Texto sob autoria de: Tomás Amaral Torezani

Tomás Amaral Torezani

Pesquisador em Economia da FEE. Economics Researcher at the FEE.

Comércio mundial e a “comoditização” das exportações brasileiras

Jorge Arbache é Professor de Economia da Universidade de Brasília. Atuou como o economista-chefe do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, assessor econômico sênior do Presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e economista sênior do Banco Mundial em Washington, D.C. Arbache tem Ph.D. em Economia e é bacharel em Economia e Direito. Seus principais interesses de pesquisa atuais são competitividade setorial, investimento, produtividade, tecnologia e comércio.

            Em entrevista ao Panorama, Jorge Arbache avalia os desafios para o comércio exterior e entende que os custos já não são mais o que determina a competitividade das nações e das empresas. Ele opina sobre os obstáculos enfrentados pelos países emergentes para a integração no comércio internacional e pondera que o foco do Brasil na produção e nas exportações de commodities engessa o estado de atraso do País. Arbache explica o esvaziamento dos acordos multilaterais, posiciona-se sobre os desafios que os mega-acordos representam para o Brasil e avalia a produtividade do setor de serviços brasileiro.

Panorama: Nas últimas décadas, diversos processos alteraram de maneira decisiva a configuração da ordem econômica internacional, com destaque para a fragmentação da produção em cadeias globais de valor, o papel desempenhado por empresas multinacionais e a importância crescente da China. Esses movimentos trazem novos desafios para o comércio exterior no século XXI?

Sim, muitos novos grandes desafios, especialmente para países em desenvolvimento e emergentes que ainda estão em busca de um “lugar ao sol” no século XXI. Custos estão perdendo relevância para determinar a competitividade das nações e das empresas. Robôs, “Internet das coisas”, inteligência artificial, impressoras 3D, manufatura 4.0, novas energias, nanotecnologia, etc. reduzem a parcela de custos de produção convencionais no valor final do produto. Sim, ainda são e serão muito importantes por um bom tempo, mas o que cada vez mais determina a competitividade é a capacidade de fazer aquilo que agrega valor. Bens e serviços “comoditizados” cada vez menos serão capazes de fomentar desenvolvimento econômico amplo e inclusivo.

Panorama: Com o enfraquecimento da agenda multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC), acordos preferenciais de comércio passaram a ser celebrados. Os recentes mega-acordos que começam a tomar forma podem ser considerados como uma nova etapa da globalização?

O enfraquecimento dos acordos multilaterais se deve à mudança de orientação dos Estados Unidos e de outros países em favor da agenda plurilateral, deixando a agenda multilateral morrer de inanição. Acordos plurilaterais como o TPP[1] e o TISA[2] já estão substituindo os acordos multilaterais de forma tácita e, mais à frente, substituirão de forma expressa. O problema é que os acordos plurilaterais não se preocupam com a agenda de desenvolvimento nem tampouco consideram a gigantesca desigualdade entre os países em termos de status quo tecnológico, inovação, de estoque de capital per capita, de capacidade de acesso a crédito, de propriedade intelectual, de sediar corporações globais. Praticamente toda a economia digital está nas mãos de algumas poucas megaempresas, sendo que praticamente todas elas são dos EUA e algumas poucas da Europa. Trata-se de uma agenda que visa basicamente ampliar as vantagens daqueles que já estão em vantagem. Talvez seja a globalização em sua etapa mais questionável do ponto de vista do acesso a oportunidades de convergência de produtividade e de crescimento e prosperidade para todos.

Panorama: Quais são os maiores obstáculos que os países emergentes enfrentam para se integrarem de maneira mais assertiva ao comércio internacional? E, no caso brasileiro, como se posiciona o País nas negociações comerciais?

Os maiores obstáculos estão associados à incapacidade, no futuro previsível, de reduzir os fossos de conhecimento e de tecnologia, que só se ampliam. Sim, em parte o fosso aumenta em razão da postura ultramercantilista dos países avançados. Mas em boa parte se deve a nós mesmos, que insistimos em confrontar a relevância das agendas de conhecimento nas suas várias dimensões: educação básica, ciência e tecnologia, inovação, educação profissional, gestão da produção, cooperação entre universidades e empresas. Quanto ao posicionamento do Brasil nas negociações, temos nos focado em agendas que privilegiam a produção e exportação de commodities, o que pode ser bom no curtíssimo prazo, mas que engessa ainda mais o nosso estado de atraso e amplia o nosso descolamento dos países que desenvolvem e produzem bens e serviços de alto valor adicionado.

