Lucas Kerr de Oliveira é professor adjunto na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), no Curso de Relações Internacionais e Integração e no Mestrado em Integração Contemporânea da América Latina. É Doutor em Ciência Política e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos, Geopolítica e Integração Regional (NEEGI) da UNILA e pesquisador colaborador do Centro de Estudos Internacionais Sobre Governo (Cegov), do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE) e do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (Nerint).
Em entrevista ao Panorama, Lucas Kerr de Oliveira avalia a centralidade da China no consumo petrolífero mundial e destaca as variáveis fundamentais para compreender o setor. Ele opina sobre as estratégias de atuação econômica da Petrobras e afirma que ainda estão em debate os prejuízos da maior crise energética brasileira, ocorrida em 2001. Lucas posiciona-se diante das políticas do governo interino brasileiro em relação ao setor energético e discute os fatores que aprofundaram a crise econômica no País a partir de 2015, com a queda dos preços do petróleo. Para o entrevistado, mais do que um recurso energético, o petróleo é um meio para aprimorar o desenvolvimento e fornecer segurança para um país.
Panorama: Na visão convencional, a abrupta queda do preço do petróleo é entendida sob a ótica da demanda, qual seja, a diminuição do “apetite” chinês por essa matéria-prima. Como você observa esse fenômeno?
A redução das expectativas de crescimento chinês pode ser considerada uma variável central para explicar a atual dinâmica energética mundial, incluindo o atual ciclo de preços baixos do petróleo, embora seja apenas uma entre as diversas variáveis envolvidas nesse processo. Primeiramente, importa destacar que a China passou a representar uma parcela crescente do consumo mundial de energia ao longo das últimas três décadas, passando a ocupar o posto de maior consumidor de energia global a partir de 2009, quando ultrapassou o consumo total dos Estados Unidos. Em 2013, a China ultrapassou o consumo somado da Europa e da ex-União Soviética, incluindo a Rússia. Atualmente, o consumo energético chinês representa 23% do consumo total de energia primária mundial e deve chegar a 25% até 2035, ou seja, a China irá representar, nos próximos 20 anos, o mesmo “peso” percentual do consumo total mundial que os Estados Unidos representou entre 1980 e 2000. Entre 1990 e 2011, a China quadruplicou seu consumo total de energia primária e também quadruplicou o consumo de petróleo, tendo praticamente alcançado o mesmo índice de crescimento no consumo de carvão. A partir de 2013 e 2014, já se notava uma redução no ritmo de crescimento, que completaria uma média de pouco mais de 5% ao ano entre 2005 e 2015. Em 2015, com o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em 7%, o crescimento da demanda energética chinesa foi de apenas 1,5%, sendo que o crescimento do consumo de petróleo foi de 6,3%, representando metade do volume total de crescimento da demanda global em 2015, que foi de 1,9 milhão de barris. Era de se esperar que a China não pudesse manter esse ritmo de crescimento para sempre, especialmente devido à crise econômica mundial, que reduziu o crescimento dos grandes parceiros do País, como os Estados Unidos, o Japão, os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean) e a União Europeia. Atualmente, a China responde por 13% do consumo petrolífero mundial, cerca de 12 milhões de barris de petróleo por dia (mb/d), equivalente a pouco mais de 60% dos 18 milhões consumidos pelos Estados Unidos. Por tudo isso, a China representa hoje um ator central para qualquer projeção de cenário referente ao crescimento do consumo mundial de energia.
Ademais, o atual contexto internacional e o aprofundamento da crise política e econômica na União Europeia, em grande medida, reforçam a expectativa de que a demanda energética mundial não irá crescer significativamente no curto prazo, especialmente porque essa crise começa a afetar mais diretamente os países emergentes, inclusive os países dos BRICS. Somam-se a isso as expectativas de crescimento da extração de petróleo em novas zonas petrolíferas offshore (como o Pré-Sal), as perspectivas de aumento da participação das fontes de energia alternativas ao petróleo, incluindo energias renováveis, mas também outras fontes fósseis como o gás e o óleo de xisto, que ampliam ainda mais as perspectivas de aumento da oferta de energia no curto prazo.
