer identifica uma alteração mais substancial e liberalizante por parte do Mercosul, que incluiu uma parcela maior de itens a serem objeto de redução de tarifas, às quais foram conferidos prazos mais exíguos para sua eliminação, como pretendem os europeus. A União Europeia, possivelmente antecipando uma alteração na conduta de seus interlocutores, incluiu novas listas de exceção para seus produtos, inclusive para determinados itens relevantes na economia gaúcha, como fumo e carne de gado. Apesar da mudança recente na orientação política de países-chave da América do Sul, como o Brasil e a Argentina, da consequente posição mais liberalizante dos negociadores do Mercosul, da permanência da orientação estratégica (pró-comércio) nas capitais europeias (com a recente vitória de Emmanuel Macron na França e a provável continuidade da coalizão governante na Alemanha) e do desengajamento dos Estados Unidos nos acordos comerciais, gerando oportunidades no comércio entre europeus e sul-americanos, é bem provável que as negociações do acordo Mercosul-UE, que se arrastam há duas décadas, sejam permeadas por entraves que podem retardar sua conclusão.

Grande parte dessas dificuldades encontra-se no outro lado do Atlântico, como expõem os analistas Augusto P. de Bem e Ricardo Leães. Nas condições atuais de negociação, é pouco provável que o acordo contemple a liberalização do comércio agrícola entre os dois blocos, em função do tradicional lobby agrícola na UE, o qual, apesar de ser prócer de um setor pouco relevante para a economia daquele bloco, apresenta uma forte influência política. Os países do Leste Europeu, incorporados à UE a partir de 2004 e com cada vez mais poder político no bloco, também tendem a endossar posições mais protecionistas no comércio agrícola e menos restritivas no setor de serviços, dado o contingente de mão de obra qualificada e de relativo menor custo.

Além da oposição crônica de determinados segmentos europeus, importantes desdobramentos recentes na América do Sul devem complicar o cenário. Como aponta um dos autores deste número, Róbson Valdez, indefinições políticas tanto na Europa como no Mercosul podem retardar a conclusão do acordo, esperado para ocorrer em 2018. Nos últimos meses, tem-se verificado que os parceiros europeus permanecem bastante cautelosos e veladamente críticos aos desdobramentos políticos no Brasil, sobretudo em relação ao Governo Temer. De forma bastante emblemática, a chanceler alemã, Angela Merkel, cujo governo tem sido entusiasta da promoção de acordos extrarregionais, inclusive com o Mercosul, realizou recentemente um giro na América Latina, com paradas na Argentina e no México, para angariar apoio no G-20, deixando de lado a nação regionalmente mais representativa, o Brasil. Esse incômodo foi explicitado em uma recente publicação da Fundação Konrad Adenauer, ligada ao partido da chanceler, a União Democrata-Cristã (CDU), cuja conclusão assevera a dificuldade de resolução dos impasses políticos no Brasil, com danos à sua posição internacional2.

Nas entrevistas deste número, o leitor perceberá que persistem importantes controvérsias no debate político brasileiro a respeito do desenho mais adequado à política comercial do País. Por um lado, parte do empresariado nacional, mesmo em alguns segmentos da indústria, vislumbra oportunidades de negócio e de aprimoramento em sua capacidade competitiva com a vigência do acordo. Outros, contudo, mostram-se incomodados com a possível entrada de concorrentes europeus no próprio mercado nacional, de forma semelhante à abertura da década de 90. Esses interesses divergentes materializam-se não apenas entre empresários, mas na base governista no Congresso Nacional, da qual Temer depende para a aprovação de diversas reformas. A administração dos conflitos entre aliados certamente será um aspecto adicional que poderá interferir nos resultados das negociações sobre o acordo com a UE. Na presente publicação, buscamos contribuir para o debate necessário sobre política comercial, a qual pode impactar não apenas a formulação de políticas públicas no âmbito estadual ou as decisões do setor privado, mas a própria configuração da geografia econômica do Estado. Entendemos que a FEE deve não apenas coletar dados e divulgá-los para a sociedade, mas também fazer análises e lançar temas que têm o potencial de afetar o conjunto da sociedade gaúcha, como é o caso dos acordos comerciais.