 

Panorama: Ultimamente, vem aumentando a atenção dada ao papel desempenhado pelos serviços produzidos e comercializados em escala global. Qual sua avaliação sobre a real importância do setor para o comércio internacional e as perspectivas de crescimento na atual ordem econômica mundial?

Uma das características da globalização é a consolidação dos mercados, isto é, a redução do número de players nos segmentos que mais importam. Isso já acontece a olhos vistos no mercado de alimentos, automóveis, processadores, vidros, aeronaves, supermercados, seguros, e por aí vai. Em alguns mercados, já está mais difícil para uma empresa em nível nacional concorrer com empresas que atuam em nível global. Empresas em níveis estadual e municipal, nem se fala.

Panorama: A parcela dos serviços no Valor Adicionado das exportações globais vem crescendo. No entanto, ainda são baixos o peso do setor nas exportações brasileiras e sua produtividade na economia como um todo. Quão longo é o alcance que os serviços podem vir a representar nos fluxos de comércio, de investimento e de tecnologia do País?

Os serviços já são responsáveis por 54% do comércio global, quando contabilizados em Valor Adicionado. Estima-se que serão 75% até 2025. Logo, serviços finais exportados, como uma apólice de seguro e, muito mais importante, serviços “embutidos” na produção de bens industriais, agrícolas e minerais são simplesmente determinantes para a competitividade das empresas e para a prosperidade das nações. No caso do Brasil, os serviços são o principal componente do Valor Bruto da Produção industrial. Nos produtos exportados, sua participação é elevada. Mas aquela parcela será tão maior quanto mais elaborado for o produto, o que não é nosso caso, que exportamos muitas commodities e bens industriais “comoditizados”, como celulose e açúcar. Por fim, como a produtividade do nosso setor de serviços é muito baixa e está estagnada, os serviços “intoxicam” os demais setores, comprometendo a sua competitividade. Isso ajuda a explicar a inflação em geral e a nossa baixa competitividade internacional.


[1] Do inglês, Trans-Pacific Partnership.

[2] Do inglês, Trade in Services Agreement.

Possíveis repercussões dos mega-acordos comerciais nas exportações brasileiras

Qualquer que seja a extensão ou a profundidade em um debate sobre acordos comerciais, mesmo no século XXI, a dualidade entre livre comércio e protecionismo ganha corpo. Enquanto os defensores do primeiro identificam potenciais ganhos e oportunidades para todos os envolvidos em um acordo dessa alçada, a partir da visão da noção de vantagens comparativas, baseados em modelos tradicionais de comércio internacional, outros advogam que uma liberalização comercial, além de modificar a composição do emprego, também altera o seu nível, bem como o de outras variáveis, como salários, renda e os próprios fluxos comerciais. Os avanços dos recentes acordos globais de comércio e investimento reanimaram o debate em questão. Todavia, o que está posto nesses acordos ultrapassa essa falsa dicotomia, na medida em que se vai conhecendo o que está, de fato, sendo definido nessas negociações.

A Parceria Transpacífico[1] e a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento[2] remetem-se a mega-acordos comerciais regionais sob a liderança dos Estados Unidos, em detrimento de negociações multilaterais no âmbito da Organização Mundial do Comércio. O TPP resume-se a uma parceria entre 12 países da costa do Pacífico que respondem juntos por 25% das exportações mundiais, cerca de 40% do Produto Interno Bruto (PIB) global e por mais de 800 milhões de habitantes[3] e apresenta-se como uma prerrogativa norte-americana para aumentar a sua influência na Ásia em detrimento do avanço da China no continente. Isso é reforçado por conta de os EUA já possuírem acordos comerciais em vigor (baixas barreiras tarifárias) com alguns dos países envolvidos, embora tais barreiras ainda sejam elevadas entre os demais membros do TPP. Por seu turno, o TTIP trata de uma proposta ainda maior de acordo de comércio e de investimentos entre os EUA e a União Europeia, congregando 60% do PIB do planeta, um terço do comércio mundial de bens e mais de 40% do de serviços.

