Editorial

O acordo Mercosul-União Europeia: novos capítulos, novas incertezas

A negociação de um acordo entre o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a União Europeia (UE) tem sido uma das prioridades na política externa do Governo Temer, especialmente após a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, que fez com que as expectativas brasileiras de uma abrangente parceria comercial hemisférica se esvaecessem. As tratativas de implementação de uma área de livre-comércio entre os dois blocos, as quais se arrastam há pelo menos duas décadas, conheceram importantes desdobramentos recentes, com a apresentação recíproca de propostas atualizadas. A enorme relevância política, econômica e cultural do bloco europeu para o Brasil e para o RS, a abrangência setorial do futuro acordo e as expectativas sobre seus possíveis efeitos nas economias nacional e estadual tornam imprescindível a discussão do tema neste momento, e cabe à Fundação de Economia e Estatística cumprir essa tarefa. Mesmo com as substanciais mudanças no comando do Brasil e da Argentina, a provável permanência da orientação política dos países-chave da UE em horizonte próximo e com a retirada dos EUA de acordos comerciais, o acordo padece de dificuldades crônicas e enfrenta desafios adicionais, os quais, no mínimo, podem retardar sua celebração por alguns anos.

A reativação das conversações entre o Mercosul e a UE ocorre em um momento bastante conturbado da política e da economia global. A eleição de Donald Trump, crítico aos grandes acordos de livre-comércio dos quais os EUA participam, a vitória do projeto contrário à UE no Reino Unido (Brexit) e a emergência de movimentos contestatórios com viés nacionalista e antiliberais em todos os países europeus, com graus variáveis de extremismo e de sucesso eleitoral até o momento, sinalizam a tendência de fortalecimento do protecionismo comercial nos países desenvolvidos. Ao mesmo tempo, diversos países latino-americanos têm testemunhado a emergência de governos mais propensos a abraçar abrangentes acordos comerciais e a inserção global atrelada aos centros hegemônicos tradicionais e menos suscetíveis aos crônicos problemas sociais na região.

De forma geral, os negociadores da UE têm sofrido enormes dificuldades para celebrar acordos econômicos com grandes atores da economia mundial. Além das dificuldades em concluir um acordo com os EUA, como vimos em publicação passada da Panorama Internacional1, os europeus têm enfrentado desafios para estabelecer instrumento análogo com a Índia, com as monarquias do Golfo Pérsico, e até mesmo com a Austrália e o Japão. As exceções mais notáveis são alguns países em sua borda oriental que se encontram em intenso conflito com a Rússia, como a Ucrânia, alguns países da África Ocidental, onde a influência francesa ainda se faz presente, e a Coreia do Sul. A situação estratégica da União Europeia obriga-a a concentrar esforços na resolução de complexos entraves políticos, como o próprio Brexit, a distribuição dos contingentes de refugiados entre os seus membros, o acirramento das tensões com a Rússia e, recentemente, a deterioração das relações entre a Alemanha e os Estados Unidos sob Trump. O adensamento de laços com os chineses divide a opinião dos governos na região: enquanto a Alemanha vislumbra a possibilidade de aumentar suas exportações aos asiáticos, outros, como a Itália e a Espanha, veem-se aflitos diante da possibilidade de acumularem maiores déficits com os chineses.

O pesquisador Robson Valdez traz-nos a contextualização da interação entre a UE e o Mercosul, na qual se insere o acordo em questão. Ao realizar uma retrospectiva desde a década de 90, o autor aponta alguns dados sobre a situação atual do comércio entre os blocos. Chama a atenção para a acentuada assimetria entre os dois blocos: enquanto a UE é o principal parceiro para o Mercosul (se tomarmos “parceiro comercial” tanto países individuais como grupos de países que negociam em conjunto), este se posiciona apenas em 8.º lugar no comércio externo da UE. Uma eventual modificação nos dispositivos que regulam o fluxo comercial entre ambos os blocos deverá trazer mais impactos para o Mercosul do que para a UE.