Destarte, importa destacar que não são apenas variáveis como a demanda e a oferta ou a competição interempresarial que importam para compreender o setor petrolífero. O petróleo é uma variável que está diretamente relacionada à competição interestatal internacional. Isso porque o controle sobre grandes reservas petrolíferas e sobre a infraestrutura de escoamento, refino e distribuição de petróleo e derivados, além de representar uma importante fonte de riqueza, consiste em poder e influência para as grandes potências mundiais. Em grande medida, a manutenção das estruturas que controlam o mercado petrolífero mundial está diretamente atrelada à influência político-militar que os Estados Unidos ainda possuem, desde a influência sobre importantes países e regiões petroexportadores, passando pela influência nos processos decisórios que envolvem investimentos na prospecção petrolífera, até mesmo pelo controle da reinversão dos petrodólares, dado que a cotação e a venda do petróleo continua sendo realizada em dólar. É justamente o conjunto das principais capacidades estratégicas dos Estados Unidos — de apoio aos seus aliados, de projeção de forças militares e de definição de conflitos — que permite ao País controlar grande parte do setor petrolífero e do sistema monetário global. Ou seja, em última instância, o poder político-militar continua sendo o principal pilar para o que resta da hegemonia estadunidense.
Panorama: A Petrobras apresenta um marco regulatório em que se congregam diferentes estratégias de atuação econômica: é uma companhia de capital aberto, mas o Estado brasileiro detém o controle acionário (50%+1). Quais as principais vantagens e as desvantagens dessa fórmula jurídica no setor?
A Petrobras nasceu em 1953 já como uma empresa S.A. de capital parcialmente aberto, mas com 90% das suas ações sob controle estatal. A ideia de manter o Estado como acionista majoritário sempre esteve ligada à busca por mais soberania e autonomia nacional na exploração de recursos naturais estratégicos como o petróleo, especialmente diante da necessidade de fazer frente às pressões e aos interesses das grandes corporações petrolíferas euro-americanas. Entre os anos 50 e 80, essa fórmula foi determinante para o esforço da Petrobras junto à estratégia de segurança energética nacional, construída para dar sustentação logística à grande estratégia brasileira, então calcada na industrialização e no desenvolvimento nacional. Nesse processo, a Petrobras foi central para que o País pudesse nacionalizar os processos decisórios referentes ao setor energético e petrolífero, ampliando a capacidade de planejamento e de controle nacional sobre a exploração das nossas próprias riquezas petrolíferas. Ao longo desse processo, ocorreu uma lenta redução no percentual da participação do controle estatal das ações da empresa, mas manteve-se o Estado como acionista majoritário. A Petrobras vinha cumprindo sua missão histórica, reduzindo significativamente a insegurança energética do País, diminuindo sua dependência de petróleo importado e tornando o Brasil praticamente autossuficiente no refino de derivados.
Contudo, nos anos 90, como parte de uma mudança extrema na política nacional, o País abandonou a grande estratégia vigente até então, que buscava uma inserção internacional mais autônoma através do desenvolvimento nacional. Naquele contexto, a Petrobras foi desmembrada, e, sem qualquer visão estratégica, as refinarias sob controle estatal foram vendidas separadamente, ao invés de transformadas em uma grande e única especializada no ramo da petroquímica. A Petrobras acabou sofrendo sérias restrições à expansão dos seus investimentos e, por fim, acabaria sendo parcialmente privatizada, tendo suas ações vendidas em um péssimo momento e bem abaixo do valor de mercado real. O resultado foi a redução do controle estatal nacional sobre suas ações para apenas 32% do total de ações da Petrobras, frente a uma participação estrangeira que chegou a mais de 30%.
Nesse sentido, a entrega do setor energético aos interesses estrangeiros não se restringiu à Petrobras, mas atingiu todo o setor energético nacional, com a venda, para grupos estrangeiros, de infraestruturas estratégicas de geração e distribuição de energia. Dentre os resultados da entrega desses setores estratégicos a grupos estrangeiros e nacionais que não tinham nenhum compromisso com o desenvolvimento nacional e buscavam apenas lucro de curto prazo, o País perdeu a capacidade de planejamento de longo prazo, tão fundamental nessa área, na medida em que abriu mão da capacidade de tomada de decisões soberanas na área energética para entregá-la às forças supostamente mais “eficientes” do mercado. O resultado mais visível desse processo foi que o Brasil sofreu a maior crise energética da sua história, que levou ao racionamento compulsório de energia em 2001, que ficou conhecido apenas como “apagão”. Os prejuízos daquele processo são, até hoje, objeto de debate, mas considerando os impactos então produzidos no PIB industrial, no encolhimento do PIB e no aumento do desemprego, podemos dizer que os prejuízos foram virtualmente incalculáveis.
