Texto sob autoria de: Augusto Pinho de Bem

Augusto Pinho de Bem

Pesquisador em Economia da FEE

O acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia: obstáculos intransponíveis?

Há muitos anos, a perspectiva da assinatura de um tratado comercial entre o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a União Europeia (UE) vem ocupando largo espaço na agenda de políticos, empresários, pesquisadores e interessados em geral. De fato, a tentativa para a formalização de um tratado de livre-comércio (TLC) entre o Mercosul e a UE data de 1995, quando da assinatura do Acordo-Quadro de Cooperação Inter-Regional (AQCI). Desde então, apesar de sucessivas manifestações de interesse mútuo para a conclusão do acordo, as partes continuam sem chegar a um entendimento pleno sobre a questão, de modo que ainda permanecem dúvidas sobre as possibilidades concretas para a sua efetivação. Recentemente, com a eleição do liberal Mauricio Macri na Argentina, a posse de Michel Temer no Brasil e a suspensão da Venezuela no Mercosul, especulou-se que o acordo poderia estar mais próximo de ser concluído. Em nossa perspectiva, porém, perduram vários obstáculos para um desfecho positivo para aqueles favoráveis ao tratado.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que as principais adversidades para a viabilização do projeto de livre-comércio entre o Mercosul e a UE partem de três vertentes: (a) há um significativo receio, por parte de produtores agrícolas europeus, de que o acordo signifique um prejuízo insuperável, na medida em que enxergam, na concorrência com os sul-americanos, um risco à sua própria existência no mercado; (b) em decorrência desse fato, alguns sul-americanos, ainda que defendam o acordo, duvidam de um desenlace positivo, por acreditarem que os europeus não abrirão mão de seu protecionismo agrícola; (c) por fim, na América do Sul, há grupos políticos que manifestam uma postura de oposição genérica à assinatura de um TLC com a União Europeia, por considerarem que esse processo representa uma capitulação dos interesses nacionais em relação aos dos europeus, inviabilizando uma estratégia autônoma de desenvolvimento regional.

Ao contrário do que frequentemente é sugerido por analistas e comentadores midiáticos, o maior obstáculo para a conclusão do acordo entre o Mercosul e a UE sempre foi a resistência dos produtores agrícolas europeus, temerosos da concorrência sul-americana. Desde os primeiros anos, os setores ligados à agricultura na Europa manifestaram sua preocupação de que esse tratado os impedisse de competir no mercado de alimentos. De fato, trata-se de produtores que já necessitam de proteção e subsídios no âmbito da União Europeia, por meio da Política Agrícola Comum (PAC), uma das principais da UE.

A PAC foi criada em 1962, tendo como objetivos principais assegurar o abastecimento regular de gêneros alimentícios, manter um equilíbrio entre a cidade e o campo, valorizar os recursos naturais, preservar o meio-ambiente e garantir aos agricultores um rendimento em conformidade com os seus desempenhos. Com seu advento, buscou-se consolidar um único grande mercado comum, dentro do qual os produtos agrícolas pudessem circular livremente, mas com a preferência pelos produtos produzidos na União Europeia. Embora, em tese, a PAC tenha os propósitos de aumentar a produtividade agrícola, salvaguardar fornecimentos regulares aos consumidores e assegurar a estabilização de preços razoáveis, seu objetivo central é proteger os agricultores europeus da concorrência internacional, até para garantir sua presença nas zonas rurais.

A importância do setor agropecuário para a União Europeia fica evidente quando se analisam alguns dados fornecidos pelo Gabinete de Estatísticas da União Europeia (Eurostat). Em 2016, por exemplo, havia 8,73 milhões de indivíduos empregados em atividades agropecuárias na zona rural, cifra que representava 3,99% do total dos empregados.1 Em termos absolutos, os países que concentravam a maior parte desse contingente eram a Romênia (19,37%), a Polônia (18,94%), a Itália (9,45%), a Espanha (8,71%) e a França (8,32%). Já em termos relativos ao total do emprego, os países que apresentavam o maior percentual de mão de obra empregada nessas atividades eram a Romênia (20,73%), a Grécia (11,74%), a Polônia (10,41%), a Lituânia (7,68%) e a Letônia (7,60%).

