Desde sua independência, em 1788, de quatro em quatro anos os Estados Unidos escolhem seu presidente. Em novembro, Donald Trump foi eleito o 45.º Presidente norte-americano. Em um marco na história moderna do País, um outsider do mundo político ultrapassou todas as barreiras institucionais no caminho desse grande prêmio. Os Estados Unidos destacam-se por possuir a mais longeva democracia do mundo, mas seu sistema político apresenta contradições que perduram. Este artigo busca expor essa dicotomia e, ao fim, discute que contribuições o exemplo norte-americano pode oferecer para a democracia brasileira.
Os “pais fundadores” da república dos Estados Unidos defenderam uma Constituição baseada na representação popular e na divisão de poderes, uma enorme inovação na teoria política ocidental.[1] Pela primeira vez, não se colocaram em jogo as contradições entre o nobre e o popular, o aristocrático e o democrático. A Constituição norte-americana é toda democrática, pois toda a autoridade é formada pela vontade de cidadãos politicamente iguais. No entanto, na esteira da teoria política ocidental, os pais fundadores dedicaram-se a erigir barreiras institucionais aos riscos de um governo da maioria. A divisão de poderes e o federalismo recortam interesses e fazem concorrer opiniões fracionadas em um sistema desenhado para proteger as vantagens de uma minoria de status, poder e riqueza contra a representação da maioria popular — como observa Dahl[2] sobre o pensamento de Madison.
O presidente foi inicialmente pensado como uma das peças da divisão de poder, um ator capaz de moderar a força de uma maioria parlamentar. No processo legislativo, ele não pode fazer mais do que vetar. Contudo, o papel do presidente passou a ser muito superior ao imaginado pelos fundadores da república. A precoce formação dos partidos políticos, não previstos no desenho constitucional, permitiu ao presidente realizar uma influência organizada sobre o Congresso.[3] Ao longo dos anos, a União ganhou competência sobre temas antes estritamente estaduais, e o presidente acumulou grandes capacidades regulatórias. Esse processo não se esgotou. Em face de um Congresso dominado pela oposição republicana, a gestão de Obama tornou-se a que mais utilizou ordens executivas, regulando temas tão diversos quanto o mercado financeiro, a proteção ambiental e os direitos civis.[4]
Além do seu poder formal, o presidente possui a vantagem de ser o único representante eleito por todo o país. Ele pode clamar o recebimento de um mandato da maioria dos eleitores para perseguir determinadas políticas.[5] Esse é um trunfo importante no jogo de poder com o Congresso e outros atores políticos, embora não fosse pretendido pelos pais fundadores. Eles previram o processo do Colégio Eleitoral como uma série de escolhas independentes, e não uma decisão nacional. Cada estado indica um número de membros do Colégio Eleitoral correspondente aos seus congressistas no Senado e na Câmara dos Representantes. Assim, é escolhido como Presidente o candidato que angariar a maioria do Colégio Eleitoral. Duas razões justificaram a adoção desse processo. A primeira era assegurar o espaço dos pequenos estados na formação da União. A segunda era facilitar a articulação de candidaturas nacionais, supondo que cada estado votaria em seus próprios candidatos.
Com o tempo, o Colégio Eleitoral tornou-se mais diretamente atrelado a uma opinião nacional. Seus membros passaram a ser escolhidos diretamente pelos cidadãos, as nomeações passaram a ser controladas pelos partidos e os votos, vinculados à decisão do estado. Com exceção de Maine e Nebraska, os membros do Colégio Eleitoral são definidos por pluralidade (winner-takes-all): o partido do candidato com maior número de votos populares pode indicar todos os postos a que o estado tem direito.
O rígido sistema bipartidário possui importante influência sobre como funciona a eleição presidencial norte-americana. Em parte, o bipartidarismo pode ser atribuído à adoção da pluralidade em distritos uninominais para quase todas as eleições, inclusive legislativas. Esse sistema eleitoral conduz à concentração dos diferentes grupos políticos nas duas principais forças, dada a inviabilidade de que terceiras opções alcancem representação política relevante. Nos Estados Unidos, o bipartidarismo é especialmente forte. Desde 1912, os partidos Democrata e Republicano dominam as eleições presidenciais, ocupando a primeira e a segunda posição no voto popular. Desde 1957, a Câmara de Representantes acolheu apenas 11 congressistas alheios aos dois grandes partidos.[6]
Um resultado do Colégio Eleitoral e do bipartidarismo é a concentração das eleições presidenciais nos estados mais disputados. Aqueles cuja vantagem de um partido parece difícil de ser suplantada recebem pouca atenção. Como mostra a vitória de Trump no “Cinturão da Ferrugem”, um tradicional reduto democrata, essa percepção pode ser desafiada no curso das campanhas eleitorais. A distorção desse sistema sobre a preferência popular é geralmente minimizada, pois o candidato popularmente mais votado costuma receber o maior número de eleitores no Colégio Eleitoral. A eleição de George W. Bush em 2000 foi a primeira, desde 1888, na qual isso não aconteceu. Este ano, da mesma forma, Trump foi eleito sem maioria popular, o que aumenta a preocupação sobre a distorção causada pelo Colégio Eleitoral.
A forma do Colégio Eleitoral é parcialmente reproduzida nas eleições primárias, que selecionam os candidatos oficiais dos partidos Republicano e Democrata. As primárias são um mecanismo de democracia intrapartidária relevante, capaz de alterar a correlação de forças nos partidos e favorecer a opinião de seus membros comuns e simpatizantes. Este ano, as fortes pré-candidaturas de Bernie Sanders, no Partido Democrata, e de Donald Trump, no Partido Republicano, favoreceram esse diagnóstico. Ambos se apresentaram como críticos às políticas tradicionais de seus partidos.
