O Mercado Comum do Sul (Mercosul) completará, no próximo ano, um quarto de século. Além de uma Tarifa Externa Comum (TEC), um mercado comum pressupõe a livre circulação não só de bens e serviços, mas também de fatores de produção (capital e força de trabalho). Esse estágio de integração regional tornaria as fronteiras entre os seus membros quase inexistentes em termos comerciais e de mobilidade populacional.
A questão é como tornar essa realidade possível, tendo em vista a diversidade de documentos (físicos, eletrônicos e digitais) que se interpõem aos processos de análise e liberação de importações, exportações e migrações. Além das inúmeras etapas burocráticas, a comunicação entre os órgãos públicos e privados resulta dificultosa em virtude da diversidade de formatos tecnológicos, semânticos e organizacionais que sustentam os sistemas de informação das partes envolvidas. A convenção de modelos e padrões tecnológicos comuns impõe-se como um desafio à interconexão e à interoperabilidade desses sistemas e, por conseguinte, à circulação fluida, eficiente e segura entre os países do bloco. A chamada integração digital emerge, pois, como fundamental para superar o atual estágio de união aduaneira e concretizar o telos do Mercosul.
A necessidade de harmonizar posições e reduzir o gap tecnológico existente entre os países cedo compôs a pauta do bloco, levando à criação da Reunião Especializada em Ciência e Tecnologia (RECyT) em 1992. No entanto, a criação de um marco legal e tecnológico comum entrou na agenda apenas em 1998-2000, no âmbito das discussões sobre comércio eletrônico levadas a cabo pelo novo Subgrupo de Trabalho Nº 13 (SGT-13).
O comércio eletrônico é distintivo da nova Economia Digital. Segundo a Ecommerce Foundation, o setor gerou US$ 33,2 bilhões na América Latina e no Caribe em 2013 — o correspondente a cerca de 0,57% do Produto Interno Bruto (PIB) da região e 3,2% de todos os produtos e serviços transacionados na economia. Somente o Brasil foi responsável por US$ 18,5 bilhões, montante equivalente a 0,62% do PIB do País. Apesar do crescimento do valor comercializado, a região perde comparativamente à média mundial. O setor gerou 1,56% do PIB mundial em 2013, e o consumo online médio foi de US$ 1.304 por consumidor — mais que o dobro da média latino-americana, de US$ 630. No que se refere ao e-commerce transfronteiriço, a larga maioria dos bens e serviços adquiridos tem origem nos Estados Unidos e na China. Não há dados concretos sobre o quanto é transacionado entre os países do Mercosul. A percepção geral é que esse volume é muito baixo e tem potencial para ser ampliado.
Foi essa percepção que motivou o Projeto de Apoio à Sociedade da Informação do Mercosul, em convênio com a Comissão Europeia, conferindo contornos mais claros à integração digital da região. Entre 2008 e 2013, o chamado Mercosul Digital buscou fortalecer competências e ampliar o conhecimento sobre as potencialidades das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) no comércio intra e extrabloco. Além de promover cursos a distância na Escola Virtual do Mercosul (EVM), o Projeto visou reduzir as assimetrias legais e tecnológicas entre os membros do bloco. Para tanto, procurou compor um marco regulatório sobre proteção de dados, fatura eletrônica e certificados digitais, com vistas a conferir segurança e validade jurídica aos contratos e documentos assinados em meio digital. O objetivo último era viabilizar transações mais rápidas e confiáveis, a fim de melhorar a integração produtiva e comercial e ampliar os horizontes de mercado para os pequenos e médios empresários nacionais.
Efetivamente, o Mercosul Digital teve sucesso em estabelecer um modelo tecnológico e jurídico de integração das infraestruturas de chaves públicas (ICP) e de reconhecimento das assinaturas digitais, consubstanciado no Plano Diretor de Certificação Digital para o Mercosul. Ainda, o Uruguai e a Argentina passaram a usar o carimbo do tempo (timestamp), que valida o instante em que um documento digital é assinado e permite, por exemplo, a emissão de notas fiscais eletrônicas. Já no Paraguai foram implantadas a Autoridade Certificadora Raiz e sua respectiva ICP, que conferiu validade legal às assinaturas digitais. Em ambos os casos, a tecnologia incorporada foi inteiramente brasileira, já existente no País e disponibilizada aos outros membros por meio da cooperação. Contudo, o Projeto não conseguiu dar seguimento à elaboração de um marco político-institucional de segurança e proteção de dados pessoais. Tampouco conseguiu desenvolver a almejada plataforma online para a venda de produtos e serviços de micro, pequenas e médias empresas e criar centros logísticos integrados para entrega de mercadorias (hubs e-logísticos).
