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O Mercosul e suas múltiplas dimensões

A segunda edição do Panorama Internacional FEE trata de um tema tão importante quanto complexo, dada a possibilidade de ângulos de análise múltiplos e inter-relacionados, envolvendo aspectos de natureza econômica, política e cultural. A integração latino-americana habita há bastante tempo o imaginário da região. No plano econômico, conjecturas sobre potenciais efeitos da integração produtiva estiveram sempre presentes no debate sobre as dificuldades e os limites da industrialização tardia e periférica da América Latina. O caráter “fechado” daquele processo, no sentido de que as plantas industriais eram instaladas visando atender aos restritos mercados nacionais, foi apontado como responsável por escalas de produção reduzidas e consequentes desvantagens absolutas de custos, comparadas às dos países já industrializados. Em discurso proferido no México em 1959, Raúl Prebisch[1] evocou esse diagnóstico ao defender a formação de um Mercado Comum Latino-Americano. Em seu entendimento, esse seria o caminho para não repetir, na necessária e subsequente fase de instalação dos setores produtores de bens de capital, as limitações conhecidas das já instaladas indústrias de bens de consumo. A estratégia vislumbrada por Prebisch recomendava evitar integrações parciais enquanto ações preparatórias para uma segunda fase de integração continental. Para o economista argentino, quanto mais fortalecidos fossem os grupos sub-regionais, maiores seriam os obstáculos para chegar ao Mercado Comum Latino-Americano.

Concretamente, não parece que a integração em âmbito continental defendida por Prebisch tenha avançado significativamente. E dificilmente se poderia atribuir esse estado de coisas a obstáculos criados pelo desenvolvimento dos grupos sub-regionais, como o Mercosul, visto que estes também não avançaram ao ponto de gerar obstáculos adicionais mais importantes do que aqueles que já são subjacentes às próprias fronteiras nacionais e ao próprio funcionamento do capitalismo na região. As contradições e os conflitos de interesses entre os próprios países, unidades políticas subnacionais, empresas transnacionais e grupos políticos internos já bastam para formar um sistema um tanto complexo de obstáculos à integração. Até este momento, o desenrolar histórico desse sistema não gerou solução que pudesse promover avanço significativo do Mercosul enquanto processo de integração econômica.

A possibilidade de utilizar um modelo que oriente a promoção de tal integração, resultante de outras experiências históricas, mostra-se algo bastante complicado. Possivelmente a União Europeia seja hoje o caso mais desenvolvido de conformação de uma estrutura institucional visando à promoção de integração, sob diversos aspectos. Entretanto, o baixo dinamismo econômico do bloco como um todo nos últimos anos, os agudos problemas que têm enfrentado os países mais “periféricos”, ao lado da atitude dos países “centrais” diante daqueles problemas, parecem apontar sérias limitações e contradições nos valores e objetivos de fundo a motivar a integração. Critérios macroeconômicos adotados em função de interesses particulares asfixiam alguns países-membros e conduzem muitos cidadãos europeus a aceitarem uma ou outra variante do julgamento moral de que certos países de fato “não merecem” estar na Zona do Euro.

De outro lado, sem qualquer aparato institucional minimamente comparável ao da União Europeia, estabeleceu-se na Ásia um processo de forte integração na esfera produtiva. Um conjunto de diversos fatores geopolíticos, estruturais, organizacionais e econômicos favoreceu esse resultado (MEDEIROS, 2011)[2]. A revolução na transmissão de informações e sua digitalização possibilitaram a codificação de processos produtivos e a sua modularização. Isso viabilizou, sob o ponto de vista técnico, o estabelecimento de um amplo comércio de partes e componentes, que foi integrando progressivamente os países asiáticos de menor grau de desenvolvimento àqueles previamente industrializados. A assimetria inerente ao processo, que em princípio e em certos casos pode acabar reforçada em função de desequilíbrios de balanço de pagamentos, foi ao menos parcialmente neutralizada, no caso asiático, por estímulos macroeconômicos e condições estruturais que se revelaram funcionais para a integração. Deve-se ter em mente, por exemplo, que a expansão regional asiática e sua integração produtiva ocorreram sempre orientadas para um grande mercado consumidor de produtos finais. Inicialmente os Estados Unidos e, progressivamente, a China, exerceram a função de importador líquido em relação aos países de menor grau de desenvolvimento.