Em comum, esses dois mega-acordos extrapolam a barreira do comércio de bens e serviços, dando grande importância a questões como reduções de barreiras não tarifárias, mecanismos de resolução de litígios[4], direitos de propriedade intelectual, normas trabalhistas, manipulações cambiais, compras governamentais, meio ambiente, etc. Ou seja, esses mega-acordos inauguram um novo marco regulatório para o comércio internacional, dentro do aprofundamento da atual lógica da fragmentação produtiva e das cadeias globais de valor.

A partir das movimentações dessas parcerias, emerge a natural indagação a respeito dos seus potenciais efeitos (diretos e indiretos, positivos e negativos) sobre as nações (sejam elas membros das parecerias ou não). Todavia, uma investigação precisa e mais profunda é impossibilitada pela falta de acesso às cláusulas dos acordos, uma conduta que vem sendo bastante questionada. A despeito das preocupações legítimas que resultam do não conhecimento do efetivo texto dos acordos, o garantido é que existirão vencedores e perdedores, com os benefícios e os malefícios sendo distribuídos desigualmente em torno das economias mundiais, ao mesmo tempo em que emergem desafios e são criadas oportunidades para todos os países.

Sem dúvidas, os mega-acordos afetarão profundamente as relações de comércio e os fluxos de bens e serviços entre as economias nacionais. Em um primeiro momento, vislumbram-se potenciais efeitos tanto nas nações envolvidas nas negociações quanto nas que não participaram, podendo-se destacar: (a) a criação e/ou o desvio de comércio; (b) o aprofundamento e/ou o isolamento das cadeias globais de valor; (c) a erosão de acessos preferenciais de negociações bilaterais anteriores; e (d) os efeitos sobre renda e emprego ao redor do mundo.

No caso do Brasil, entende-se que a abertura comercial intrarregional dos países do TPP e do TTIP, bem como a convergência nos seus padrões regulatórios, afetará os seus fluxos comerciais em todos os grupos de produtos (básicos e industriais). Pelo quadro a seguir, percebe-se que os principais produtos exportados pelo País (47% do total) não têm tanta representatividade nos mercados em questão. Entretanto, as nações que compõem as parcerias são grandes exportadoras e importadoras de muitos desses produtos, o que pode ocasionar efeitos negativos indiretos nas exportações brasileiras. Ademais, nos outros 53%, as vendas externas de certos produtos são bastante dependentes dos mercados abrangidos pelas parcerias, ao mesmo tempo em que existem, nessas regiões, potenciais concorrentes ao Brasil e expectativa de crescimento do comércio intrarregional, o que poderia acarretar efeitos negativos diretos para as exportações do País.

Em se tratando do Setor Primário, o TPP pode provocar desvios no comércio entre Brasil e Ásia, em favor de concorrentes como os EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, mais especificamente em setores de grãos, leite, carnes e açúcar. As vendas de produtos manufaturados também podem sofrer alguma adequação, na medida em que alguns mercados europeus e sobretudo o dos EUA são importantes destinos desses tipos de produtos brasileiros; no sentido inverso, a participação de países como México e, principalmente, Peru e Chile pode-se tornar porta de entrada para produtos industriais na América do Sul, tirando alguns mercados do Brasil. Já a concessão de cotas preferenciais por parte da União Europeia para os EUA também reduziria o acesso brasileiro aos mercados europeus.