O que realmente há de novidade na retomada das conversações desde maio de 2016? Ao analisar a renovação das propostas de ambas as partes, o pesquisador André Scherer identifica uma alteração mais substancial e liberalizante por parte do Mercosul, que incluiu uma parcela maior de itens a serem objeto de redução de tarifas, às quais foram conferidos prazos mais exíguos para sua eliminação, como pretendem os europeus. A União Europeia, possivelmente antecipando uma alteração na conduta de seus interlocutores, incluiu novas listas de exceção para seus produtos, inclusive para determinados itens relevantes na economia gaúcha, como fumo e carne de gado. Apesar da mudança recente na orientação política de países-chave da América do Sul, como o Brasil e a Argentina, da consequente posição mais liberalizante dos negociadores do Mercosul, da permanência da orientação estratégica (pró-comércio) nas capitais europeias (com a recente vitória de Emmanuel Macron na França e a provável continuidade da coalizão governante na Alemanha) e do desengajamento dos Estados Unidos nos acordos comerciais, gerando oportunidades no comércio entre europeus e sul-americanos, é bem provável que as negociações do acordo Mercosul-UE, que se arrastam há duas décadas, sejam permeadas por entraves que podem retardar sua conclusão.

Grande parte dessas dificuldades encontra-se no outro lado do Atlântico, como expõem os analistas Augusto P. de Bem e Ricardo Leães. Nas condições atuais de negociação, é pouco provável que o acordo contemple a liberalização do comércio agrícola entre os dois blocos, em função do tradicional lobby agrícola na UE, o qual, apesar de ser prócer de um setor pouco relevante para a economia daquele bloco, apresenta uma forte influência política. Os países do Leste Europeu, incorporados à UE a partir de 2004 e com cada vez mais poder político no bloco, também tendem a endossar posições mais protecionistas no comércio agrícola e menos restritivas no setor de serviços, dado o contingente de mão de obra qualificada e de relativo menor custo.

Além da oposição crônica de determinados segmentos europeus, importantes desdobramentos recentes na América do Sul devem complicar o cenário. Como aponta um dos autores deste número, Róbson Valdez, indefinições políticas tanto na Europa como no Mercosul podem retardar a conclusão do acordo, esperado para ocorrer em 2018. Nos últimos meses, tem-se verificado que os parceiros europeus permanecem bastante cautelosos e veladamente críticos aos desdobramentos políticos no Brasil, sobretudo em relação ao Governo Temer. De forma bastante emblemática, a chanceler alemã, Angela Merkel, cujo governo tem sido entusiasta da promoção de acordos extrarregionais, inclusive com o Mercosul, realizou recentemente um giro na América Latina, com paradas na Argentina e no México, para angariar apoio no G-20, deixando de lado a nação regionalmente mais representativa, o Brasil. Esse incômodo foi explicitado em uma recente publicação da Fundação Konrad Adenauer, ligada ao partido da chanceler, a União Democrata-Cristã (CDU), cuja conclusão assevera a dificuldade de resolução dos impasses políticos no Brasil, com danos à sua posição internacional2.

Nas entrevistas deste número, o leitor perceberá que persistem importantes controvérsias no debate político brasileiro a respeito do desenho mais adequado à política comercial do País. Por um lado, parte do empresariado nacional, mesmo em alguns segmentos da indústria, vislumbra oportunidades de negócio e de aprimoramento em sua capacidade competitiva com a vigência do acordo. Outros, contudo, mostram-se incomodados com a possível entrada de concorrentes europeus no próprio mercado nacional, de forma semelhante à abertura da década de 90. Esses interesses divergentes materializam-se não apenas entre empresários, mas na base governista no Congresso Nacional, da qual Temer depende para a aprovação de diversas reformas. A administração dos conflitos entre aliados certamente será um aspecto adicional que poderá interferir nos resultados das negociações sobre o acordo com a UE. Na presente publicação, buscamos contribuir para o debate necessário sobre política comercial, a qual pode impactar não apenas a formulação de políticas públicas no âmbito estadual ou as decisões do setor privado, mas a própria configuração da geografia econômica do Estado. Entendemos que a FEE deve não apenas coletar dados e divulgá-los para a sociedade, mas também fazer análises e lançar temas que têm o potencial de afetar o conjunto da sociedade gaúcha, como é o caso dos acordos comerciais.

Boa leitura!


1 PANORAMA INTERNACIONAL FEE. Porto Alegre: FEE, v. 1, n. 4, 2016. Disponível em: . Acesso em: 4 jul. 2017.

2 WOISCHNIK, J.; STEINMEYER, A. Brasilien – kein Weg aus der Krise? Landsbericht, [S.l.], 13 Juni 2017. Disponível em: . Acesso em: 3 jul. 2017.