Texto sob autoria de: Tarson Núñez

Tarson Núñez

Pesquisador em Ciência Política da FEE. Political Science Researcher at the FEE.

O rompimento de Trump com o Acordo de Paris: impactos políticos nos Estados Unidos

No dia 1.º de junho de 2017, o Presidente Donald Trump anunciou oficialmente a decisão de os Estados Unidos se retirarem unilateralmente do Acordo de Paris. Essa retirada representou a materialização de sua promessa de campanha e teve como base a avaliação negativa sobre o impacto do Acordo para a economia do País. Para Trump, “o Acordo de Paris fragilizaria nossa economia, enfraqueceria nossa soberania, impondo riscos legais inaceitáveis e nos colocaria em desvantagem permanente em relação a outros países do mundo.” Segundo ele, os custos impostos pelo Acordo são muito altos: “bilhões de dólares que deveriam ser investidos aqui na América serão enviados para os mesmos países que tiraram nossas fábricas e nossos empregos.”

A postura do Presidente norte-americano relaciona-se também com uma visão muito particular dos acordos internacionais operados em escala global. Para ele, a lógica de competição dos países, uns contra os outros, é que deve orientar a política internacional dos Estados Unidos, e não a concertação em torno de objetivos comuns. Por isso, Trump considera inaceitável que “[…] sob o acordo, a China vai poder aumentar suas emissões por mais 13 anos, nós não. A Índia faz sua participação depender de receber bilhões de dólares em ajuda dos países desenvolvidos […]. O Acordo de Paris é muito injusto para os Estados Unidos.”

A decisão do Presidente, no entanto, está longe de constituir um consenso no País. Em realidade, a retirada dos Estados Unidos do acordo climático ampliou a controvérsia pública em torno do Governo e gerou um conjunto de reações vindas dos mais variados setores da sociedade norte-americana. Ambientalistas, cientistas, movimentos sociais e mesmo setores empresariais desencadearam intensas mobilizações críticas a Trump e em defesa do cumprimento do Acordo. A controvérsia pública é mais um elemento que afeta a popularidade do Governo, que, em julho de 2017, tinha a aprovação de apenas 36% dos eleitores.

Ao lado de Trump, agrupa-se o poderoso lobby da indústria de combustíveis fósseis, comandado pelas grandes companhias de petróleo e mineração, como a ExxonMobil, a British Petroleum (BP), a Shell, a Chevron e a Koch Industries. Apenas no âmbito do congresso nacional, esse lobby vem investindo, em média, mais de US$ 130 milhões por ano. Esse setor constitui a principal base de apoio a Trump em relação aos temas ambientais, e o âmbito de sua intervenção vai além dessa atividade de lobby legal no âmbito institucional do Congresso. Os irmãos Koch, donos da Koch Industries (um dos maiores grupos privados do País), possuem também uma forte intervenção política no âmbito do Partido Republicano. A intervenção por meio do apoio e financiamento de candidatos alinhados com agenda ultraconservadora dos irmãos vem alterando a correlação de forças internas no partido e teve um impacto decisivo nas eleições do ano passado. Segundo o New York Times, o orçamento dos irmãos Koch para as eleições foi na ordem de US$ 899 milhões.

Do outro lado, as posições negacionistas de Trump em relação à questão climática são combatidas por uma ampla coalizão de movimentos sociais e ambientalistas. Esses movimentos já eram muito ativos antes mesmo da eleição presidencial. Em 2016, o Governo norte-americano suspendeu a construção de um oleoduto em terras indígenas, o Dakota Pipeline. Essa decisão foi uma demonstração concreta da pressão dos movimentos sobre a administração Obama em relação aos temas ambientais. Mais do que isso, no Governo democrata, o enfrentamento da questão climática fazia parte também de uma estratégia de desenvolvimento e recuperação econômica que se baseava justamente em uma transição de matriz energética e de estrutura industrial baseada nas energias renováveis e na inovação tecnológica voltada para a sustentabilidade.

A força dos movimentos sociais ambientalistas tem-se manifestado em grandes mobilizações. No dia 19 de abril, a coalizão People’s Climate Movement realizou a People’s Climate March, que reuniu mais de 200 mil pessoas em Washington D.C., e foi acompanhada, no mesmo dia, por manifestações em outras 370 cidades do País. O People’s Climate Movement é organizado por uma coalizão de 50 entidades e movimentos, que abarca ambientalistas, sindicatos de trabalhadores, pacifistas, movimentos culturais e raciais, religiosos e políticos. O comitê organizador articula-se com uma rede de mais de 500 organizações locais e nacionais distribuídas por todos os Estados Unidos. Essa marcha não foi a primeira, e sim mais um passo de um movimento que já tem uma larga história nos Estados Unidos. Em setembro de 2014, durante a Cúpula do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova Iorque, a coalizão mobilizou 400 mil pessoas em uma marcha na cidade.