No caso do Mercosul, guardadas as devidas proporções, é bem possível que o Brasil tenha potencial para exercer essa função, considerado o seu tamanho relativo. Entretanto, para que isso pudesse ocorrer, esse país teria não apenas que crescer mais rapidamente, como também deixar de perceber os países que o cercam somente como possíveis vetores de compensação para o processo de reprimarização da sua pauta exportadora direcionada a outros continentes. Em outras palavras, uma integração produtiva idealizada nos termos do modelo asiático exigiria que o Brasil exercesse o papel de importador líquido em relação ao restante do bloco, ao invés de canalizar para ele sua própria produção industrial de maior conteúdo tecnológico, deslocada de outros mercados principalmente pela própria produção asiática. Seria necessário, portanto, que o Brasil promovesse com mais intensidade o seu mercado doméstico, sempre resolvendo em conjunto sua restrição externa. Arranjos que favorecessem uma resolução conjunta das condições de restrição externa dos países do bloco seriam também muito importantes para a integração. Os problemas externos do Brasil e da Argentina, principalmente, já causaram e sempre poderão novamente causar desequilíbrios graves para a consolidação do Mercosul.

Ao tratar do Mercosul, o Panorama Internacional FEE não pretende, obviamente, dar respostas definitivas para todas essas complexas questões. O propósito é fornecer elementos para que o leitor participe do debate proposto. Nesses termos, os pesquisadores Cecília Hoff e Tomás Torezani discutem o posicionamento do Rio Grande do Sul no contexto do Mercosul, destacando as especificidades das relações comerciais e produtivas do Estado com os países do bloco e chamando a atenção para o setor de máquinas agrícolas e o conflito com os movimentos da indústria argentina do setor. A pesquisadora Ana Júlia Possamai apresenta uma dimensão central, porém ainda pouco explorada: a integração digital. A integração nessa dimensão tem óbvios impactos do ponto de vista político e cultural, e seu baixo desenvolvimento pode constituir-se em importante restrição para a integração produtiva em tempos de modularização da produção. O entrevistado desta edição é o Professor André Luiz Reis da Silva, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que contribui com as suas impressões sobre realizações e desafios do bloco, o ingresso da Venezuela e a hipótese de um acordo de livre comércio com a União Europeia, entre outros aspectos. Robson Valdez, Ricardo Leães e Bruno Jubran analisam a questão do entendimento político interno do bloco, destacando que os acordos econômicos subjacentes a um processo de integração econômica sempre pressupõem um balanço adequado de vantagens e custos para os potenciais participantes. Por fim, Tarson Nuñez apresenta importantes conjecturas sobre os desdobramentos do processo eleitoral argentino no que diz respeito ao processo de integração. O caso argentino é sempre fundamental para uma análise conjuntural da região, tendo em vista o maior radicalismo que parece caracterizar as mudanças políticas argentinas, quando observadas por um ângulo brasileiro.

[1] PREBISCH, R. El mercado común latinoamericano. Boletin del Banco Central del Ecuador, Quito, v. 33, n. 384-385, p. 19-28, jul./ago. 1959. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11362/32866> Acesso em: 19 out. 2015.

[2]  MEDEIROS, C. A dinâmica da integração produtiva asiática e os desafios à integração produtiva no Mercosul. Análise Econômica, Porto Alegre, v. 29, n. 55, p. 7-32, mar. 2011. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/AnaliseEconomica/article/view/13381>. Acesso em: 19 out. 2015.

O Mercosul potencializa o Brasil

André Luiz Reis da Silva é Doutor em Ciência Política, Pós-doutor pela School of Oriental and African Studies – University of London, Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Em entrevista para o Panorama, André Luiz Reis da Silva fala sobre êxitos e desafios do Mercosul, analisando a posição estratégica do Rio Grande do Sul. O pesquisador avalia ainda o ingresso da Venezuela no bloco e trata das negociações entre o Mercosul e a União Europeia. O entrevistado desta edição também opina sobre a política externa brasileira e sobre como esse tema foi abordado nas eleições presidenciais brasileiras de 2014.