Ao se tratar da mão de obra empregada na agricultura, deve-se destacar o grande contingente que atua sob a forma de agricultura familiar. Dos 29 países do bloco, 15 empregavam mais de 80% da mão de obra nessa modalidade, sendo que, em apenas quatro, o setor da agricultura familiar correspondia a um montante inferior a 60% do total. Dessa forma, observa-se a importância desse segmento, que, sem as proteções hoje existentes na UE, poderia se tornar bastante vulnerável. É por essa razão, portanto, que os formuladores de políticas públicas da União Europeia dão centralidade à PAC, a fim de evitar eventuais impactos econômicos e sociais negativos que, naturalmente, implicariam o enfraquecimento do setor agrícola europeu.

Na medida em que, ao sul da América Latina, o setor primário se apresenta de modo muito mais competitivo em comparação com o da Europa, é do interesse dos países-membros do Mercosul a liberalização do mercado agrícola da União Europeia, dadas as inúmeras possibilidades de ganhos em termos de exportações para essa região. Por consequência, é justamente esse o ponto que representa o maior empecilho para a adoção de um acordo de livre-comércio entre os dois blocos, uma vez que os produtores agrícolas europeus fazem intensa pressão para que se mantenham as atuais barreiras. Essas, por sua vez, são justificadas porque são vistas como imprescindíveis para a sobrevivência da PAC, construída a tanto custo. Ademais, a União Europeia ainda padece dos significativos efeitos da crise econômico-financeira de 2008, que acarretou taxas de desemprego de dois dígitos em vários estados. Nessas circunstâncias, há um elevado temor de que a desestruturação do setor agrícola tenha um empacto negativo, em termos de perda de postos de trabalho e de renda, caso haja abertura dos mercados agrícolas.

Em face da postura europeia, cresceu o ceticismo entre os integrantes do Mercosul sobre a viabilidade do acordo. Nesse sentido, observa-se que o Paraguai e o Uruguai — em virtude da representatividade de seus setores agrícolas — sempre se mostraram mais favoráveis à implementação do tratado, ao passo que o Brasil e a Argentina, ainda que jamais tenham renunciado ao projeto, passaram a hesitar em relação aos eventuais benefícios advindos desse processo. Em geral, sobretudo em circuitos midiáticos, associa-se a resistência sul-americana à ascensão de governos progressistas na região, com destaque para os de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff no Brasil e os de Néstor e Cristina Kirchner na Argentina.2 Essa caracterização ideológica, no entanto, não representa fielmente a realidade das negociações, ainda que, de fato, guarde aspectos de realidade.

No tocante ao Brasil, por exemplo, já podem ser encontrados sinais de descrédito ainda no mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC), quando, em 2001, em um discurso na Assembleia Nacional Francesa, o então presidente afirmou desejar uma associação comercial entre o Mercosul e a União Europeia, mas ponderou os riscos de que as aspirações protecionistas suplantassem o espírito do livre-comércio. Com efeito, a exposição de FHC teve um forte componente simbólico, uma vez que a França já havia explicitado sua oposição ao acordo. Na perspectiva francesa, o TLC seria extremamente danoso para os seus agricultores e colocaria em risco o próprio sentido da PAC, o que não foi bem recebido pelo Governo brasileiro. Apesar de diferenças pontuais, a linha dada por FHC foi seguida durante a administração de Lula, que também enfatizou os benefícios do livre-comércio e apontou o protecionismo europeu como principal entrave para o avanço das negociações.

Em seguida, o Governo Dilma apresentou interesse em retomar as negociações do acordo, que haviam sido interrompidas entre 2004 e 2010. No entanto, apesar da realização de conferências para discutir a viabilidade do processo, as resistências em relação à abertura ao setor agrícola europeu permaneceram, o que obstaculizou um entendimento amplo sobre o tema. Apesar disso, sempre houve relutância entre alguns grupos do Partido dos Trabalhadores (PT) ao tratado, que era interpretado como um gesto de subserviência em relação aos grandes grupos capitalistas europeus, que impossibilitariam um projeto de desenvolvimento autônomo. Salienta-se, não obstante, que esses setores nunca foram majoritários no seio do Governo brasileiro, que jamais abandonou a retórica de defesa do livre-comércio e do benefício de um TLC com a União Europeia, desde que os europeus aceitassem liberalizar o seu mercado agrícola.