Boa leitura!


1 PANORAMA INTERNACIONAL FEE. Porto Alegre: FEE, v. 1, n. 4, 2016. Disponível em: . Acesso em: 4 jul. 2017.

2 WOISCHNIK, J.; STEINMEYER, A. Brasilien – kein Weg aus der Krise? Landsbericht, [S.l.], 13 Juni 2017. Disponível em: . Acesso em: 3 jul. 2017.

Go East! A atualização da estratégia e das táticas na política externa dos EUA para a Ásia

No final de 2011, um artigo da revista Foreign Policy asseverava que os Estados Unidos estavam promovendo uma mudança de ênfase em sua política externa. Esse texto era assinado por ninguém menos do que a então Secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton. No subtítulo, lia-se que “o futuro da política vai ser decidido na Ásia e não no Afeganistão ou no Iraque”[1], e, assim, conclamava-se que os Estados Unidos assumissem um protagonismo na emergência da Ásia Oriental como centro econômico e, cada vez mais, geopolítico. Para isso, defendia-se que os Estados Unidos, em vez de simplesmente trazerem de volta suas tropas usadas nos dois países mencionados, deveriam realocá-las na região da Ásia-Pacífico, de forma a que o País conservasse sua condição de liderança e de garantidor da ordem global liberal.

É notável que o artigo, assim como outros discursos da Casa Branca e do Departamento de Estado norte-americano, se esforça para evitar uma retórica explícita de oposição à China, ao que indica, a principal novidade da estratégia norte-americana para a Ásia. A presença e a hegemonia militar e econômica dos Estados Unidos na região, como veremos, têm sido constantes ao longo das últimas décadas, e não exatamente uma novidade recente.

O pivô para a Ásia-Pacífico corresponde a uma estratégia de fazer frente à China, que, por sua vez, explica as novas táticas adotadas mesmo antes da publicação do artigo de Clinton. A mudança estratégica, que em alguns aspectos já se observa desde a década de 90, origina-se da reafirmação da supremacia regional dos EUA em um contexto de rápida ascensão chinesa. Para cumprir essa tarefa, não apenas se prevê a reconcentração de forças militares pela região, como também se propõem projetos quanto à regulação do comércio, a iniciativas diplomáticas e ao robustecimento das alianças militares com o Japão, com a Coreia do Sul e com países do Sudeste Asiático. Entretanto, a orientação geral da política exterior norte-americana permanece a mesma em relação às décadas passadas, isto é, de manter o País como a principal força promotora de regimes de comércio, fluxos econômicos, navegação e meio ambiente naquela região.

A presença atual dos Estados Unidos na Ásia não é novidade. Ainda em meados do século XIX, o País ganhou relevância no Pacífico, como evidenciam os episódios de emprego da marinha para impor tratados à China e ao Japão. No final do século, os EUA emergiam como uma grande força no Oceano Pacífico, com as conquistas dos territórios do Havaí e das Filipinas. Após a Segunda Guerra Mundial, a supremacia dos EUA consagrou-se com a derrota do Japão e com o enfraquecimento relativo da Grã-Bretanha e da França. Desde então, os Estados Unidos conservam a primazia na Ásia-Pacífico, graças à manutenção, nessa parte do mundo, de grande parcela de sua frota naval, ao cultivo de uma densa rede de aliados regionais e de bases militares ao longo de uma faixa que se inicia no Alasca, passando por Ilhas Aleutas, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Filipinas, até a Malásia, inclusive com o controle de fato do Estreito de Malaca, por onde passam importantes rotas marítimas globais. Essa presença maciça na Ásia-Pacífico, equiparável apenas à relevância da Europa Ocidental, foi uma constante na ação externa dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, no propósito de não apenas barrar um possível avanço militar da União Soviética e da República Popular da China, como também de instrumentalizar a dissuasão nuclear contra ambas as nações.