Participação dos 10 principais produtos exportados pelo Brasil e principais mercados de origem e de destino — 2012-15 (%)

PRODUTO PRODUTO/TOTAL BR PRODUTO TPP/TOTAL BR PRODUTO TTIP/

TOTAL BR

PRINCIPAIS EXPORTADORES MUNDIAIS PRINCIPAIS IMPORTADORES MUNDIAIS
Minério de ferro

11,5

1,4

2,1

Austrália (52%), Brasil (25%), África do Sul (6%)

China (65%), Japão (12%), Coreia (6%)

Soja

9,4

0,4 1,3 EUA (42%), Brasil (38%), Argentina (7%)

China (64%), Alemanha (3%), Espanha (3%)

Petróleo

6,8

2,4 2,3 Arábia Saudita (20%), Rússia (17%), Emirados Árabes (9%)

EUA (19%), China (15%), Japão (9%)

Açúcar

4,6

0,5 0,3 Brasil (40%), Tailândia (11%), França (5%)

China (8%), EUA (8%), Indonésia (7%)

Carne de frango

3,0

0,6 0,1 Brasil (26%), EUA (18%), Holanda (10%)

Alemanha (8%), Hong Kong (7%), Reino Unido (7%)

Farelo de soja

2,9 0,1 1,9 Argentina (37%), Brasil (23%), EUA (13%)

Holanda (8%), Indonésia (7%), França (6%)

Café

2,4

0,8 1,8 Brasil (19%), Vietnã (11%), Alemanha (9%)

EUA (20%), Alemanha (14%), França (8%)

Milho

2,3

0,6 0,2 EUA (29%), Brasil (17%), Argentina (15%)

Japão (15%), Coreia do Sul (8%), México (8%)

Celulose

2,2

0,5 1,3 Brasil (17%), Canadá (17%), EUA (16%)

China (30%), EUA (10%), Alemanha (9%)

Carne bovina

1,9

0,0 0,1 Brasil (21%), Austrália (18%), Índia (15%)

Rússia (16%), EUA (15%), Hong Kong (9%)

Subtotal

47,0

7,3 11,4 Austrália (29%), Brasil (25%), EUA (8%)

China (42%), Japão (10%), Coreia (6%)

TOTAL

100,0

22,9 30,6 China (16%), EUA (15%), Alemanha (9%)

EUA (14%), China (11%), Alemanha (7%)

FONTE DOS DADOS BRUTOS: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Aliceweb 2. 2016. Disponível em: < http://aliceweb.desenvolvimento.gov.br/ >. Acesso em: 8 mar. 2016.

UNITED NATIONS. United Nations Comtrade Database. [2016]. Disponível em: < http://comtrade.un.org/data/ >. Acesso em: 8 mar. 2016.

Alguns estudos já realizados estimaram os efeitos do TPP e do TTIP na economia brasileira. Simulações feitas por Thorstensen e Ferraz (2014)[5] indicam arrefecimento do fluxo comercial brasileiro com os países do TPP e do TTIP e da participação do País no comércio internacional como um todo, com retrações mais significativas quando se simulam reduções — além das barreiras tarifárias — de barreiras não tarifárias, o que será o caso desses mega-acordos. Como as barreiras tarifárias entre os países-membros já são relativamente reduzidas, as diminuições das não tarifárias trariam maiores efeitos negativos para o Brasil. A partir do TPP, os setores brasileiros mais prejudicados seriam os de produtos e preparados de carne, o de produtos animais e os de frutas, vegetais e café. Por outro lado, o setor mais beneficiado seria o de silvicultura. Efeitos deletérios ainda maiores nos fluxos comerciais brasileiros se observariam com o TTIP: no setor agrícola, as maiores perdas seriam sentidas, basicamente, nos mesmos setores do TPP; já em relação ao setor industrial, o segmento mais beneficiado seria o de produtos de madeira, enquanto os mais prejudicados seriam os de equipamentos de transporte, veículos e partes, couro e minerais não metálicos.

Outro estudo, desenvolvido por Fleischhaker et al. (2016)[6], simula que os mega-acordos teriam um efeito limitado sobre a taxa de crescimento do Brasil — por conta de ser uma economia relativamente fechada —, mas a sua estrutura de comércio seria significativamente comprometida. No geral, o País ficaria ainda mais isolado do comércio global e cada vez mais caracterizado como um exportador de commodities. Em relação ao TPP, espera-se um crescimento dos fluxos comerciais com a China, em um fortalecimento dos laços entre dois grandes países outsiders. No entanto, os ganhos em exportações para a China seriam contrabalanceados por perdas ainda maiores em exportações para os participantes do TPP, sobretudo para os EUA e o México. Já no que tange ao TTIP, mesmo com o relativo aumento das exportações de insumos minerais para a indústria automobilística europeia, isso viria como um custo para as exportações em outros mercados-chave para produtos brasileiros, com resultados globais negativos em termos de comércio e crescimento. O único setor que não sairia perdendo seria o de mineração, ao passo que nem mesmo outros setores baseados em commodities seriam beneficiados, por conta da presença de outras potências agrícolas como o Canadá e a Austrália, que teriam acesso preferencial a mercados importantes para esses produtos, como o Japão e a União Europeia. Ademais, os autores argumentam que o avanço dos mega-acordos poderia agravar o processo de desindustrialização da economia brasileira, com encolhimento do setor manufatureiro em quase todos os seus segmentos, liderado pela indústria automobilística.

Em tempos de maior interdependência das economias nacionais, menor crescimento do comércio mundial e acirramento da concorrência externa, a efetivação dos mega-acordos pode levantar ainda mais desafios a uma inserção de qualidade da economia brasileira na arena internacional e a uma maior integração nas cadeias de produção global, sobretudo em um período baixista no ciclo das commodities, com termos de troca desfavoráveis e rebalanceamento da economia chinesa. Nesse cenário sensível para o Brasil, mesmo com um grande mercado interno, vantagens em alguns segmentos agrícolas e minerais e demanda de países vizinhos estratégicos para as vendas de produtos manufaturados, seria desejável que o País adotasse uma estratégia para, pelo menos, reduzir o seu relativo isolamento do comércio internacional e das cadeias globais de produção. Enquanto o TPP e o TTIP parecem representar sérias ameaças aos interesses brasileiros, com potenciais efeitos na composição e na direção de seus fluxos comerciais, esses efeitos podem agravar, ainda mais, a situação brasileira, com o reforço à dependência de exportações de apenas algumas commodities.


[1]  Trans-Pacific Partnership (TPP), em inglês.

[2]  Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP), em inglês.

[3]  Além dos Estados Unidos, outros membros do TPP são: Canadá, México, Peru, Chile, Japão, Malásia, Vietnã, Cingapura, Brunei, Austrália e Nova Zelândia.

[4]  Nesse tocante, Stiglitz, em The secret corporate takeover, publicado na Project Syndicate, em 13 de maio de 2015, chama a atenção ao fato de os mega-acordos consistirem em acordos comerciais geridos, adaptados aos interesses corporativos dos EUA e da União Europeia, impondo alterações fundamentais aos modelos jurídicos, judiciários e regulamentares das nações envolvidas. Ao permitir que investidores estrangeiros processem países, abre-se a possibilidade de os últimos indenizarem os primeiros pela perda de lucros esperados até mesmo em casos em que os lucros são feitos a partir de danos públicos.

[5]  THORSTENSEN, V.; FERRAZ, L. Brasil: entre acordos e mega-acordos comerciais. Revista Brasileira de Comércio Exterior, Rio de Janeiro, n. 120, jul./set., 2014.

[6]  FLEISCHHAKER, C.; GEORGE, S.; FELBERMAYR, G.; AICHELE, R. A chain reaction? Effects of mega-trade agreements on Latin America. Gütersloh: Bertelsmann Stiftung, 2016.

Os nexos econômicos entre o Mercosul e o Rio Grande do Sul

A localização meridional do Rio Grande do Sul, por muitos considerada “excêntrica”, devido à distância em relação aos grandes centros consumidores do País, ganha contornos de centralidade quando se trata do Mercosul. Afinal, a fronteira aberta com o Uruguai e a Argentina confere ao Estado uma posição privilegiada para o estabelecimento de conexões produtivas e comerciais entre os países do bloco e o Brasil. Inicialmente entendido como ameaça à economia gaúcha, dadas as similaridades produtivas com os países vizinhos — principalmente quanto à importância do agronegócio —, o Mercosul logo se constituiu em um atrativo para a realização de investimentos no Rio Grande do Sul. Da safra de investimentos realizados nesse contexto, destacam-se os feitos no setor automotivo, cuja divisão do trabalho no âmbito regional envolveu complementaridades e interdependência entre as produções realizadas no Brasil e na Argentina, e no setor de máquinas e equipamentos para a agricultura, cuja localização no Estado mostrou-se estratégica para o atendimento dos países vizinhos e da demanda crescente do centro-oeste brasileiro. O Mercosul representou, de início, uma oportunidade estratégica para a transformação da estrutura produtiva do Estado.

[…] a integração com os países do sul do continente começa a revelar-se capaz de alterar até mesmo as características maiores da economia gaúcha. Com efeito, o estado começa a abandonar a sua posição historicamente periférica (no contexto brasileiro) para assumir uma posição central, no âmbito da economia integrada. Refletindo e ao mesmo tempo materializando a mutação em curso começam a ser tomadas decisões de investimento concebidas e dimensionadas em função do Mercosul.[1]

Passados mais de 25 anos da sua criação, o Mercosul ainda importa estrategicamente para a economia gaúcha, embora as expectativas e as oportunidades quanto ao futuro do bloco se mostrem menos promissoras.

A economia gaúcha é mais aberta ao Mercosul do que a média nacional, seja devido às complementaridades produtivas construídas, seja em virtude da maior participação das importações, cuja porta de entrada é o Estado e cujo destino, muitas vezes, é o centro do País. Na média do período 1991-2014, as vendas para o Mercosul representaram 14,0% das exportações gaúchas e 11,2% das exportações brasileiras. Por outro lado, as importações do Mercosul representaram, na mesma base de comparação, 32,5% das compras externas gaúchas e 9,8% das brasileiras (Gráfico 1).

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Quando se comparam as exportações gaúchas para o Mercosul com as destinadas a outras regiões, também fica evidente a sua relevância para o Estado (Gráfico 2). Ao longo de praticamente todo o período 1991-2014, o Mercosul foi o terceiro maior destino das exportações gaúchas. A participação média do valor exportado só foi superada pela União Europeia (22,8%) e pelos Estados Unidos (19,9%). Contudo, a relevância de ambos na pauta exportadora do Rio Grande do Sul vem reduzindo-se significativamente nos últimos anos.

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Na divisão entre os sócios do bloco, na média do período 1991-2014, 62% do valor exportado voltou-se para a Argentina, 19% para o Paraguai e 18% para o Uruguai. De 1991 a 2009, o valor das exportações do Rio Grande do Sul para o Mercosul cresceu a uma taxa média anual de 15%, enquanto o total das vendas externas do Estado expandiu-se em 9%. No período mais recente, porém, vê-se uma mudança nessa dinâmica: as vendas do Estado para os países-membros retraíram-se 2% no período 2010-14, enquanto o total das exportações do Estado cresceu 4%. Essa mudança reflete, basicamente, a retração de 9% das vendas para a Argentina no período.

A relevância do Mercosul para a economia gaúcha, pelo menos no que tange ao comércio internacional, fica ainda mais evidente quando se desagrega a composição das exportações para o bloco. Analisando-se as exportações gaúchas em um período mais recente (2007-14) e por fator agregado, percebe-se que, enquanto a composição da pauta exportadora do Rio Grande do Sul para o mundo (Gráfico 3) apresenta predominância de produtos básicos (média de 52%), a composição das vendas para o Mercosul (Gráfico 4) tem, nos produtos manufaturados, o maior peso (92%), o que revela um padrão bem contrastante.

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O mesmo padrão pode ser visto quando as exportações gaúchas são classificadas por intensidade tecnológica. A pauta exportadora para o Mercosul apresenta maior peso de produtos de média-alta e média-baixa tecnologias, enquanto outros destinos relevantes das vendas externas do Rio Grande do Sul apresentam maior peso de produtos não industriais e de baixa tecnologia. As exportações de produtos de média-alta e média-baixa tecnologias representaram, em 2014, cerca de 80% das vendas para a Argentina e para o Uruguai. Por outro lado, para os países europeus, mais de 70% das exportações correspondiam a produtos de baixa tecnologia ou não industriais, percentual que superou 90% no caso da China. No caso dos Estados Unidos, a participação dos produtos de média-alta e média-baixa tecnologias foi de 42% no mesmo ano. Contudo, a sua participação na pauta exportadora do Estado vem reduzindo-se com bastante intensidade, conforme pode ser visto no Gráfico 2.

