Cristina Soreanu Pecequilo é professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e dos Programas de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e em Ciências Sociais da Unesp-Marília. É Pesquisadora Associada do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Nerint-UFRGS) e do Grupo de Estudo Inserção Internacional Brasileira: Projeção Global e Regional (UFABC e Unifesp). Mestre e Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de dois livros sobre o tema desta entrevista: Os Estados Unidos e o século XXI (Ed. Elsevier) e A política externa dos Estados Unidos (Ed. UFRGS).
Em entrevista ao Panorama, Cristina avalia o contexto atual nos Estados Unidos, país que, segundo ela, vive uma guerra de secessão política e social. A pesquisadora pondera que as eleições de 2016 nos Estados Unidos foram polarizadas, incitando a violência e o preconceito. Cristina também opina sobre as mudanças na política externa de Barack Obama em relação à de Bush e discute o papel geopolítico do Brasil na estratégia geopolítica norte-americana.
Panorama: Logo no início de seu mandato, em 2009, Barack Obama buscou deixar claras suas intenções diferentes em matéria de política externa, comparada à da Era Bush (2001-08). Mencionava, por exemplo, retirada das tropas do Afeganistão e do Iraque, fim da Prisão de Guantánamo e reset das relações com a Rússia. Na sua avaliação, o que realmente mudou na política externa entre Bush e Obama?
A principal mudança na política externa de Obama, quando comparada à do governo de Bush filho, refere-se ao estilo tático e retórico. Enquanto Bush agia de forma unilateral e detinha um tom militarista em sua agenda, mesmo antes dos atentados terroristas de 11/09, Obama preocupou-se em traduzir os atos hegemônicos em pautas multilaterais e cooperativas. Com isso, havia uma certa aceitação da comunidade internacional de suas posturas, ainda que, na prática, um exame mais atento demonstrasse elevado nível de continuidade entre as gestões democrata e republicana. Dentre os elementos de continuidade, destacam-se a prevalência da supremacia militar norte-americana, a manutenção da projeção de poder no Oriente Médio, a despeito das retiradas das tropas de Iraque e Afeganistão, a tensão das relações russo-americanas, com foco em temas como a Síria, os programas de espionagem, dentre outros. Porém Obama surge como mais bem-sucedido que Bush por conta de ações de impacto, como a retomada das relações diplomáticas com Cuba, que encobrem tensões e fragmentações, como a ascensão do Estado Islâmico.
Panorama: Muitos analistas apontam a fragilidade da retomada da economia norte-americana após a crise de 2007-09, bem como o aumento das desigualdades que caracteriza as últimas décadas nos EUA. No noticiário recente, percebe-se também um agravamento dos episódios de violência racial. De que modo esses problemas sociais e econômicos interferem na política norte-americana?
Os Estados Unidos são um país em guerra permanente, tanto dentro quanto fora de suas fronteiras. Externamente, as demandas da expansão e da projeção militar geram déficits constantes nas contas públicas, que não têm previsão de serem revistos. Internamente, a retomada da economia não é capaz de gerar empregos de forma sistemática, o que eleva o nível de desemprego a mais de 10% em vários estados norte-americanos, especialmente os afetados pela competição externa. Igualmente, é um país marcado pela queda de renda, pela estagnação de salários e por tensões raciais. Os déficits público e comercial somente enfraquecem a economia. Todo esse cenário é exemplificado nas explosões de violência diárias que o País vive e que não se resumem à violência racial, mas expandem-se para gênero, opções sexuais, escolhas ideológicas e levam a uma política polarizada. O símbolo desse processo é a candidatura Trump: ela simboliza toda a raiva e insatisfação que emanam da sociedade pela crise econômica, pelo medo e pelas fragmentações geradas pelo avanço das minorias negra e hispânica como majoritárias na população e a proporcional perda de espaço do que é chamado de América “WASP”, branca, anglo-saxã e protestante. É um país que vive uma guerra de secessão política e social.
Panorama: As eleições de 2016 nos Estados Unidos chamaram a atenção para uma intensa polarização, não apenas entre republicanos e democratas, mas também ao longo das eleições primárias. Existe algum paralelo entre esse contexto e a polarização política também em curso no Brasil?
A polarização das eleições de 2016 nos Estados Unidos, associada à incitação da violência e dos preconceitos, principalmente pelo candidato republicano, que deixa vazio o espaço de discussão de projetos políticos, é reflexo das transformações sociais pelas quais passa o País. Tais transformações, relacionadas a mudanças de renda, etnia, ideologia, perfil populacional, são comuns a vários países, dentre eles o Brasil, e a muitas nações da União Europeia (e no mundo em geral). Na ausência do debate construtivo, o que se busca são ataques pessoais e ofensivos, que procuram externalizar sempre o problema para um “outro”, seja o imigrante, seja o de gênero, raça ou religião diferente. O que se observa é uma tendência à xenofobia, à falta de tolerância e de diálogo de uma forma ampla. A questão é que poucos têm-se mobilizado para tentar retomar um debate construtivo e que não seja sustentado em preconceitos. Os tempos são difíceis, mas é preciso tentar retomar certo ponto de equilíbrio. Épocas históricas sem esse equilíbrio foram seguidas de grandes catástrofes humanitárias, como a Segunda Guerra Mundial e a experiência nazista.
Panorama: Pelos discursos do novo governo no Brasil, a agenda voltada à integração regional e ao multilateralismo deve dar lugar a uma inserção externa com maior atenção a Washington e a outras economias avançadas. Qual deve ser o papel do Brasil na estratégia geopolítica dos EUA e como tal estratégia pode interferir nas nossas decisões econômicas?
Um Brasil alinhado aos Estados Unidos, sem foco na integração regional na América do Sul, distante de seus parceiros nas coalizões dos emergentes como os BRICS (Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul), é um país fraco e, portanto, subordinado aos norte-americanos. Todos os períodos nos quais o Brasil buscou essa postura foram de poucas conquistas internas e externas, visto que se perde poder de barganha e se condicionam as decisões econômicas à política dos Estados Unidos. O papel geopolítico do Brasil vis-à-vis os norte-americanos é irrelevante. Paradoxalmente, os Estados Unidos temem, mas reconhecem um Brasil forte. No entanto, preferem um Brasil fraco, ainda que isso tenha custos sociais, políticos e estratégicos maiores na América do Sul. A aposta no eixo Norte-Sul e na relativização das parcerias Sul-Sul é prejudicial ao Brasil, mas é cíclica nas relações internacionais do País devido ao peso norte-americano.