Já com relação à Argentina durante os Governos Kirchner, nota-se uma situação distinta. Ao invés de saudar os supostos benefícios do livre-comércio, os argentinos mostraram-se refratários ao acordo, por considerarem que atravancaria suas tentativas de reindustrialização e ainda colocaria em risco a sobrevivência de seus grupos industriais, como os setores de autopeças, de produtos químicos, de equipamentos elétricos e de bens de capital. Assim, além de demandar um prazo maior para a implementação do tratado, os argentinos exigiram a inclusão de uma ampla lista de setores industriais que ficariam à margem do acordo, o que foi considerado inaceitável pelos representantes europeus. Em virtude desse posicionamento, tornou-se majoritária a posição de que a Argentina de Cristina Kirchner era o verdadeiro obstáculo para que as partes chegassem a um entendimento, de modo que a conclusão de seu mandato e a posse de Macri seria o gatilho para a assinatura do acordo.

De fato, a transferência de governo de Cristina Kirchner para Mauricio Macri constitui um elemento favorável ao progresso das negociações entre o Mercosul e a União Europeia, na medida em que a lista de restrições do Governo argentino já não configura um obstáculo para a assinatura do tratado. Contudo, como já afirmado anteriormente, o maior óbice para que as conversas avancem é o protecionismo agrícola europeu, o qual dificilmente deixará de ser uma adversidade. Embora alguns analistas prefiram responsabilizar os governos dos Kirchner pela estagnação do processo, por meio de uma leitura atenta pode-se constatar que as negociações já se encontravam paralisadas desde o final da década de 90, anos antes da emergência de uma onda de governos progressistas na América do Sul.

1As séries de dados utilizadas foram a Total Employment — All Categories, que inclui o total de empregos segundo as categorias da Nomenclatura Geral das Atividades Econômicas das Comunidades Europeias (NACE) e a Total Agriculture Forest and Fishing Employment, que se refere ao total de empregados em atividades de agricultura, silvicultura e pesca. Ambas as séries incluem indivíduos entre 15 e 64 anos de idade.

2A Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro não será estudada neste artigo porque só ingressou no Mercosul em 2012 e foi suspensa em 2016, de modo que não representa um embaraço para as negociações com a União Europeia.

Pode a América sentir-se grande de novo?

A recente eleição norte-americana apresentou uma polarização raramente vista no cenário político dos Estados Unidos da América ao longo do século XX. As eleições primárias dos dois grandes partidos do País foram extremamente disputadas e apresentaram características fratricidas. Do lado republicano, a constelação de políticos tradicionais foi superada por Donald Trump e sua retórica populista, gerando uma grande divisão no seio do partido. Já do lado democrata, a vitoriosa candidatura do establishment, representada por Hillary Clinton, defrontou-se com a plataforma de matizes socialistas de Bernie Sanders, causando fraturas que puderam ser observadas na convenção nacional do partido ocorrida em julho de 2016.

Várias disputas eleitorais norte-americanas ao longo do século XX apresentaram grandes clivagens em torno de temas políticos e sociais. Ao mesmo tempo, em conjunturas econômicas adversas os eleitores norte-americanos tenderam a punir os governos incumbentes. As turbulentas eleições de 1968, em meio ao movimento dos direitos civis e à guerra do Vietnã, a eleição de 1976, ocorrida sob a égide do caso Watergate, e mesmo a contestada eleição de 2000, ocorrida sob o impacto do escândalo Clinton-Lewinsky, podem ser consideradas como disputas de caráter social e político. Por outro lado, as eleições de 1932, em meio à Grande Depressão, as de 1980, ocorridas nos estertores dos choques do petróleo, e as de 2008, no auge da crise subprime, resolveram-se em incontestáveis substituições do partido situacionista pelo partido opositor. A eleição norte-americana de 2016, à primeira vista, reproduziu as disputas de distintas concepções sociais e políticas. Temas como conflitos raciais, imigração, questões de gênero e o combate ao terrorismo encontraram-se em evidência na mídia e nos discursos políticos. Entretanto a interpretação do significado das candidaturas de Donald Trump e Bernie Sanders passa por uma relevante transformação econômica ocorrida nos Estados Unidos, nas últimas décadas do século XX.

