Regimes de propriedade do petróleo: um breve estudo de casos latino-americanos

No cerne da discussão sobre os regimes de propriedade de recursos naturais, uma questão parece recorrente: o controle público ou privado é uma escolha ideológica? A resposta, talvez, seja afirmativa, mas não como mera decisão econômica sobre a forma mais desejável de organizar a produção social, e sim como resultado lógico dos interesses políticos, especialmente em regiões produtoras como a América Latina.

O papel que os recursos energéticos cumprem no funcionamento das economias nacionais confere um significado estratégico à sua gestão, que integra a questão econômica à própria segurança nacional e à reprodução das relações de poder em múltiplas escalas. Atualmente, a oferta de petróleo representa cerca de um terço do mix primário de energia do planeta, sendo que, em países como o México e a Venezuela, essa proporção ultrapassa os 50%. Além do mais, somente os 12 maiores produtores do planeta ofertaram mais de 72% do total mundial em 2014, entre os quais estão México, Venezuela e Brasil. Portanto, a compreensão dos arranjos contratuais de produção passa pelas peculiaridades político-econômicas de cada país em pelo menos dois níveis: o de sua relação com o sistema internacional e o de seu jogo político doméstico.

No plano internacional, a dimensão política da exploração econômica do petróleo ficou evidente para os atores do sistema pelo menos desde os embargos árabes de 1973, provocando a primeira grande crise do petróleo. Nos termos cunhados por Keohane e Nye[1], a “interdependência complexa” entre economias nacionais envolve “vulnerabilidades” e “sensibilidades” frente ao sistema político e econômico internacional. No caso do petróleo, a “sensibilidade” remete ao uso intensivo da commodity no mix primário, enquanto a “vulnerabilidade” está ligada à capacidade de resistir aos cortes repentinos de oferta. Não por outra razão, nos anos 70, os principais países consumidores inauguraram a prática de manter reservas estratégicas. Assim, o controle da produção de petróleo é uma fonte de poder no sentido mais puro da definição consagrada por Robert Dahl[2]: confere aos seus detentores a capacidade de compelir os demais atores a agirem de forma diferente do que eles agiriam voluntariamente.

No plano doméstico, o grau de apropriação estatal das rendas do petróleo, quer pela exploração exclusiva, quer pelas diferentes formas de taxação, deve ser analisado como qualquer outra política pública. Quanto maior o potencial de geração de renda, maior é o incentivo para a sua “busca” pelos agentes privados ou públicos, tanto para o ganho pessoal quanto para a canalização clientelista. O espaço para esse comportamento é resultado de pelo menos quatro elementos: a própria dotação dos recursos; a imobilidade dos ativos do setor, que os subjuga mais facilmente à taxação ou nacionalização; o nível de heterogeneidade das clivagens sociais, que está associado ao “custo de repressão” ao excluir essas demandas das escolhas políticas finais; e a “decisividade” política conferida pelo arranjo constitucional sobre os mecanismos de reforma legal.

As três maiores economias da América Latina: Brasil, México e Argentina, além da Venezuela, detentora das maiores reservas comprovadas do planeta, são os casos em destaque aqui. Em comum, no plano doméstico, os quatro países possuem regimes democráticos presidencialistas marcados pela forte centralização decisória, além de significativas pressões sociais por redistribuição. As similaridades, porém, param por aí.

No plano internacional, esses países apresentam condições bem distintas. México e Venezuela, como exportadores líquidos, têm baixa vulnerabilidade, embora a abundância de petróleo aumente expressivamente a intensidade do seu uso no mix primário de energia. Em ambos, a dinâmica internacional apresenta-se como um vetor pró-taxação pesada e/ou estatização da indústria, já que o controle direto dos recursos permite o seu uso tanto para fins políticos secundários no plano diplomático quanto para a administração dos preços internos, o que amortece a sensibilidade aos choques exógenos do mercado internacional de commodities. Alguns dos principais indicadores são apresentados na tabela.

Seguindo a tendência mundial de redução da oferta de petróleo no mix primário de energia, que, em 2001, era de 36,5% e, em 2013, já estava em 31,1%, o comércio líquido desses países sofreu um revés importante ao longo dos anos, com exceção do caso brasileiro. México e Venezuela, que não importam a commodity, viram suas exportações caírem 40% e 17,5% respectivamente. A Argentina, que no início da primeira década de 2000 era exportadora líquida de petróleo, praticamente zerou seu saldo comercial, mantendo o equilíbrio ao redirecionar sua produção, que se manteve estável, para o consumo doméstico. Já o Brasil, cuja balança comercial da commodity era negativa no início dos anos 2000, atingiu a autossuficiência e viu suas exportações crescerem rapidamente a partir de 2003.

No nível doméstico da análise, as diferenças também são relevantes. Brasil e Argentina apresentam matrizes industriais mais diversificadas e, portanto, lobbies empresariais nacionais mais heterogêneos, embora a segurança da oferta interna seja um interesse comum a todos os setores. Os dois países apresentam, ainda, uma menor dotação relativa de recursos, embora a ampliação do potencial brasileiro com o Pré-Sal tenha elevado os incentivos para a orientação estratégica da política de propriedade no País. Até então, os menores custos de oportunidade político-econômicos foram favoráveis à adoção de regimes de propriedade mais orientados para o mercado em ambos os países durante o consenso neoliberal dos anos 90, cujo processo foi revertido a partir dos anos 2000.

