Texto sob autoria de: Alessandro Donadio Miebach

Alessandro Donadio Miebach

Pesquisador em Economia

Um primeiro olhar sobre a reforma trabalhista e seus impactos econômicos

A reforma trabalhista aprovada em 2017 ainda suscita dúvidas em relação a seus impactos sobre a sociedade brasileira. Os efeitos dessa mudança no marco institucional das relações trabalhistas do Brasil ainda são incipientes, e persiste certa insegurança jurídica quanto à aplicação efetiva da nova legislação. Algum tempo deverá passar para que diversos pontos sejam pacificados no marco jurídico do País. Por conseguinte, os impactos da reforma sobre o mercado de trabalho ainda não são claros. O presente texto objetiva indicar alguns dos possíveis efeitos dessa reforma sobre a economia e o comportamento do mercado de trabalho. Para tanto, são indicadas algumas tendências, as quais estão sujeitas a reavaliações, à medida que o mercado de trabalho brasileiro vá internalizando esse novo arranjo normativo.

A Lei 13.467/17 foi aprovada em julho de 2017 sem um amplo debate e sem esclarecimento à população. A legislação trabalhista brasileira já passou por várias mudanças desde a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 01.05.43, mas esta em análise é a maior transformação desse marco institucional desde então. O conjunto com mais de 100 alterações na legislação em vigor pode ser categorizado nos seguintes grupos: (a) novas formas de contratação mais flexíveis (ou mais precárias, quando comparadas com as condições anteriores à reforma), como, por exemplo, o trabalho intermitente, que contempla um contrato de trabalho com jornada descontínua; (b) flexibilização da jornada de trabalho, com ampliação dos bancos de horas e extensão da jornada de 12 por 36 horas para todos os setores de atividade; (c) rebaixamento de remuneração, com a introdução da possibilidade de pagamento por produtividade ou por hora de trabalho (implicando a possibilidade de a remuneração mensal auferida pelo trabalhador ser inferior ao salário mínimo); (d) alterações de normas de saúde e segurança no trabalho; (e) alterações na representatividade sindical; e (f) limitação de acesso à Justiça do Trabalho.

Em linhas gerais, os grupos (a), (b) e (c) têm por objetivo atender às necessidades empresariais de alocação da força de trabalho de acordo com as oscilações da demanda no curto prazo, ou seja, atuam no sentido de reduzir o custo da mão de obra, o que implica redução de direitos e da remuneração do trabalhador. Tais reduções poderão ocorrer sob a forma de regimes de contratação flexíveis, nos quais o número de horas trabalhadas se reduz (com possível intensificação do ritmo de trabalho), por meio de jornadas de trabalho mais longas ou via remunerações baseadas em produtividade.

O grupo (d) permite redução dos custos indiretos e modificações no ritmo e na intensidade do trabalho. Os grupos (e) e (f) atuam de forma a reduzir qualquer resistência à reforma trabalhista, ao fragilizar a organização sindical e restringir a abrangência de ação da Justiça do Trabalho. A fragilização da representação sindical tem o potencial de reduzir o poder de barganha dos trabalhadores quando das negociações coletivas.

Os principais argumentos utilizados para defender a reforma trabalhista brasileira situam-se na percepção de que a legislação apresentava uma rigidez incompatível com a dinâmica da economia e do próprio mercado de trabalho no início do século XXI, ou seja, a legislação trabalhista é compreendida como um empecilho ao crescimento do emprego e ao próprio crescimento econômico, ao mesmo tempo em que induz à existência de desigualdades na estrutura da força de trabalho, especialmente as associadas à distinção entre o trabalho formal e o informal. Já os argumentos contrários às mudanças na CLT situam-se na percepção de que a flexibilização, nos termos propostos pela legislação aprovada, impõem redução de direitos aos trabalhadores, refletindo-se em piores condições de trabalho, maior grau de subordinação aos empregadores e pressão no sentido da redução dos salários. Nessa perspectiva, a desigualdade entre o mercado de trabalho formal e o informal resulta do não cumprimento da lei por parte dos empregadores.

Do ponto de vista econômico, cabe destacar a existência de distintas compreensões teóricas sobre o papel dos salários na economia. Por um lado, a defesa da maior flexibilidade da legislação trabalhista situa-se na ênfase do papel dos salários como custo para a atividade produtiva. Dessa forma, sua redução, implícita na reforma, seria benéfica ao processo econômico, na medida em que permitiria um maior nível de atividade econômica. A redução de custos com os salários permitiria, sob essa perspectiva, melhores condições de competitividade, possibilitando maior market share para as empresas, ou seja, a simples redução do custo do trabalho estimularia a contratação de mais trabalhadores, independentemente das demais condições econômicas, e isso se converteria em maior nível de atividade econômica e emprego. Sob esse prisma, supõe-se que não existam restrições à demanda que possam impactar o nível de atividade econômica.