A Presidência e o Colégio Eleitoral foram originalmente pensados como mecanismos reativos e de controle do sistema político. Inovações institucionais nos atributos do presidente, o sistema bipartidário e a participação popular no Colégio Eleitoral e nas eleições primárias transformaram substancialmente a escolha do presidente. Ela se tornou um instrumento nacional e democrático pró-majoritário. Embora a forma de escolha do presidente ainda provoque distorções importantes no princípio da igualdade política (uma pessoa, um voto) e diminua a importância de eleitores em estados não disputados, embaraços relevantes à democracia norte-americana devem ser procurados em outros lugares.
O controle sobre o direito ao voto é uma disputa ainda em aberto nos Estados Unidos. Recrudescendo práticas antigas, leis estaduais passaram a prejudicar a participação de afro-americanos e hispano-americanos com a adoção de processos trabalhosos de alistamento eleitoral e a exigência de certos documentos na hora do voto.[7] O desincentivo seletivo ao voto prejudica especialmente o Partido Democrata, que costuma receber maior apoio dessas minorias sociais. Outro mecanismo de exclusão política nas mãos dos legislativos estaduais é a manipulação dos contornos dos distritos eleitorais legislativos (gerrymandering). Distritos desenhados sob medida para favorecer um parido resolvem as eleições antes da coleta dos votos e geram maiorias desproporcionais. Em âmbito nacional, o gerrymandering favoreceu a formação de maiorias republicanas na Câmara dos Representantes durante a gestão Obama, a qual frequentemente vetou políticas propostas pelo democrata. Como as regras de alistamento, o gerrymandering pode possuir um componente discriminatório contra minorias.[8]
Os meios de financiamento eleitoral também são fonte de desequilíbrio. Uma decisão da Suprema Corte de 2010 autorizou a organização de comitês de ação política (chamados super PAC) não vinculados às campanhas oficiais dos candidatos e habilitados a investir sem limites de gasto. Isso permitiu uma maior participação de setores afluentes da sociedade na política. Recorda-se que 158 famílias, em especial ligadas às indústrias da energia e financeira, foram responsáveis por metade do financiamento dos primeiros momentos da corrida presidencial deste ano.[9] Por outro lado, alguns candidatos são capazes de angariar recursos diretamente dos cidadãos, a partir de pequenas doações individuais. Estratégia inaugurada por Obama, este ano destacou-se na pré-candidatura de Sanders e, em menor medida, na de Trump.
Precursor, os Estados Unidos foram o exemplo inicial de um sistema político adotado pelas repúblicas de toda a América Latina, inclusive no Brasil. É conveniente perguntar, portanto, quais bons exemplos a democracia norte-americana ainda pode oferecer à brasileira. Sob muitos aspectos, a resposta é nenhum. O Colégio Eleitoral é um processo arcaico que provoca importantes distorções. Tanto na inclusão eleitoral, quanto nas regras do sufrágio e nas regras aplicadas às campanhas eleitorais, a situação no Brasil é mais inclusiva, equânime e estável. A realização de primárias como antídoto à burocratização dos partidos pode parecer uma prescrição adequada, mas no contexto da fragmentação partidária brasileira seria inócua.
É justamente no sistema partidário que o caso norte-americano pode ajudar a perceber uma questão mal resolvida da política brasileira. Existe uma ideia equivocada no Brasil de que a multiplicidade de partidos é a única forma de dar representação às minorias sociais e à divergência ideológica. A pré-candidatura de Sanders, com uma plataforma “socialista” e sua influência sobre as propostas da candidatura de Clinton, é um exemplo de como o processo de agregação de interesses em grandes partidos pode, na verdade, viabilizar a inovação ideológica. A candidatura de Trump e sua vitória podem ser lidas como reflexo dos anseios de uma fração do eleitorado impactada pela insegurança econômica e descontente com as respostas tradicionais do Partido Republicano e do sistema político como um todo. Em ambos os casos, os grandes partidos nacionais deram forma ao dissenso, viabilizaram uma discussão pública, apresentaram alternativas. Razões históricas estão na origem do bipartidarismo norte-americano, e qualquer tentativa de reproduzir artificialmente esse sistema no Brasil estaria equivocada. No entanto, alterações institucionais que favoreçam a concentração de poder em partidos políticos nacionais parecem, hoje, indispensáveis para fortalecer o controle democrático dos cidadãos sobre o sistema político brasileiro.
[1] HAMILTON, A.; MADISON, J., JAY, J. The federalist papers. Oxford: Oxford University, 2008.
[2] DAHL, R. A. Um prefácio à teoria democrática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
[3] ALDRICH, J. H. Why parties? The origin and transformation of political parties in America. Chicago: University of Chicago, 1995.
[4] APPELBAUM, B.; SHEAR, M. Once skeptical of executive power, Obama has come to embrace it. The New York Times, New York, 16 Aug. 2016. Disponível em:
[5] DAHL, R. A. Myth of the presidential mandate. Political Science Quarterly, Nova York, v. 105, n. 3, p. 355-372, 1990.
[6] UNITED STATES OF AMERICA. United States House of Representatives. Party Divisions of the House of Representatives. 2016. Disponível em:
[7] RACIAL gerrymandering in North Carolina. The New York Times, New York, 18 Feb. 2016. Disponível em:
[8] WINES, M.; BLINDER, A. Federal appeals court strikes down North Carolina voter ID requirement. New York Times, New York, 18 Feb. 2016. Disponível em:
[9] CONFESSORE, N.; COHEN, S.; YOURISH, K. Buying power. The New York Times, New York, 10 Oct. 2015. Disponível em: