Após a grande crise de 2008, que teve, entre as suas causas, o avanço do neoliberalismo e de uma de suas faces mais devastadoras, a desregulamentação financeira, observa-se que muitos países vêm paradoxalmente aprofundando medidas de corte liberal, com o intuito deliberado de superar a crise. A flexibilização das leis trabalhistas impõe-se, nesse contexto, ao lado de medidas de austeridade fiscal, como parte fundamental do receituário convencional para a necessária retomada do crescimento e para o enfrentamento do desemprego. Nesta edição da Panorama Internacional FEE, apresenta-se um conjunto de artigos que buscam contextualizar o cenário mundial no qual a reforma trabalhista brasileira se insere, as implicações e as incertezas envolvidas e suas origens históricas.
A necessidade de reformar as leis trabalhistas tem sido apresentada aos países do ocidente como um caminho sem alternativas, mas a experiência internacional mostra que os benefícios dessa reforma são, no mínimo, incertos. O artigo do pesquisador em relações internacionais Ricardo Leães aborda o caso paradigmático da reforma espanhola e revela que, enquanto a precarização das relações de trabalho é uma realidade cada vez mais presente, não é certo que a geração recente de empregos no País tenha resultado da reforma. Por outro lado, os países asiáticos adotam o reformismo em ritmo próprio, como descrevem os internacionalistas Bruno Jubran e Robson Valdez. Enquanto a Coréia do Sul combina a flexibilização da legislação trabalhista com a adoção de políticas explícitas de geração de emprego, a China, de praxe, na contramão, caminha para a ampliação dos direitos trabalhistas e previdenciários, com vistas a estimular o mercado interno e dar sequência à manifesta transição do seu modelo de desenvolvimento.
No Brasil, a reforma trabalhista também passou a ser vista como um pré-requisito, ao lado do cumprimento do teto para os gastos públicos e da aprovação da reforma da previdência, para a retomada do crescimento. Contudo, a relação entre a reforma e a geração de empregos aqui também não é automática. No passado recente, o País logrou alcançar um ciclo sustentado de crescimento econômico, com taxas de desemprego margeando as mínimas históricas, em conjunto com uma série de transformações na estrutura do mercado de trabalho que começaram a romper antigos padrões, como o aumento da formalização e a redução das desigualdades salariais entre negros e não negros e entre homens e mulheres. Tudo isso foi alcançado sem alterações profundas na legislação trabalhista. Sabe-se que tal cenário foi possibilitado por um ambiente externo favorável, que dificilmente se repetirá nos próximos anos. As reformas, então, seriam o único caminho para a retomada do crescimento?
Em seu artigo, os pesquisadores em economia Iracema Castelo Branco e Alessandro Donadio Miebach apresentam os principais aspectos da reforma trabalhista brasileira. De um lado, os que a defendem argumentam que formas mais flexíveis de negociação, inclusive para o estabelecimento da jornada de trabalho, e a redução das incertezas jurisdicionais contribuem para estimular a competitividade, ampliando as oportunidades para todos, não apenas para os incluídos no mercado formal, além de evitar ajustes quantitativos no emprego, nos períodos de crise. De outro, os críticos assinalam que a reforma aumenta a insegurança dos empregados, ao possibilitar a redução dos salários e o aumento da carga de trabalho (por vezes, unilateralmente), com previsíveis consequências negativas, não apenas para o bem-estar dos trabalhadores, mas também para a expansão do mercado interno e para o próprio crescimento econômico. Para além do debate econômico, os autores apontam as incertezas jurídicas que permanecem no horizonte e que só serão dirimidas após o andamento dos processos, a possibilidade de que uma parcela dos trabalhadores passe a auferir remunerações mensais inferiores ao salário mínimo (devido à formalização do trabalho intermitente), e o reflexo disso na arrecadação da previdência social, e as dificuldades criadas para os sindicatos e para o acesso dos trabalhadores à justiça.
As leis trabalhistas, em conjunto com a liberdade de associação sindical, buscam equilibrar uma relação de forças entre empregadores e trabalhadores que é naturalmente desigual nas sociedades capitalistas. Se bem calibrado, esse conjunto de regras contribui para a preservação de uma existência digna dos trabalhadores, não somente no que diz respeito ao acesso a bens de consumo, mas também ao seu reconhecimento como sujeitos e parte de uma sociedade, ao mesmo tempo em que preserva o estímulo à expansão econômica e à criação de empregos.
Alguns ajustes nas leis brasileiras talvez pudessem ser profícuos diante das mudanças que ocorrem no mundo do trabalho. O artigo do historiador Rodrigo Weimer revela que a legislação trabalhista brasileira começou a ser desenhada mesmo antes da sua consolidação na “bíblia do trabalhador” (designação popular para a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)) e que, desde então, vem sendo ajustada. O alcance e a profundidade das mudanças aprovadas no governo de Michel Temer, porém, não encontram paralelo no passado. A conjunção de forças atualmente no poder deixa dúvidas sobre se o objetivo da reforma aprovada é flexibilizar as regras para dar mais dinamismo à economia ou desequilibrar a balança das relações entre o capital e o trabalho. Para a entrevistada desta edição, a juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 4.a Região (TRT4) Valdete Souto Severo, não há dúvidas: “a ‘reforma’ da CLT não foi feita. Não há como falar em ‘reforma’ quando mais de 200 dispositivos são alterados, e todos eles, sem exceção, têm o objetivo declarado de proteger os empregadores”.
Boa leitura!