Panorama: Após 25 anos, quais foram as principais realizações do processo de integração do Mercosul, e quais são os maiores desafios a serem superados?

O Mercosul é um dos grandes projetos de Estado do Brasil, maturado desde os anos 80. Desde a sua criação, mesmo passando por dificuldades, algumas ainda persistentes (como a questão das assimetrias e as diferenças na concepção do bloco), o Mercosul alcançou muitos êxitos, como a criação de uma zona de paz e cooperação no Cone Sul; a ampliação do comércio intrazonal e o fortalecimento da ideia de América do Sul. O Mercosul, que está fazendo 25 anos agora em 2016, já passou por várias fases, avanços e dificuldades. As principais referências são a aproximação Brasil-Argentina dos anos 80, que culminou com a inclusão do Paraguai e Uruguai nesse projeto; depois, o próprio lançamento do Mercosul, em 1991. Embora em um contexto neoliberal (que via o Mercosul como uma via rápida para a abertura econômica), o Mercosul serviu como um ponto de resistência à proposta norte-americana de integração das Américas (ALCA). A principal crise foi a de 1999, com os argentinos decretando o “fim do Mercosul”. Entretanto, ele foi relançado com uma nova perspectiva, de servir como base para um ousado projeto de integração da América do Sul. Nos últimos anos, além dos membros associados (Chile, Bolívia, Peru, Colômbia e Equador), tem-se avançado com a inclusão da Venezuela como membro e a criação do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem) (para tentar diminuir as diferenças estruturais) e de um parlamento (que ainda precisa ser desenvolvido).

Em síntese, para a política externa brasileira, o Mercosul conseguiu articular um espaço regional e, com isso, logrou o interesse de outros blocos econômicos e países, configurando um interlocutor respeitado tanto nos fóruns multilaterais quanto nos acordos bilaterais. Tal posição, além das perspectivas de crescimento, foi abrindo possibilidades de cooperação com os mais diversos blocos e países e o estabelecimento de parcerias estratégicas. Dessa forma, o Mercosul constituiu, para a política externa brasileira, um importante ponto de apoio nas negociações comerciais e um polo de atração sobre outros países da América do Sul. Assim, mesmo com uma aparente perda de importância, considero que o Mercosul constitui ainda um espaço estratégico para a diplomacia brasileira, que não pode ser “abandonado”, como desejam alguns, inclusive no Brasil, diante do menor contratempo. Alguns falam que o Mercosul atrapalha o Brasil. É uma verdadeira falácia. O Mercosul potencializa o Brasil, em especial o Brasil industrial.

Atualmente, diante do crescimento dos interesses globais do Brasil, o Mercosul e a própria Unasul perderam centralidade e incentivos. A agenda com os emergentes (em especial os BRICS) e a discussão do ordenamento econômico e financeiro mundial ganharam espaço na agenda externa brasileira. O grande desafio do Brasil na atualidade é combinar as duas agendas (regional e global), recalibrando interesses e prioridades, na medida em que não é possível uma agenda global sem uma forte presença regional.

Panorama: Paralelamente aos aspectos comerciais do Mercosul, quais outras áreas da integração poderiam ser classificadas como estratégicas para o futuro do bloco, e como o senhor avalia o ingresso venezuelano no bloco?

Há muito que avançar ainda. Do ponto de vista comercial, o Mercosul é classificado como uma “união aduaneira imperfeita”, pois há vários produtos com restrição de circulação, cotas e listas de exceção. Também precisa avançar para a construção de marcos regulatórios comuns em vários campos, como social, previdenciário e trabalhista. Um bloco com as ambições do Mercosul não pode ficar restrito à questão comercial, precisa avançar em todas as áreas, inclusive na cooperação em defesa militar e na integração em infraestrutura e energia.