Por outro lado, os argumentos contrários à reforma, para além das condições de bem-estar dos trabalhadores e dos custos sociais, reconhecem a assimetria das relações entre capital e trabalho e enfatizam o papel dos salários na demanda por bens e serviços. Nesse sentido, reduzir salários implicaria menor consumo por parte dos trabalhadores, reduzindo a demanda agregada, o que teria implicações negativas sobre o investimento e, por extensão, sobre o crescimento econômico e o nível de emprego.

De fato, essa é uma faceta do debate que divide a Ciência Econômica desde a sua origem, com períodos de avanços e retrocessos entre os consensos teóricos criados ao longo do tempo. A própria criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, com sua representação tripartite, buscou pacificar os conflitos entre capital e trabalho, por meio de acordos internacionais e incentivos à regulamentação do mercado de trabalho. As evidências recentes de mercados laborais desregulados, como os casos da Espanha, da Irlanda e do México, não indicam que a maior flexibilidade do trabalho implica sustentação de elevados níveis de emprego.1 Por outro lado, estudos realizados pela OIT utilizando dados de mais de 100 países indicam que não há significância estatística na relação entre a rigidez da legislação trabalhista e o nível de emprego.2 O fato é que os processos econômicos são complexos, e o crescimento econômico deriva das interações entre diversas variáveis, tais como o tipo de inserção internacional de cada país, as condições dos mercados internacionais, as transformações tecnológicas, a natureza e o funcionamento das instituições, os distintos papéis desempenhados pelos salários, entre outras. Dessa forma, o crescimento econômico se configura muito mais como um indutor do emprego (dado um determinado sistema de relações laborais) do que como o resultado das condições institucionais que regulam as relações de trabalho. Isso é exemplificado pela condição de quase pleno emprego da economia brasileira entre 2010 e 2014, associada a significativas taxas de crescimento econômico, sob a vigência de leis que, dois anos depois, passaram a ser apontadas como responsáveis pelo elevado nível de desemprego.

Tendo essa leitura teórica em mente, no âmbito econômico, a reforma trabalhista tornará o comportamento do emprego e dos salários mais pró-cíclicos. Tanto o emprego quanto os salários ficarão mais suscetíveis a sofrerem os impactos das flutuações econômicas e estarão sujeitos a esses impactos mais rapidamente. Os empregadores poderão ajustar mais facilmente o volume de gastos com os empregados, segundo as flutuações da demanda. Nesse sentido, parece improvável que as mudanças institucionais realizadas no mercado de trabalho resultem em elevação do emprego, da mesma forma que a flexibilização da legislação trabalhista implementada na década de 90 não resultou em menores taxas de desemprego naquele período.


1 Em alguns estudos, são encontradas relações positivas entre a flexibilidade laboral e o desemprego (ver Guzman, E.; Guerra, E.; Salas, E. La Ley de Okun y la flexibilidad laboral en México: una análisis de cointegración. Contaduria y Administración 60, 2015 p.631-650.

2 Os estudos foram publicados no relatório da OIT, de 2015, World Employment and Social Outlook 2015: The Changing Nature of Jobs. Disponível em: <http://www.ilo.org/global/research/global-reports/weso/2015-changing-nature-of-jobs/WCMS_368626/lang–en/index.htm>.

Pode a América sentir-se grande de novo?

A recente eleição norte-americana apresentou uma polarização raramente vista no cenário político dos Estados Unidos da América ao longo do século XX. As eleições primárias dos dois grandes partidos do País foram extremamente disputadas e apresentaram características fratricidas. Do lado republicano, a constelação de políticos tradicionais foi superada por Donald Trump e sua retórica populista, gerando uma grande divisão no seio do partido. Já do lado democrata, a vitoriosa candidatura do establishment, representada por Hillary Clinton, defrontou-se com a plataforma de matizes socialistas de Bernie Sanders, causando fraturas que puderam ser observadas na convenção nacional do partido ocorrida em julho de 2016.