A partir de meados da década de 70 do século passado, a sociedade norte-americana apresentou aumento na desigualdade de renda. Isso representou uma inflexão na trajetória virtuosa da “Era de Ouro” iniciada no pós-Guerra. A “Era de Ouro” caracterizou-se como um período em que se compatibilizaram crescimento econômico e distribuição de renda relativamente equitativa. Dessa forma, tanto a distribuição pessoal da renda (DPR), que indica a renda apropriada por indivíduos ou domicílios, como a distribuição funcional da renda (DFR), que indica a parcela da renda nacional apropriada pelos ofertantes de capital (parcela dos lucros) e pelos ofertantes de trabalho (parcela salarial), apresentaram modificações ao longo do período.

Conforme o Gráfico 1, o coeficiente de Gini[1] para os domicílios norte-americanos apresentou marcada elevação para o período entre 1967 e 2014. Os dados demonstram uma tendência persistente de incremento na desigualdade de renda dos domicílios norte-americanos iniciada em meados da década de 70 e que se estende até o último ano com dados disponíveis, que é o de 2014.

texto_3-grafico-1Por sua vez, a distribuição funcional da renda também se modificou. Em relação aos dados, cabe mencionar algumas questões associadas à mensuração da parcela salarial. Os padrões de contabilidade social estabelecem que a parcela salarial inclui o total de compensações pagas aos trabalhadores, sendo computados para esse fim os salários pagos, bem como inclusas as contribuições previdenciárias. Por sua vez, a parcela do capital constitui-se na agregação dos lucros, bem como em rendimentos de propriedade e outras rendas de fontes distintas do trabalho. Um terceiro componente reside nos denominados rendimentos mistos. Esses rendimentos são obtidos em atividades nas quais não há distinção clara entre rendimentos do trabalho e do capital. O Gráfico 2 apresenta a evolução da parcela salarial com correção para os rendimentos mistos[2]. Observa-se uma suave tendência de crescimento dessa parcela até o início da década de 80. Essa tendência é sucedida por um período de maiores flutuações, que ocorrem dentro de uma tendência geral de queda da parcela salarial.

O processo de concentração da DPR nos EUA gerou uma vasta literatura que discute as várias características individuais ou domiciliares com vistas a explicar esse fenômeno. Temas como educação, raça, gênero, idade e escolhas profissionais subsidiaram uma profusão de estudos replicados ao redor do planeta. O objetivo nesse tipo de analise é o de apreender a desigualdade entre os salários.

Já a DFR passou a receber maior atenção a partir do final da década de 90. A crise de 2008 e suas fortes consequências, tanto econômicas quanto políticas, aprofundaram tais análises, e, desse modo, gerou-se um estímulo para novas pesquisas sobre a DFR e sua relação com a DPR nos EUA. Em outras palavras, além da desigualdade entre os salários, busca-se compreender a desigualdade entre as rendas do trabalho e as rendas do capital. Independentemente do grau de relevância da contração da parcela salarial sobre a distribuição pessoal da renda, o fato é que a sociedade norte-americana padece de questões distributivas que pareciam estar superadas em meados da década de 60.

texto_3-grafico-2As explicações para essa trajetória são muitas, e algumas delas carregam em si elementos que se articulam com a retórica política presente no conturbado cenário eleitoral estadunidense. Podem-se citar dois grandes grupos de explicações: um centra-se nos efeitos do neoliberalismo e da financeirização sobre os Estados Unidos; o outro versa sobre os padrões recentes de progresso técnico.

A adoção de políticas de corte neoliberal no início da década de 80 caracterizou-se pela mudança do objetivo principal de politica econômica, passando o foco da obtenção do pleno emprego para o controle da inflação. Isso coincidiu com o avanço do processo de financeirização, em que o capital financeiro progressivamente aumentou sua importância relativa frente ao capital produtivo, moldando tanto a estrutura econômica do País como o comportamento das empresas. Em termos macroeconômicos, a contrapartida da ênfase no combate à inflação correspondeu a uma tolerância com maiores taxas de desemprego em um contexto geral de enfraquecimento do poder de barganha dos trabalhadores e de seus sindicatos, observada ao longo da década de 80. Isso se associou à redução da participação da indústria no emprego bem como à maior exposição à concorrência internacional com países de custo do trabalho baixo, que foram observadas nos anos 90.  Conforme é exemplificado no Gráfico 3, essas modificações associam-se a uma nova relação entre as remunerações dos trabalhadores e a produtividade do trabalho. Os salários passaram a crescer abaixo da produtividade, rompendo com o padrão da “Era de Ouro”.