Em relação à Venezuela, o Brasil é superavitário, e temos uma economia complementar à deles. A entrada da Venezuela ao Mercosul é amplamente positiva para o Brasil e outros membros, porque (1) amplia nosso acesso ao mercado venezuelano; (2) favorece a integração da América do Sul via modelo brasileiro (Mercosul); (3) tem uma economia complementar à economia brasileira; (4) amplia as capacidades do Mercosul nas negociações com outros blocos e outras potências; (5) afirma o projeto brasileiro de uma América do Sul integrada, no qual a Venezuela concorda em participar;  (6) fortalece a democracia na América do Sul (cada país que entrar no Mercosul assume a cláusula democrática do bloco).

Panorama: Quais são os maiores obstáculos para que os países-membros cheguem a um acordo de livre comércio com a União Europeia, e quais seriam as consequências para o Mercosul?

As negociações entre o Mercosul e a União Europeia já datam de duas décadas. Normalmente, essas negociações travam na negativa europeia de conceder maior liberalização dos mercados agrícolas como contrapartida (muito em função dos interesses da França e da Política Agrícola Comum da União Europeia). A União Europeia não oferece uma boa contrapartida para abertura do Mercosul. Então, funciona a lógica de que é melhor nenhum acordo do que um acordo prejudicial para nós. Esse é o impasse. Sem ilusões.

A política externa brasileira em relação ao entorno regional tem como base o Mercosul e a integração sul-americana, criando um espaço para um exercício de liderança regional e para credenciar o Brasil para uma atuação mais assertiva em fóruns globais. Dessa forma, não constitui interesse brasileiro um caminho solitário, desvencilhando-se dos vizinhos para alcançar acordos bilaterais fora do continente. Essa estratégia pode parecer sedutora, mas poderia acarretar a perda de importantes mercados para produtos industriais do Brasil, bem como abrir ainda mais a região para competidores extrarregionais.

Panorama: No que diz respeito à política externa brasileira, como o Mercosul polariza o debate político no Brasil?

Embora tenhamos presenciado uma eleição presidencial acirrada, com um debate intenso e mobilizador da sociedade, com contraste de projetos e propostas de solução para o Brasil, o tema da política externa foi pouco abordado nas campanhas de 2014. Mas é importante ressaltar que os desafios da política exterior são decisivos para o êxito de uma estratégia de desenvolvimento, devido aos vínculos cada vez mais densos e mais complexos do Brasil com os outros países, em um cenário internacional marcado por importantes transformações. Por outro lado, um país das dimensões e capacidade do Brasil não pode se omitir de dar sua contribuição, tanto nas questões globais como regionais.

Talvez o tema que mais apareceu na campanha eleitoral de 2014 foi a questão de o Brasil se desvencilhar do Mercosul para buscar acordos de comércio de forma bilateral. Era uma via perigosa proposta pela oposição neoliberal, pois o Brasil tem mais a perder do que os vizinhos nessa estratégia. O Mercosul funciona como uma reserva de mercado para os produtos industriais brasileiros na região. Uma abertura descuidada pode significar a destruição de parte da indústria brasileira.

Alguns também defenderam, de forma descuidada, que o Brasil deveria integrar a “Aliança do Pacífico”, esta sim vista como um modelo liberal perfeito. É uma falácia quase ideológica, que desconsidera os riscos embutidos nesse tipo de estratégia. Agora, os acordos Transpacífico e Transatlântico, a crescente presença comercial chinesa, os acordos de livre comércio dos EUA, todas essas questões são desafios que precisam ser discutidos no âmbito do Mercosul.
Panorama: Dada a posição estratégica do Rio Grande do Sul como ponto de encontro entre Brasil, Argentina e Uruguai, como tornar o Estado um vetor da integração regional? 

A posição geográfica e os laços históricos e culturais que o Rio Grande do Sul tem com Argentina, Uruguai e Paraguai configuram um sentido estratégico para a região. No inicio da construção do Mercosul, o Governo do RS e as empresas temiam a concorrência do Uruguai e da Argentina. Com o tempo, perceberam que o RS estava no caminho entre Buenos Aires e São Paulo, ou seja, o caminho da integração passa pelo Rio Grande do Sul. Não aproveitar essa oportunidade seria um grande erro histórico. O Rio Grande do Sul tem muito para aproveitar em termos de integração fronteiriça, interligação viária e energética, ampliação do turismo, bem como na articulação de redes regionais de produção.