Várias disputas eleitorais norte-americanas ao longo do século XX apresentaram grandes clivagens em torno de temas políticos e sociais. Ao mesmo tempo, em conjunturas econômicas adversas os eleitores norte-americanos tenderam a punir os governos incumbentes. As turbulentas eleições de 1968, em meio ao movimento dos direitos civis e à guerra do Vietnã, a eleição de 1976, ocorrida sob a égide do caso Watergate, e mesmo a contestada eleição de 2000, ocorrida sob o impacto do escândalo Clinton-Lewinsky, podem ser consideradas como disputas de caráter social e político. Por outro lado, as eleições de 1932, em meio à Grande Depressão, as de 1980, ocorridas nos estertores dos choques do petróleo, e as de 2008, no auge da crise subprime, resolveram-se em incontestáveis substituições do partido situacionista pelo partido opositor. A eleição norte-americana de 2016, à primeira vista, reproduziu as disputas de distintas concepções sociais e políticas. Temas como conflitos raciais, imigração, questões de gênero e o combate ao terrorismo encontraram-se em evidência na mídia e nos discursos políticos. Entretanto a interpretação do significado das candidaturas de Donald Trump e Bernie Sanders passa por uma relevante transformação econômica ocorrida nos Estados Unidos, nas últimas décadas do século XX.

A partir de meados da década de 70 do século passado, a sociedade norte-americana apresentou aumento na desigualdade de renda. Isso representou uma inflexão na trajetória virtuosa da “Era de Ouro” iniciada no pós-Guerra. A “Era de Ouro” caracterizou-se como um período em que se compatibilizaram crescimento econômico e distribuição de renda relativamente equitativa. Dessa forma, tanto a distribuição pessoal da renda (DPR), que indica a renda apropriada por indivíduos ou domicílios, como a distribuição funcional da renda (DFR), que indica a parcela da renda nacional apropriada pelos ofertantes de capital (parcela dos lucros) e pelos ofertantes de trabalho (parcela salarial), apresentaram modificações ao longo do período.

Conforme o Gráfico 1, o coeficiente de Gini[1] para os domicílios norte-americanos apresentou marcada elevação para o período entre 1967 e 2014. Os dados demonstram uma tendência persistente de incremento na desigualdade de renda dos domicílios norte-americanos iniciada em meados da década de 70 e que se estende até o último ano com dados disponíveis, que é o de 2014.

texto_3-grafico-1Por sua vez, a distribuição funcional da renda também se modificou. Em relação aos dados, cabe mencionar algumas questões associadas à mensuração da parcela salarial. Os padrões de contabilidade social estabelecem que a parcela salarial inclui o total de compensações pagas aos trabalhadores, sendo computados para esse fim os salários pagos, bem como inclusas as contribuições previdenciárias. Por sua vez, a parcela do capital constitui-se na agregação dos lucros, bem como em rendimentos de propriedade e outras rendas de fontes distintas do trabalho. Um terceiro componente reside nos denominados rendimentos mistos. Esses rendimentos são obtidos em atividades nas quais não há distinção clara entre rendimentos do trabalho e do capital. O Gráfico 2 apresenta a evolução da parcela salarial com correção para os rendimentos mistos[2]. Observa-se uma suave tendência de crescimento dessa parcela até o início da década de 80. Essa tendência é sucedida por um período de maiores flutuações, que ocorrem dentro de uma tendência geral de queda da parcela salarial.

O processo de concentração da DPR nos EUA gerou uma vasta literatura que discute as várias características individuais ou domiciliares com vistas a explicar esse fenômeno. Temas como educação, raça, gênero, idade e escolhas profissionais subsidiaram uma profusão de estudos replicados ao redor do planeta. O objetivo nesse tipo de analise é o de apreender a desigualdade entre os salários.

Já a DFR passou a receber maior atenção a partir do final da década de 90. A crise de 2008 e suas fortes consequências, tanto econômicas quanto políticas, aprofundaram tais análises, e, desse modo, gerou-se um estímulo para novas pesquisas sobre a DFR e sua relação com a DPR nos EUA. Em outras palavras, além da desigualdade entre os salários, busca-se compreender a desigualdade entre as rendas do trabalho e as rendas do capital. Independentemente do grau de relevância da contração da parcela salarial sobre a distribuição pessoal da renda, o fato é que a sociedade norte-americana padece de questões distributivas que pareciam estar superadas em meados da década de 60.

texto_3-grafico-2As explicações para essa trajetória são muitas, e algumas delas carregam em si elementos que se articulam com a retórica política presente no conturbado cenário eleitoral estadunidense. Podem-se citar dois grandes grupos de explicações: um centra-se nos efeitos do neoliberalismo e da financeirização sobre os Estados Unidos; o outro versa sobre os padrões recentes de progresso técnico.