Mais que o comércio eletrônico, a integração digital permite a realização de serviços e processos públicos integralmente digitais, em direção à construção de um verdadeiro governo eletrônico na região. O e-gov possibilita agilizar transações, assegurar maior confiabilidade e evitar fraudes. Nesse sentido, em 2004 foi implementado o Sistema Indira (Intercâmbio de Informação dos Registros Aduaneiros), consonante com o atual estágio de união aduaneira do bloco. Elaborado pelo Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), o Indira interconectou os sistemas de gestão aduaneira dos Estados Parte para permitir a consulta tempestiva a informações e documentos de importação e exportação que apoiam a etapa de despacho. Um passo adiante seria a interconexão das plataformas de fiscalização aduaneira e migratória, por exemplo, viabilizando as chamadas Aduanas Integradas do Mercosul, uma demanda constante dos auditores fiscais para agilizar os processos de liberação de cargas e fluxos de pessoas.
No que se refere à circulação de pessoas, encontra-se em estágio de implementação a placa comum de identificação veicular do Mercosul, a qual atingirá uma frota de mais de 110 milhões de veículos do Brasil, do Uruguai, do Paraguai, da Argentina e da Venezuela. O novo emplacamento conta com diversos elementos de segurança, a fim de facilitar a fiscalização eletrônica dos veículos das rodovias, dificultar a clonagem de placas e permitir um controle mais acurado dos carros particulares e do transporte de cargas e de passageiros. Com a futura integração e comunicação desse sistema, facilitar-se-á o acesso a dados de propriedade, modelo, fabricação e tipo de veículo, além de informações sobre roubos e furtos. Uma aplicação potencial da solução reside, por exemplo, na cooperação em matéria de inquéritos policiais envolvendo veículos furtados que atravessam as fronteiras brasileiras em direção a desmanches no Paraguai. Nesse sentido, a solução pode servir também ao funcionamento do já existente Sistema de Intercâmbio de Informações de Segurança do Mercosul (Sisme), por meio do qual são compartilhados dados sobre criminosos, roubos de carros, pessoas desaparecidas, entre outros. Implantado em 2005, o Sisme serve à dimensão securitária da integração regional, em especial o combate ao crime organizado, ao crime transfronteiriço, ao contrabando e à criminalidade intrabloco em geral. Atualmente, negocia-se a ampliação de seu escopo para questões de polícia comunitária, crimes cibernéticos, policiamento ambiental e narcotráfico.
A despeito das iniciativas, porém, os governos eletrônicos dos Estados Parte carecem maior desenvolvimento. Conforme o e-Government Development Index[1], os países da região ainda apresentam uma precária infraestrutura de telecomunicações, sobretudo uma baixa penetração da Internet banda larga (fixa e wireless). À exceção do Uruguai e da Argentina, pecam no tocante aos indicadores de educação (capital humano), e a maioria de seus serviços eletrônicos tem baixo nível de maturidade. Somada à já mencionada inexistente institucionalidade de segurança e proteção dos dados, essa realidade indubitavelmente impõe barreiras a uma maior comunicação e interação entre governos, sociedade e empresas no Mercosul.
Diante do exposto, a integração digital afirma-se como fundamental à redução dos custos de transação e comunicação entre os países do bloco, sendo vital à realização plena do Mercado Comum do Sul — seja em seu âmbito comercial, seja no tocante à mobilidade populacional e à segurança. Sem uma atenção especial dedicada ao tema (somada à adoção de marcos regulatórios de proteção de dados e de medidas harmônicas para ampliar a penetração da infraestrutura de TIC na região), o almejado fluxo de bens, serviços, capitais e pessoas será constantemente obstaculizado por processos burocráticos, departamentalizados e estanques, não condizentes com a realidade em rede da Era Digital.
[1] O índice é publicado bianualmente pela United Nations Public Administration Network (UNPAN) na Global E-Government Survey. Avalia comparativamente os países em três eixos principais: serviços eletrônicos, infraestrutura de telecomunicação e capital humano.