As forças políticas por trás das mobilizações têm sua origem nos movimentos antiglobalização, que encontraram no tema das mudanças climáticas um espaço de convergência entre os movimentos ambientalistas e os movimentos de luta por justiça social. Esses movimentos tiveram experiências de lutas que remontam às manifestações antiglobalização de Seattle na virada do século e foram construindo uma agenda conjunta. Um dos marcos desse processo de convergência foi o Fórum Social dos Estados Unidos em 2010, e a primeira expressão mais massiva desse período foi o movimento Occupy Wall Street, que sacudiu o País em 2011. Desse processo surgiram grandes coalizões de entidades voltadas para a luta contra as mudanças climáticas, em um espectro que vai da luta específica contra o aquecimento global, como a 350.org ao escopo mais amplo, como a Climate Justice Alliance, que vincula a luta ambiental com a luta por mudanças sociais mais amplas.

Para além das resistências relacionadas aos movimentos sociais ambientalistas, a decisão de Trump foi capaz de desencadear uma mobilização de outros setores sociais e políticos relevantes. A comunidade científica, a oposição do Partido Democrata e até mesmo setores empresariais relevantes alinham-se hoje à luta contra a mudança da postura dos Estados Unidos em relação às mudanças climáticas. Esses novos atores articulam-se, atualmente, em torno do movimento We Are Still In, lançado no mesmo dia em que Trump formalizou a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris. Esse movimento, cujo manifesto de lançamento conta com 2.200 assinaturas de cientistas, políticos, artistas e empresários, que afirmam representar “mais de 127 milhões de americanos e US$ 6,2 trilhões da economia americana” postula que “na ausência de uma liderança de Washington, estados, cidades, universidades, empresas e investidores, representando uma considerável percentagem da economia americana, vai buscar atingir ambiciosos objetivos climáticos, trabalhando juntos para realizar ações efetivas e assegurar que os Estados Unidos se mantenham como um líder global na redução de emissões”.

Os números são impressionantes. São 228 prefeitos, incluindo os de cidades como Nova Iorque, Chicago, Atlanta, Boston, Houston, São Francisco e Washington, e nove governadores: os dos Estados da Califórnia, do Havaí, de Connecticut, de Nova Iorque, da Carolina do Norte, de Rhode Island, de Oregon, da Virgínia e de Washington. Somam-se ao manifesto 318 reitores e diretores de instituições de ensino superiores, entre elas, as prestigiosas Universidade da Califórnia, Universidade do Estado de Nova Iorque e Columbia, mais de 1.600 empresas de todos os setores, como as gigantes Google, IBM, Adidas, Lego, Lyft, Amazon, Microsoft, Erickson, BASF, Tesla, Nike, além de um grande número de pequenas e médias empresas comprometidas com a agenda da sustentabilidade.

Outra iniciativa importante nesse campo chama-se America’s Pledge, movimento lançado pelo Governador da Califórnia, Jerry Brown, junto com o bilionário Michael Bloomberg. Brown, um político democrata que se situa à esquerda no campo político norte-americano, foi pioneiro das políticas ambientais. Desde o início dos anos 70, em sua primeira gestão de governo, implementou uma política de desenvolvimento que buscava atingir o crescimento econômico tendo a sustentabilidade ambiental como vetor orientador das políticas. Sua articulação com Bloomberg, que além de empresário da mídia é também um expoente do Partido Republicano (foi prefeito de Nova Iorque), demonstra que o apelo da sustentabilidade atravessa o espectro político.

A iniciativa America’s Pledge também tem como objetivo estabelecer um compromisso de governos estaduais, locais e de empresas para o cumprimento das metas do Acordo de Paris, independente da retirada do Governo Federal. Isso é possível dada a natureza federativa do sistema político norte-americano, onde os estados e governos locais têm uma incidência forte na decisão e implementação de políticas públicas. Esse alinhamento de governos e empresas, em sintonia com as demandas dos movimentos sociais, contribui para reduzir o impacto da decisão de Trump em se retirar do acordo.

O conflito em torno do Acordo de Paris é também a expressão de uma cisão dos setores empresariais norte-americanos. De um lado, as forças tradicionais e conservadoras da indústria do petróleo e do carvão e, de outro, um conjunto de setores econômicos com uma destacada participação de empresas de maior intensidade tecnológica, mas acompanhadas de todo um amplo contingente de pequenas e médias empresas de outros setores. A indústria automobilística aparentemente busca manter uma equidistância, sem se alinhar abertamente com o lobby do combustível fóssil, mas também evitando se engajar no movimento em defesa do acordo.

Mais do que uma disputa interssetorial entre ramos econômicos distintos, essa polarização em torno do tema das mudanças climáticas é a expressão de um processo mais amplo e global. As intensas mudanças tecnológicas vividas pelo capitalismo contemporâneo abrem caminho para um conflito estrutural entre os setores industriais remanescentes da segunda revolução industrial, em decadência, e os novos setores dinâmicos, cujos interesses e necessidades não são convergentes com as demandas dos setores tradicionais.