Assim, as exportações gaúchas para o Mercosul são majoritariamente compostas por produtos industrializados com algum grau de tecnologia. A importância de tais produtos revela-se na maior elasticidade-renda da demanda e no alto potencial de crescimento em longo prazo. Esses produtos também costumam ser menos sujeitos à deterioração dos termos de troca, menos suscetíveis a substitutos no mercado internacional e mais demandados por mercados mais dinâmicos. Nesse tocante, o Mercosul apresenta-se como uma exceção à estrutura da pauta de exportação do Rio Grande do Sul, bastante concentrada em produtos de baixo valor agregado. Assim, a proximidade da economia gaúcha à dos países-membros do Mercosul — e a própria existência do bloco — contribui para a diversificação e a qualidade das exportações do Estado, compensando as dificuldades competitivas associadas à exportação de manufaturas para outras regiões.

Quanto às exportações gaúchas por atividades da indústria de transformação (Tabela 1), verifica-se a grande representatividade, na composição das vendas para o Mercosul, de produtos químicos, máquinas e equipamentos e veículos automotores. O Mercosul também é um destino importante para os produtos de outras atividades com menor peso nas exportações gaúchas, como derivados de petróleo, têxteis, produtos metalúrgicos, borracha e plástico e equipamentos de informática e eletrônicos. As exceções — atividades importantes para as exportações do Estado nas quais o Mercosul não apresenta participação relevante — são os produtos alimentícios, os produtos do fumo e couros e calçados. Quanto à participação das exportações na produção, nota-se que os setores de químicos e de têxteis destinam grande parte da sua produção para o Mercosul. Nos demais, há maior participação do mercado brasileiro e das exportações para outros países e blocos.

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Conforme visto, os últimos anos foram marcados por dificuldades nas relações comerciais e produtivas do bloco, para as quais contribuíram, sobremaneira, os problemas econômicos enfrentados pela Argentina. Tais dificuldades não decorrem apenas da desaceleração do ritmo de crescimento e da inflação alta naquele país, que inevitavelmente impactam sua demanda por importações. Refletem, sobretudo, a escassez de divisas diante do acesso ainda precário do País aos fluxos de financiamento externo, uma herança da crise enfrentada desde o fim da conversibilidade, no início dos anos 2000.  Mais recentemente, o cenário de escassez de divisas na Argentina agravou-se, devido ao arrefecimento do preço da soja no mercado mundial. Em termos conjunturais, a crise do país vizinho tem afetado o desempenho das exportações gaúchas seja em função da desaceleração da demanda por importações, seja porque tem induzido, mesmo que temporariamente, a adoção de controles na concessão de licenças de importação e o estabelecimento de cotas.

Por outro lado, a Argentina também vem adotando medidas estruturais voltadas à superação da escassez de divisas no longo prazo. Essas envolvem a reedição da política de substituição de importações — já evidente no setor de máquinas agrícolas, haja vista a “[…] passagem do país vizinho de principal cliente externo a concorrente nos mercados sul-americanos e africanos”[2] — e o aumento das parcerias com a China, para o financiamento de projetos de infraestrutura, em troca de uma maior abertura do seu mercado de manufaturados. Como resultado, observa-se o aumento do market share chinês nas importações de manufaturados da Argentina e a maior propensão do Brasil em aderir a acordos bilaterais de comércio, movimentos que têm colocado os principais avanços econômicos da constituição do bloco em xeque. Considerando-se que uma parte relevante da indústria estabelecida no Rio Grande do Sul visa ocupar uma posição estratégica e central para o atendimento simultâneo dos mercados do Brasil e do Mercosul, as dificuldades do bloco resultam, também, na perda desse importante diferencial competitivo para a atração de in

[1]  CASTRO, A. B. Notas para uma estratégia. In: RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Coordenação e Planejamento (SEPLAG). Projeto RS 2010: realizando o futuro. Porto Alegre, 1998. p. 10.

[2] FEIX, R.; DE GASPERI, E. Argentina substitui importações de máquinas agrícolas. Carta de Conjuntura FEE, Porto Alegre, .v. 23, n. 12, p. 1, dez. 2014