Além da presença militar, a política externa norte-americana estimulou explicitamente o empoderamento econômico de diversos países daquela região, e o Plano Colombo é exemplar[2]. Essa política pode ser entendida, seja por questões estratégicas, para o enfrentamento de ameaças comuns, seja por ambições econômicas, dada a crescente transnacionalização de conglomerados empresariais norte-americanos. O Japão logrou sua reconstrução econômica ainda no final da década de 50, graças, também, à preexistência de importantes grupos econômicos nacionais, entre outros fatores. Nas décadas seguintes, sucederam-se “ondas” de milagres econômicos, como a dos Tigres Asiáticos nos anos 70 e 80 (Coreia do Sul, Hong Kong, Singapura e Taiwan) e dos Novos Tigres nas décadas seguintes (Filipinas, Indonésia, Malásia, Tailândia e, mais recentemente, Vietnã).

No caso chinês, ainda em 1971, o País não apenas normalizava as relações com os Estados Unidos, como também revia seu posicionamento global, tornando-se um importante aliado na oposição à União Soviética. Isso permitiu o influxo de investimentos dos próprios Estados Unidos e principalmente do Japão, mesmo antes das reformas econômicas de Deng Xiaoping, no final da década. Desde então, o avanço econômico da China tem sido notável, pois confere pujança ao País nas economias regional e global. A dissolução da União Soviética em 1991 e a emergência de uma China economicamente forte e politicamente mais confiante passaram a ser, cada vez mais, alvo de preocupação nos EUA, ainda que segmentos econômicos nesse país mantivessem interesse na continuidade do progresso chinês. O resultado foi uma política externa norte-americana ambígua em relação à China nesse período: se, por um lado, os EUA dificultaram a adesão chinesa à Organização Mundial do Comércio e proibiram o comércio de armamentos por conta dos trágicos eventos de 1989[3], por outro não interromperam ou sequer diminuíram o volume dos fluxos econômicos entre os dois países.

Durante a campanha eleitoral em 2008, Barack H. Obama e seus correligionários enfatizavam a necessidade de os Estados Unidos “voltarem-se” ao continente asiático e criticavam a permanência de militares no Iraque e no Afeganistão. Após ele assumir a presidência em 2009, as relações diplomáticas com a China deterioraram-se diante de desentendimentos nas políticas comercial, monetária e de meio ambiente. Ademais, a disputa sobre o controle de territórios marítimos entre os países da região, inclusive entre a China e alguns dos aliados locais dos EUA, agravou-se no período.

Nesse contexto, o pivô Ásia-Pacífico engloba táticas em pelo menos três frentes. A primeira delas é militar e ocorre via ampliação do contingente estacionado no Japão e, em menor escala, na Austrália e na Tailândia. Há, também, um processo análogo quanto à Marinha, em que se prevê o aumento de 50% para 60% do potencial naval total dos EUA alocado na região.[4] Do ponto de vista qualitativo, chama a atenção o lançamento de uma doutrina de Batalha Ar-Mar, cujo desenho, de acordo com especialistas militares norte-americanos, é uma resposta ao desenvolvimento da doutrina do tipo “Negação de Acesso e Área” por países inclusive a China.

A segunda forma de atuação dá-se por mecanismos econômicos, cujo carro-chefe tem sido a Parceria Transpacífico (TPP, de sua abreviação em inglês). O TPP, que foi assinado no início de 2016 e aguarda ratificações, abrange questões que vão além da liberalização comercial, como regulação do trabalho, direitos de propriedade e outros temas, e envolve 11 países da bacia do Pacífico, com as notáveis exceções da China e da Rússia.[5] O terceiro método de promoção da influência tem sido a própria diplomacia, via ampliação e fortalecimento de alianças regionais, sobretudo a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean), com a qual se assinou um tratado de amizade. Além disso, cabe destacar a continuidade e, em alguns casos, o aprofundamento nas relações bilaterais com a Índia[6], a Coreia do Sul e o Japão, um processo que já era visível durante a administração Bush.

O pivô asiático é um processo em curso, interpretado como uma readaptação estratégica dos EUA diante da percepção de que a China questione a correlação de forças atual, mais favorável atualmente a Washington do que a Pequim. Embora a China tenha ganhado espaço no plano econômico e aumentado os dispêndios militares, mitigando o abismo em relação aos EUA, estes últimos permanecem na dianteira sob diversos prismas, como na competição militar (sobretudo marítima), na influência sobre atores regionais, no nível de desenvolvimento tecnológico e na capacidade de impor regras e regimes a outros países. Essa estratégia tem sido possível graças ao gradual desengajamento norte-americano no Oriente Médio, ainda que graves problemas na Europa, sobretudo na Ucrânia, possam distrair Washington. Ademais, essa nova conjuntura reserva a outras partes do mundo, especialmente à América do Sul e à África Subsaariana, um papel ainda mais secundário entre as prioridades estratégicas dos EUA.


[1]  CLINTON, H. America’s Pacific Century: the future of politics will be decided in Asia, not Afghanistan or Iraq, and the United States will be right at the center of the action. Foreign Affairs, Washington, DC, 11 Oct. 2011. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2016.

[2]  Por vezes apelidado de “Plano Marshall da Ásia”, em referência ao plano de reconstrução da Europa, o Plano Colombo é, na realidade, uma organização internacional, cujo propósito não era a reconstrução econômica, mas o desenvolvimento de países no Sul, no Sudeste e no Leste Asiático.

[3]  Nesse ano, registram-se protestos em várias cidades na China, respondidos com vigorosa força pelas autoridades nacionais, chegando a provocar um massacre na Praça Celestial, em Pequim.

[4]  SUTTER, R. G. et al. Balancing acts:  the U.S. rebalance and Asia-Pacific stability. Disponível em:. Acesso em 13 set. 2016.

[5]  Para uma visão mais aprofundada acerca do TPP e de outros mega-acordos comerciais, ver: VALDEZ, R. O Brasil e os mega-acordos comerciais. Panorama Internacional FEE, Porto Alegre, v. 1, n. 4, 2016. Disponível em: . Acesso em 14 set. 2016.

[6]  Em 2010, a Índia recebeu apoio explícito dos EUA para assumir um assento permanente em uma eventual reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Estados Unidos: “em guerra permanente”

Cristina Soreanu Pecequilo é professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e dos Programas de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e em Ciências Sociais da Unesp-Marília. É Pesquisadora Associada do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Nerint-UFRGS) e do Grupo de Estudo Inserção Internacional Brasileira: Projeção Global e Regional (UFABC e Unifesp). Mestre e Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de dois livros sobre o tema desta entrevista: Os Estados Unidos e o século XXI (Ed. Elsevier) e A política externa dos Estados Unidos (Ed. UFRGS).

Em entrevista ao Panorama, Cristina avalia o contexto atual nos Estados Unidos, país que, segundo ela, vive uma guerra de secessão política e social. A pesquisadora pondera que as eleições de 2016 nos Estados Unidos foram polarizadas, incitando a violência e o preconceito. Cristina também opina sobre as mudanças na política externa de Barack Obama em relação à de Bush e discute o papel geopolítico do Brasil na estratégia geopolítica norte-americana.

Panorama: Logo no início de seu mandato, em 2009, Barack Obama buscou deixar claras suas intenções diferentes em matéria de política externa, comparada à da Era Bush (2001-08). Mencionava, por exemplo, retirada das tropas do Afeganistão e do Iraque, fim da Prisão de Guantánamo e reset das relações com a Rússia. Na sua avaliação, o que realmente mudou na política externa entre Bush e Obama?

A principal mudança na política externa de Obama, quando comparada à do governo de Bush filho, refere-se ao estilo tático e retórico. Enquanto Bush agia de forma unilateral e detinha um tom militarista em sua agenda, mesmo antes dos atentados terroristas de 11/09, Obama preocupou-se em traduzir os atos hegemônicos em pautas multilaterais e cooperativas. Com isso, havia uma certa aceitação da comunidade internacional de suas posturas, ainda que, na prática, um exame mais atento demonstrasse elevado nível de continuidade entre as gestões democrata e republicana. Dentre os elementos de continuidade, destacam-se a prevalência da supremacia militar norte-americana, a manutenção da projeção de poder no Oriente Médio, a despeito das retiradas das tropas de Iraque e Afeganistão, a tensão das relações russo-americanas, com foco em temas como a Síria, os programas de espionagem, dentre outros. Porém Obama surge como mais bem-sucedido que Bush por conta de ações de impacto, como a retomada das relações diplomáticas com Cuba, que encobrem tensões e fragmentações, como a ascensão do Estado Islâmico.