Em 1991, o Plan Argentina havia desobrigado que as novas descobertas de reservas fossem divididas com a estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF). Declarada privatizável em 1992, a venda dos ativos da empresa foi concluída em 1999, com 98,23% adquiridos pela espanhola Repsol S.A. A partir de 2002, ano em que a Argentina experimentava um razoável superávit com as exportações de petróleo, o governo estabeleceu taxação de 20% sobre as exportações de petróleo cru e de 5% sobre seus derivados, seguida de uma série de resoluções para pactuar a estabilidade doméstica de preços e oferta. Até 2007, a taxação foi ampliada, quando passou a haver uma política declarada de captação das rendas extraordinárias para o financiamento de políticas de Estado[3]. Com a gradual reorientação para o consumo doméstico, mesmo a baixa perspectiva de rendas geradas no setor não interrompeu o processo de progressiva intervenção, e, em 2012, o Governo argentino decidiu-se pela expropriação de 51% da YPF, processo que se encerrou em 2014 com o acordo de indenização à Repsol. A oscilação das políticas argentinas mostra o resultado de uma perspectiva de ganhos incertos ou relativamente pequenos, mas voltada para a garantia da oferta doméstica.

O mesmo processo de liberalização da década de 90 atingiu o Brasil quando ainda era discutível o potencial do País como player do setor. Até 1995, a Petrobras detinha o monopólio de todas as atividades relacionadas ao petróleo em território nacional, quando uma emenda constitucional permitiu a entrada do capital privado no setor. A desregulação do mercado de hidrocarbonetos foi definida em 1997, com a chamada Lei do Petróleo, que também criou a Agência Nacional do Petróleo (ANP), responsável pelos leilões públicos dos poços para exploração. Se, por um lado, pode-se dizer que o País manteve uma política orientada ao mercado no período, também é verdade que foi uma orientação moderada, pois a Petrobras seguiu sendo majoritariamente uma empresa pública, além de o monopólio formal da indústria pertencer à ANP. Com a descoberta de reservas em áreas superprofundas, surgiu a expectativa de que o País poderia tornar-se o sexto maior detentor de reservas do planeta, de forma que não surpreende que um novo regime tenha sido construído para a exploração específica desses poços. O chamado regime de “partilha de produção” apresentou uma mudança de orientação: ao invés de a empresa exploradora controlar o poço e ser proprietária dos recursos, pagando, dessa maneira, royalties ao Estado brasileiro, o poder público passou a ser o proprietário legal do recurso ainda depois de extraído.

No México, país também dotado de uma matriz produtiva heterogênea, o arranjo institucional mais centralizado, com a longa permanência do Partido Revolucionario Institucional (PRI), que esteve no poder de 1929 a 2000, somou-se ao alto potencial de renda do setor, resultando em políticas de propriedade pública estratégicas e estáveis por décadas. A estatal Petróleos Mexicanos (Pemex) foi a detentora do monopólio de todos os estágios da indústria de hidrocarbonetos no País desde a Constituição de 1917. A partir disso, toda decisão de investimento da estatal deveria passar pelo Congresso, com iniciativa do executivo. No entanto, essa alta centralização decisória também se tornou uma das explicações favoritas para a falta de investimento e para a queda na produção, eventualmente levando ao aumento do suporte no capital privado e à venda de títulos no mercado internacional. Desde 1995, passou-se a permitir a operação privada na distribuição e, depois, na produção do gás natural, movimento que precedeu a abertura do País à exploração privada de suas reservas petrolíferas em 2013. O movimento pró-mercado parece contraditório em um país com tamanho potencial produtor, mas apoia-se na queda expressiva das receitas de exportações e do papel mexicano como player internacional, no encapsulamento de seus interesses de política externa e na sua protoanexação econômica no contexto norte-americano.

Por fim, a Venezuela apresenta um arranjo mais centralizado do ponto de vista político-decisório, uma sociedade menos heterogênea do ponto de vista produtivo e socioeconômico e uma ampla demanda por redistribuição das enormes rendas do petróleo. O resultado é uma política de propriedade fortemente controlada pelo Estado, com viés estratégico. Monopolizada pela empresa estatal Petróleos de Venezuela S.A. (PDVSA) desde sua nacionalização em 1975, a produção petrolífera no País teve sua abertura ao capital privado a partir de 1991, com parcerias público-privadas nos campos marginais, como o da Faixa do Orinoco, dotados de óleo pesado de baixa qualidade. Em 1995, o Congresso venezuelano aprovou as explorações de risco e novas áreas, mas com a produção ainda sob regimes de partilha. Com isso, até 2001, apenas 35% da PDVSA pertencia ao Estado, processo revertido novamente em 2002, quando a participação pública em toda a fase de upstream foi ampliada para um mínimo de 51%. Por outro lado, a fase de downstream recebeu uma dupla regulação, em que a refinação poderia ser implementada por capital privado em qualquer proporção, mas a comercialização passou a ser um serviço público. Os preços finais são, assim, determinados pelo governo de acordo com seus objetivos, enquanto a própria Constituição estabelece que o Estado, por razões de conveniência nacional, inclusive de soberania econômica e política, conserva a propriedade total das ações da PDVSA.

O fato é que não se pode falar em um modelo adequado e universal para a propriedade dos recursos energéticos. Compreender a dinâmica político-econômica em múltiplos níveis é condição necessária para entender como a intervenção pública é muito mais do que mera orientação ideológica, correspondendo a disputas e interesses muito concretos e peculiares a cada Estado-nação.


[1] KEOHANE, R.; NYE, J. Interdependence in world politics. In: KEOHANE, R.; NYE, J. Power and interdependence: world politics in transition. Boston: Little Brown and Company, 1972. P. 03-22.

[2] DAHL, R. The concept of power. Behavioral Science, v. 2, n. 3, p. 201-215, 1957.

[3] CAMPODÓNICO, H. Gestión de la industria petrolera en períodos de altos precios del petróleo en países seleccionados de América Latina. CEPAL: Santiago. 2009.