A partir de 2003, observamos uma lenta retomada do planejamento energético, basilar para a reconstrução de uma estratégia de desenvolvimento nacional. A retomada dos investimentos no setor energético, tanto por meio da retomada da construção de pequenas e de grandes usinas hidrelétricas, como dos investimentos da Petrobras, foi determinante para impulsionar o ciclo de crescimento econômico da década que se seguiu. O crescimento dos investimentos da Petrobras permitiu que essa se tornasse uma das gigantes internacionais do setor petrolífero (chegou a se posicionar como a quarta maior empresa do mundo em 2010), com investimentos em dezenas de países, além da retomada dos investimentos no Brasil, que viabilizaram a descoberta das gigantescas reservas de petróleo do Pré-Sal.
Para se ter uma ideia da importância desse processo, é interessante destacar que a reconstrução da capacidade de planejamento e de tomada de decisões no campo energético permitiu, por exemplo, assegurar um elevado índice de autossuficiência petrolífera. Viabilizou, ainda, que a Petrobras voltasse a utilizar seu poder de compra para reativar a indústria naval nacional, o que foi alcançado em menos de uma década após a retomada de uma estratégia de desenvolvimento minimamente planejada. Ainda no campo energético, a adoção de políticas de conteúdo nacional em outros setores, como o de energia eólica, também se mostrou bastante positiva, impulsionando o desenvolvimento do setor de máquinas e equipamentos, como os aerogeradores.
Por fim, é interessante destacar que, a partir de 2010, a realização da capitalização da Petrobras permitiu aumentar novamente a participação estatal no controle acionário da empresa (para 46,9%), além de assegurar a manutenção dos investimentos necessários para viabilizar a exploração do Pré-Sal, que atualmente responde por mais de um milhão de barris de petróleo extraídos por dia. No mesmo contexto, a Nova Lei do Petróleo viabilizou superar os limites do sistema de concessões ao criar um sistema híbrido no Brasil, que permite que se mantenham leilões com o sistema de concessões nas áreas de alto risco, mas se utilize o sistema de partilha, que é muito mais vantajoso para o Brasil, em áreas de baixo risco como o Pré-Sal. Esse sistema de partilha, ao assegurar 30% e o controle dos blocos para a Petrobras, na prática representa a capacidade de controlar a exploração das riquezas petrolíferas nacionais e, ainda, a perspectiva de consolidação da política de conteúdo nacional no longo prazo.
Panorama: Diante da manutenção dos preços do petróleo em um patamar baixo e das dificuldades financeiras enfrentadas pela Petrobras, é possível que esse modelo de negócios seja revisto em um futuro próximo, de forma a garantir maior participação de empresas privadas ou estrangeiras?
Dificilmente os preços continuarão tão baixos por muito tempo. O mais provável é que os preços atuais se recuperem progressivamente ao longo dos próximos dois ou três anos, como ocorreu nos últimos ciclos de queda significativa dos preços. Entretanto, a velocidade dessa recuperação dependerá de uma série de fatores, desde a velocidade da retomada do crescimento da economia mundial, principalmente dos países emergentes como os BRICS e, especificamente, do aumento do volume de petróleo consumido pela China e pelos Estados Unidos. Também influem nesse processo as perspectivas de mudanças na política exportadora dos países da Organização de Países Exportadores do Petróleo (OPEP) e, ainda, do agravamento ou da estabilização do conflito envolvendo a guerra “por procuração” entre Arábia Saudita e Irã na guerra civil na Síria e na porção ocidental do Iraque, envolvendo o Estado Islâmico.
Desse modo, os ciclos de queda nos preços do petróleo de 2009-10 e de 2014-16 acabaram impactando significativamente a capacidade de investimento da Petrobras diretamente, o que acaba sendo agravado em um contexto de redução dos gastos públicos e de grande instabilidade política. Nesse contexto, o enfraquecimento de políticas mais nacionalistas na área energética acaba favorecendo as pressões antinacionais locais e estrangeiras, que defendem a revisão do modelo de partilha e a volta do sistema de concessões para o Pré-Sal. Essas pressões já estão ocorrendo e fizeram parte das discussões envolvidas nas mudanças aprovadas pelo Senado no início deste ano, retirando a garantia de controle nacional na exploração dos blocos do Pré-Sal, previsto para ser realizado através da Petrobras.
Embora o atual governo seja interino, portanto temporário, é clara a tendência a realizar mudanças definitivas independentemente dos impactos negativos que possam ter. Infelizmente, tudo indica que continua válida uma velha terminologia que resume as grandes tendências em disputa no cenário político nacional em duas grandes forças político-ideológicas antagônicas: os “nacionalistas” e os “entreguistas”; e o governo interino parece fortemente inclinado à adoção de políticas entreguistas em setores estratégicos como o petróleo. Dentre os sintomas dessa posição, destaca–se justamente a defesa do atual governo em entregar os ativos mais lucrativos da Petrobras para processos acelerados de privatização, que podem provocar prejuízos de longo prazo incalculáveis à capacidade de planejamento energético do Brasil, ou seja, cujos efeitos são claramente contrários ao interesse nacional.