Já o comportamento das empresas apresenta uma passagem das tradicionais estratégias de investimento e crescimento, voltadas a resultados de longo prazo, para a priorização na redução de custos, a distribuição de dividendos de curto prazo e a valorização de suas ações. Isso se encontra expresso na orientação geral de “priorizar a geração de valor para os acionistas”. Inseridos em um contexto de flexibilização das relações de trabalho e de enfraquecimento dos sindicados, cujo marco inicial foi a derrota da greve dos controladores de voo em 1981, durante o Governo Reagan, esses processos resultaram em um aumento da dispersão salarial em detrimento dos salários mais baixos articulada com uma redução da parcela salarial.

texto_3-grafico-3O padrão progresso técnico também é apontado como uma das causas para o aumento das desigualdades nos EUA. Sob uma ótica convencional, discute-se a existência de progresso técnico portador de duas características: com viés em favor do trabalho qualificado e, ao mesmo tempo, com incremento da produtividade do capital. Essas duas características teriam colaborado no sentido de incrementar as desigualdades de renda. Entretanto os estudos recentes têm apresentado limitações em demonstrar que processos dessa natureza efetivamente causaram o aumento da desigualdade de renda.

Com a retomada da economia após a crise de 2008, as discussões sobre a desigualdade de renda novamente ganham corpo devido à aceleração do padrão concentrador de renda. No enfrentamento dessa crise, o Governo Federal e o Federal Reserve (FED) lançaram mão de medidas fiscais e monetárias pouco usuais, que injetaram milhares de dólares em instituições financeiras e empresas com balanços problemáticos, bem como atuaram como “negociador de última instância” ao comprar títulos privados, impedindo o colapso do mercado financeiro e o risco de paralisia da economia. No mercado de trabalho, porém, a recuperação seguiu o padrão verificado desde o final dos anos 80, conhecido como “jobless recovery”, em que a produção se recupera mais rápido que o emprego e com o mercado de trabalho se estabilizando em condições piores para a classe trabalhadora do que no ciclo anterior.

Além da recuperação mais lenta em termos de produto desde a Segunda Guerra, a atual fase da economia dos EUA é a que apresenta resultados mais dramáticos em termos de concentração dos ganhos adicionais de renda. Do período pós-guerra até o final dos anos 70, a expansão da renda média dos 90% mais pobres foi superior à dos 10% do topo, padrão que se inverteu a partir da década de 80 e foi-se aprofundando. Entre 2001 e 2007, 98% do aumento na renda média foram destinados aos 10% mais ricos, padrão que se intensificou ainda mais no pós-crise: de 2009 a 2012, os 10% mais ricos se apropriaram de 116% do crescimento da renda no período, o que significa uma queda de 16 p.p. na renda média dos 90% mais pobres, sendo que 95% dos ganhos acabaram nas mãos do 1% mais rico da sociedade.

Considerando o fato de que a maior parte da população norte-americana se encontra em condições materiais piores do que as vividas no período pré-crise, temos elementos suficientes para o surgimento de forças políticas não vinculadas ao atual status quo. Tais forças, expressas nas candidaturas de Trump e Sanders, parecem representar as frustrações enfrentadas por grande parte da sociedade norte-americana. A recuperação do slogan utilizado na campanha de Ronald Reagan em 1980 por Donald Trump em 2016 — “make America great again” — é o indicativo de que vários setores da sociedade norte-americana buscam uma volta do padrão da prosperidade compartilhada vivenciada no período anterior ao neoliberalismo. Aparentemente, a América somente poderá sentir-se grande de novo quando reverter as tendências regressivas de sua distribuição de renda.


[1]  Cabe destacar que o coeficiente de Gini varia entre 0 e 1 e mensura a desigualdade na distribuição pessoal da renda. Assim, quanto mais próximo de 0, mais igual é a distribuição de renda, quanto mais próxima de 1, mais desigual é a distribuição.

[2]  A correção é efetuada considerando que a proporção dos rendimentos do trabalho contida nos rendimentos mistos é idêntica à observada entre as compensações pagas aos trabalhadores e a parcela do capital.