A adoção de políticas de corte neoliberal no início da década de 80 caracterizou-se pela mudança do objetivo principal de politica econômica, passando o foco da obtenção do pleno emprego para o controle da inflação. Isso coincidiu com o avanço do processo de financeirização, em que o capital financeiro progressivamente aumentou sua importância relativa frente ao capital produtivo, moldando tanto a estrutura econômica do País como o comportamento das empresas. Em termos macroeconômicos, a contrapartida da ênfase no combate à inflação correspondeu a uma tolerância com maiores taxas de desemprego em um contexto geral de enfraquecimento do poder de barganha dos trabalhadores e de seus sindicatos, observada ao longo da década de 80. Isso se associou à redução da participação da indústria no emprego bem como à maior exposição à concorrência internacional com países de custo do trabalho baixo, que foram observadas nos anos 90.  Conforme é exemplificado no Gráfico 3, essas modificações associam-se a uma nova relação entre as remunerações dos trabalhadores e a produtividade do trabalho. Os salários passaram a crescer abaixo da produtividade, rompendo com o padrão da “Era de Ouro”.

Já o comportamento das empresas apresenta uma passagem das tradicionais estratégias de investimento e crescimento, voltadas a resultados de longo prazo, para a priorização na redução de custos, a distribuição de dividendos de curto prazo e a valorização de suas ações. Isso se encontra expresso na orientação geral de “priorizar a geração de valor para os acionistas”. Inseridos em um contexto de flexibilização das relações de trabalho e de enfraquecimento dos sindicados, cujo marco inicial foi a derrota da greve dos controladores de voo em 1981, durante o Governo Reagan, esses processos resultaram em um aumento da dispersão salarial em detrimento dos salários mais baixos articulada com uma redução da parcela salarial.

texto_3-grafico-3O padrão progresso técnico também é apontado como uma das causas para o aumento das desigualdades nos EUA. Sob uma ótica convencional, discute-se a existência de progresso técnico portador de duas características: com viés em favor do trabalho qualificado e, ao mesmo tempo, com incremento da produtividade do capital. Essas duas características teriam colaborado no sentido de incrementar as desigualdades de renda. Entretanto os estudos recentes têm apresentado limitações em demonstrar que processos dessa natureza efetivamente causaram o aumento da desigualdade de renda.

Com a retomada da economia após a crise de 2008, as discussões sobre a desigualdade de renda novamente ganham corpo devido à aceleração do padrão concentrador de renda. No enfrentamento dessa crise, o Governo Federal e o Federal Reserve (FED) lançaram mão de medidas fiscais e monetárias pouco usuais, que injetaram milhares de dólares em instituições financeiras e empresas com balanços problemáticos, bem como atuaram como “negociador de última instância” ao comprar títulos privados, impedindo o colapso do mercado financeiro e o risco de paralisia da economia. No mercado de trabalho, porém, a recuperação seguiu o padrão verificado desde o final dos anos 80, conhecido como “jobless recovery”, em que a produção se recupera mais rápido que o emprego e com o mercado de trabalho se estabilizando em condições piores para a classe trabalhadora do que no ciclo anterior.

Além da recuperação mais lenta em termos de produto desde a Segunda Guerra, a atual fase da economia dos EUA é a que apresenta resultados mais dramáticos em termos de concentração dos ganhos adicionais de renda. Do período pós-guerra até o final dos anos 70, a expansão da renda média dos 90% mais pobres foi superior à dos 10% do topo, padrão que se inverteu a partir da década de 80 e foi-se aprofundando. Entre 2001 e 2007, 98% do aumento na renda média foram destinados aos 10% mais ricos, padrão que se intensificou ainda mais no pós-crise: de 2009 a 2012, os 10% mais ricos se apropriaram de 116% do crescimento da renda no período, o que significa uma queda de 16 p.p. na renda média dos 90% mais pobres, sendo que 95% dos ganhos acabaram nas mãos do 1% mais rico da sociedade.

Considerando o fato de que a maior parte da população norte-americana se encontra em condições materiais piores do que as vividas no período pré-crise, temos elementos suficientes para o surgimento de forças políticas não vinculadas ao atual status quo. Tais forças, expressas nas candidaturas de Trump e Sanders, parecem representar as frustrações enfrentadas por grande parte da sociedade norte-americana. A recuperação do slogan utilizado na campanha de Ronald Reagan em 1980 por Donald Trump em 2016 — “make America great again” — é o indicativo de que vários setores da sociedade norte-americana buscam uma volta do padrão da prosperidade compartilhada vivenciada no período anterior ao neoliberalismo. Aparentemente, a América somente poderá sentir-se grande de novo quando reverter as tendências regressivas de sua distribuição de renda.


[1]  Cabe destacar que o coeficiente de Gini varia entre 0 e 1 e mensura a desigualdade na distribuição pessoal da renda. Assim, quanto mais próximo de 0, mais igual é a distribuição de renda, quanto mais próxima de 1, mais desigual é a distribuição.

[2]  A correção é efetuada considerando que a proporção dos rendimentos do trabalho contida nos rendimentos mistos é idêntica à observada entre as compensações pagas aos trabalhadores e a parcela do capital.