O aparente isolamento do Brasil face à emergência recente de mega-acordos comerciais e a adoção, nos últimos anos, de medidas com vistas a ampliar o adensamento industrial e tecnológico — como as previstas no Inovarauto ou a mudança do regime de exploração do Pré-Sal — reacenderam, no País, o velho debate sobre as vantagens e as desvantagens da proteção. Segundo a teoria econômica convencional, a liberalização do comércio, ao contribuir para a valorização das vantagens comparativas oriundas da dotação natural de recursos dos países, tenderia a induzir a sociedade mundial a uma divisão do trabalho mais propícia à ampliação dos ganhos de produtividade e renda no longo prazo, a despeito de possíveis perdas setoriais no curto prazo. As abordagens alternativas, de outro lado, apresentam uma série de argumentos que justificam a intervenção, como a proteção à indústria nascente — sob a hipótese de que as vantagens comparativas podem ser “criadas” através de processos deliberados de industrialização —, a distribuição de renda, a segurança nacional, a segurança alimentar, além dos diversos problemas que podem resultar da especialização de um país na produção de produtos primários.
Mesmo que se reconheça a necessidade de regulação do comércio internacional por parte dos governos nacionais, pelas razões descritas acima e outras mais, como, por exemplo, o dumping e o comércio desleal, a teoria econômica também aponta o risco de que eventuais distorções alocativas, decorrentes da intervenção dos governos no funcionamento dos mercados, gerem custos excessivos para a sociedade. Na terminologia convencional, aponta-se o risco de que as “falhas de governo” acabem por se tornar maiores do que as “falhas de mercado”, as quais se busca corrigir. Em seu artigo, Thomas Kang apresenta o debate acadêmico recente sobre os benefícios e os custos da proteção comercial, assumindo que, no campo da política econômica, esse debate muitas vezes toma proporções dogmáticas e parece não ter fim. Conforme Kang, a questão central aparentemente não está em proteger ou não proteger, mas em “quanto e como se protege”.
A Organização Mundial do Comércio (OMC) foi criada com o objetivo de supervisionar e coordenar a adoção de medidas de liberalização do comércio internacional. Desde 1995, a Organização substituiu o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, em inglês), que emergiu do conjunto de instituições internacionais criadas no pós-guerra, a partir dos Acordos de Bretton-Woods. O GATT visava estimular o livre comércio de forma multilateral, arbitrando as diferenças entre os países nos processos de liberalização, com o objetivo de evitar a repetição da escalada de protecionismo verificada no período entreguerras. Tal tarefa, agora conduzida pela OMC, tem-se revelado complexa, na medida em que envolve uma série de assimetrias entre os países, ainda mais evidentes após a crise do subprime, nos EUA. Não surpreende, portanto, que as rodadas de negociações multilaterais conduzidas pela OMC avancem com dificuldades. A Rodada de Doha, iniciada em 2001 e sem perspectiva de terminar, evidencia esse fenômeno.
Em paralelo às negociações conduzidas via OMC, os acordos regionais de comércio, denominados Acordos Preferenciais de Comércio (APCs), têm ganhado cada vez mais importância. Desse processo, surgiram, recentemente, dois mega-acordos comerciais: o Trans-Pacific Partnership (TPP), envolvendo 12 países da Ásia e das Américas; e o Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP), envolvendo os EUA e a União Europeia. Tais acordos transcendem os processos de redução tarifária, envolvendo questões mais amplas, como as barreiras não tarifárias, a criação de mecanismos supranacionais de resolução de litígios, os direitos à propriedade intelectual, normas trabalhistas, manipulações cambiais, compras governamentais, meio ambiente, etc. Ou seja, esses mega-acordos inauguram um novo marco regulatório para o comércio internacional. Em seu artigo, Robson Valdez aborda os APCs em perspectiva histórica, destacando a onda de regionalismo que começou com a Comunidade Europeia e o North American Free Trade Agreement (NAFTA) e que culminou, nos últimos anos, no TTIP e no TPP.
Para o bem ou para o mal, os APCs, e, sobretudo, os dois últimos mega-acordos, têm colocado a estratégia de inserção externa da economia brasileira em xeque. A política externa brasileira sempre privilegiou as negociações multilaterais no âmbito da OMC. Tal estratégia se justificou, até o momento, pelo entendimento de que a negociação em bloco permite um maior poder de barganha aos países em desenvolvimento, relativamente fechados e com grandes e cobiçados mercados internos, como, por exemplo, o Brasil e a Índia. Porém, as negociações multilaterais vêm sendo esvaziadas pelos países desenvolvidos, em privilégio dos mega-acordos. Em seu texto, Beky Moron de Macadar explora os desafios que esses mega-acordos impõem para a política externa brasileira. Na prática, o País tende a enfrentar tarifas mais elevadas do que os seus concorrentes nos mercados dos EUA e da União Europeia, ao mesmo tempo em que pode assistir à erosão das preferências comerciais com as Américas do Sul e Central. Por outro lado, uma eventual adesão do Brasil como membro se daria com “espaço escasso para negociar os seus interesses”. Para Macadar, apesar dos desafios, que não são poucos, os mega-acordos representam uma oportunidade para que o País reveja a sua estratégia e adote medidas que possam contribuir para o aumento da sua produtividade.
Ainda sobre os desafios que os mega-acordos impõem ao Brasil, Tomás Amaral Torezani busca, em seu texto, avaliar os seus potenciais efeitos sobre os setores da economia brasileira, seja em termos de desvio de comércio, seja quanto à possibilidade de erosão de acessos preferenciais alcançados em negociações anteriores. Para Torezani, podem ocorrer desvios de comércio de produtos primários do Brasil para a Ásia, em favor de concorrentes como EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Também podem ocorrer desvios nos mercados brasileiros de bens manufaturados nos EUA e na América do Sul. Em termos de crescimento econômico, os efeitos podem não ser significativos, haja vista que o Brasil ainda é um país relativamente fechado. Porém, tais movimentos podem reforçar o processo de desindustrialização brasileiro, afetando, sobretudo, a indústria automobilística. Para o autor, a emergência dos mega-acordos e a não participação do Brasil tendem a reforçar a característica brasileira de exportador de commodities, assim como os laços com a China, dois outsiders.
O entrevistado desta edição é o Prof. Jorge Arbache, da Universidade de Brasília (UNB). A entrevista aborda não apenas os desafios que os mega-acordos representam para o Brasil, como também algumas questões mais amplas por trás desses acordos, com destaque para a crescente integração dos mercados de serviços, sua área de pesquisa mais recente.
Boa leitura.