Panorama: Algumas regiões brasileiras, que até pouco tempo atrás eram economicamente menos desenvolvidas, conheceram um importante e relativamente rápido progresso diante da ativação dos investimentos da Petrobras ao longo dos anos 2000. No caso de Rio Grande, cidade localizada no sul do RS, as encomendas da estatal promoveram um forte impulso no setor de estaleiros, os quais, entre 2010 e 2014, contrataram quase sete mil funcionários. Diante da revisão dos investimentos da Petrobras, em sua opinião, quais os possíveis impactos para essa região?
A decisão da Petrobras de priorizar a aquisição de navios e de plataformas petrolíferas no País através do estabelecimento de uma política de “conteúdo nacional” foi a principal responsável pelo renascimento da indústria naval brasileira. Fala-se em renascimento, pois, durante a década neoliberal dos anos 90, nossa indústria naval, que era uma das cinco maiores do mundo nos anos 80, foi literalmente “varrida do mapa”. Em 2000, o que restava da indústria naval brasileira empregava apenas cerca de dois mil trabalhadores. Em 2003, o governo do Presidente Lula tomou a decisão de reverter esse quadro com a política de conteúdo local nacional nas compras de navios e de plataformas petrolíferas da Petrobras, criando para isso o Programa de Mobilização da Indústria do Petróleo e Gás Natural (Prominp). Embora o programa tenha tido dificuldades para elevar o percentual de conteúdo nacional de alta tecnologia, foi suficiente para reerguer das cinzas a indústria naval brasileira, que voltou a se situar entre as maiores do mundo, chegando a empregar mais de 80 mil trabalhadores em 2013 e 2014. Até aquele período, a Petrobras mantinha seus investimentos acelerados e o Brasil parecia não sofrer consequências significativas da crise econômica mundial. Não é mera coincidência que, em 2013, a Presidente Dilma atingiu recordes de popularidade que ultrapassaram a popularidade do Presidente Lula.
Entretanto, a crise econômica começou a afetar o Brasil mais diretamente a partir de 2015. A queda dos preços do petróleo, que chegou a US$ 30,00 o barril, afetou profundamente as expectativas de investimento do setor petrolífero no mundo todo, mas atingiu mais duramente a Petrobras, que começou a reduzir seus investimentos, afetando também a indústria naval.
Dentre os fatores que aprofundaram a crise econômica, destacam-se os escândalos de corrupção envolvendo diversos políticos da coalizão governamental e grandes empresas nacionais, incluindo a Petrobras e as maiores empreiteiras do País. A operação judicial sob a alcunha “Lava Jato” resultou na paralisação das principais empreiteiras do Brasil, assim como na de muitas das obras públicas em andamento, resultando em uma grave crise em todo o setor de construção civil do País, que, por sua vez, acabou acirrando ainda mais a crise econômica e social. Naquele contexto, assistimos a uma forte rearticulação da oposição ao governo, com a participação de setores da, até então, base aliada governamental, e à instauração de uma grave crise política. Dentre os principais resultados, assistimos ao aprofundamento da crise econômica e à ruptura político-institucional que levou à substituição do governo eleito por um governo interino.
Nesse processo, a Petrobras viu-se obrigada a revisar seus planos de investimentos, especialmente considerando o cenário de instabilidade política e de crise econômica. O governo interino vem aprofundando ainda mais a política de cortes nos investimentos da Petrobras, prevendo cortes ainda mais significativos nos investimentos futuros. Somente neste ano, foi cancelada a construção de 11 novos navios de transporte de petróleo e derivados, diversos estaleiros abriram falência em todo o País, e a fabricação de algumas plataformas petrolíferas chegou a ser transferida para estaleiros estrangeiros. Em Rio Grande, mesmo plataformas que já estavam contratadas foram canceladas, e mais da metade dos empregos que a indústria naval gerava na cidade já desapareceram. Contudo, a retomada dos investimentos da Petrobras na aquisição de navios e de plataformas tanto vai depender do ritmo da retomada nos preços do petróleo (que pode demorar cerca de dois anos para se estabilizar), como também será influenciada pelo desfecho da atual crise política no País. Caso o desfecho seja favorável à empresa e à política de conteúdo local, tudo indica que a recuperação dos investimentos em navios e em plataformas deverá ocorrer nos próximos anos, ou seja, tende a ser mais lenta e gradual do que seria o ideal para a indústria naval.