Panorama: Muitos analistas apontam a fragilidade da retomada da economia norte-americana após a crise de 2007-09, bem como o aumento das desigualdades que caracteriza as últimas décadas nos EUA. No noticiário recente, percebe-se também um agravamento dos episódios de violência racial. De que modo esses problemas sociais e econômicos interferem na política norte-americana?

Os Estados Unidos são um país em guerra permanente, tanto dentro quanto fora de suas fronteiras. Externamente, as demandas da expansão e da projeção militar geram déficits constantes nas contas públicas, que não têm previsão de serem revistos. Internamente, a retomada da economia não é capaz de gerar empregos de forma sistemática, o que eleva o nível de desemprego a mais de 10% em vários estados norte-americanos, especialmente os afetados pela competição externa. Igualmente, é um país marcado pela queda de renda, pela estagnação de salários e por tensões raciais. Os déficits público e comercial somente enfraquecem a economia. Todo esse cenário é exemplificado nas explosões de violência diárias que o País vive e que não se resumem à violência racial, mas expandem-se para gênero, opções sexuais, escolhas ideológicas e levam a uma política polarizada. O símbolo desse processo é a candidatura Trump: ela simboliza toda a raiva e insatisfação que emanam da sociedade pela crise econômica, pelo medo e pelas fragmentações geradas pelo avanço das minorias negra e hispânica como majoritárias na população e a proporcional perda de espaço do que é chamado de América “WASP”, branca, anglo-saxã e protestante. É um país que vive uma guerra de secessão política e social.

Panorama: As eleições de 2016 nos Estados Unidos chamaram a atenção para uma intensa polarização, não apenas entre republicanos e democratas, mas também ao longo das eleições primárias. Existe algum paralelo entre esse contexto e a polarização política também em curso no Brasil?

A polarização das eleições de 2016 nos Estados Unidos, associada à incitação da violência e dos preconceitos, principalmente pelo candidato republicano, que deixa vazio o espaço de discussão de projetos políticos, é reflexo das transformações sociais pelas quais passa o País. Tais transformações, relacionadas a mudanças de renda, etnia, ideologia, perfil populacional, são comuns a vários países, dentre eles o Brasil, e a muitas nações da União Europeia (e no mundo em geral). Na ausência do debate construtivo, o que se busca são ataques pessoais e ofensivos, que procuram externalizar sempre o problema para um “outro”, seja o imigrante, seja o de gênero, raça ou religião diferente. O que se observa é uma tendência à xenofobia, à falta de tolerância e de diálogo de uma forma ampla. A questão é que poucos têm-se mobilizado para tentar retomar um debate construtivo e que não seja sustentado em preconceitos. Os tempos são difíceis, mas é preciso tentar retomar certo ponto de equilíbrio. Épocas históricas sem esse equilíbrio foram seguidas de grandes catástrofes humanitárias, como a Segunda Guerra Mundial e a experiência nazista.

Panorama: Pelos discursos do novo governo no Brasil, a agenda voltada à integração regional e ao multilateralismo deve dar lugar a uma inserção externa com maior atenção a Washington e a outras economias avançadas. Qual deve ser o papel do Brasil na estratégia geopolítica dos EUA e como tal estratégia pode interferir nas nossas decisões econômicas?

Um Brasil alinhado aos Estados Unidos, sem foco na integração regional na América do Sul, distante de seus parceiros nas coalizões dos emergentes como os BRICS (Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul), é um país fraco e, portanto, subordinado aos norte-americanos. Todos os períodos nos quais o Brasil buscou essa postura foram de poucas conquistas internas e externas, visto que se perde poder de barganha e se condicionam as decisões econômicas à política dos Estados Unidos. O papel geopolítico do Brasil vis-à-vis os norte-americanos é irrelevante. Paradoxalmente, os Estados Unidos temem, mas reconhecem um Brasil forte. No entanto, preferem um Brasil fraco, ainda que isso tenha custos sociais, políticos e estratégicos maiores na América do Sul. A aposta no eixo Norte-Sul e na relativização das parcerias Sul-Sul é prejudicial ao Brasil, mas é cíclica nas relações internacionais do País devido ao peso norte-americano.