Os resultados dessa disputa em torno do Acordo de Paris ainda são pouco previsíveis. A retirada dos Estados Unidos não abalou o consenso internacional construído até agora, e, aparentemente, pouco vai alterar a situação. Internamente, o Governo Trump, ainda que tenha poder para eliminar os avanços de políticas industriais e energéticas construídas durante a administração Obama, vai seguramente enfrentar resistências políticas e institucionais significativas. Porém, independente de qual das duas orientações, vai prevalecer, um resultado que já se apresenta de uma forma muito concreta: o desgaste político ainda maior da administração Trump. O conflito em torno do Acordo de Paris criou um campo de ação comum para movimentos sociais e ambientalistas, forças políticas progressistas e setores empresariais, que, seguramente, vai ter um impacto significativo no cenário político norte-americano.

As mudanças políticas na China contemporânea e seu impacto global

Num cenário internacional marcado pelo aumento da instabilidade, um momento em que o processo da globalização da economia revela a intensidade de suas contradições, a China segue mantendo uma trajetória de relativa estabilidade. Segundo dados do Banco Mundial, desde a crise de 2008 a China seguiu crescendo em uma média de 8,3% ao ano, enquanto a economia mundial cresceu em média 2,2%. Ainda que o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) da China venha caindo de um patamar próximo dos 10% nos anos imediatamente pós 2008 para cerca de 7%, seu crescimento segue sendo quase três vezes maior do que o mundial (6,9% contra 2,4% em 2015)1. Enquanto no Ocidente alguns analistas chegaram a cunhar o termo “the new normal” (“o novo normal”) para descrever os padrões de crescimento medíocres e incapazes de garantir a coesão social mesmo nos países centrais, a China, mesmo com um ritmo mais lento de crescimento, continua sendo capaz de garantir uma maior estabilidade econômica, social e política.

Essa resiliência da economia chinesa em um contexto mundial de dificuldades não pode ser adequadamente explicada a partir apenas de variáveis macroeconômicas. Especialmente no caso da China, a dimensão política é especialmente decisiva. Nesse sentido, compreender a dinâmica da economia chinesa depende de entender as características específicas do modelo chinês, em especial a relação que se estabelece no País entre a política e a economia, pois muito dessa capacidade de adaptação e crescimento se relaciona com um modelo político de gestão da economia. Trata-se de um modelo que, ao mesmo tempo em que concede um grande espaço para a iniciativa privada, favorece a competição entre as empresas, é receptivo ao investimento estrangeiro e combina essas características com uma forte intervenção estatal e um planejamento estratégico de longo prazo. Nesse sentido, a gestão econômica do País é diretamente orientada pelas prioridades políticas estabelecidas pelo Estado.

O que se assiste neste momento é um movimento deliberado de adaptação ao novo cenário internacional, com ações no sentido de reorientar o modelo de desenvolvimento chinês. Esse processo se iniciou no Plano Quinquenal 2011-15, que já reflete um reposicionamento do País num mundo em crise e se consolida nas resoluções da III Sessão Plenária do XVIII Comitê Central do Partido Comunista da China2. Nesse documento, os dirigentes chineses fazem um balanço do período e projetam uma estratégia para os próximos anos. Tendo em conta as particularidades do modelo chinês, as reflexões ali realizadas e as orientações elaboradas nesse processo fornecem as linhas mestras de compreensão da evolução da China no próximo período.

A compreensão do momento atual da República Popular da China precisa ter como ponto de partida as grandes transformações que se desencadearam com as reformas iniciadas por Deng Hsiao Ping no final dos anos 70 do século passado. Nesse momento, os dirigentes chineses romperam com a política de isolamento e iniciaram um processo de abertura econômica. A desestatização de empresas e a abertura controlada para o capital internacional geraram um setor empresarial dinâmico. A abundância de mão de obra barata garantiu a competitividade internacional dos produtos chineses, e o foco na produção de manufaturas para o mercado mundial tornou a China rapidamente um global player que hoje se constitui na segunda maior economia do mundo.

Do ponto de vista interno, essas políticas tiveram profundos impactos. A superação dos limites do modelo anterior gerou uma dinâmica de crescimento acelerado que transformou de forma muito rápida e intensa a sociedade chinesa. O influxo de capital externo e as novas regras de funcionamento das empresas locais geraram um processo de crescimento econômico contínuo que se estende por mais de trinta anos. Esse crescimento gerou, de um lado, um pujante setor empresarial que protagonizou o processo de transformação da China em uma potência econômica. De outro lado, o crescimento gerou oportunidades de trabalho que permitiram a milhões de trabalhadores do campo migrar para as cidades atrás de novas oportunidades. Nesse processo, gestou-se uma dinâmica que permitiu que a China fosse capaz de tirar 600 milhões de pessoas da pobreza e da miséria. Além disso, esse processo gerou também uma nova classe média de profissionais que constituem hoje um enorme mercado interno3.

Dessa maneira, combinando cautela, flexibilidade e criatividade nas ações de gestão da economia frente às oscilações conjunturais com uma firmeza na construção de uma estratégia de desenvolvimento nacional é que a China vai avançando no cenário turbulento da economia internacional. Cada inovação em termos de política de desenvolvimento é implementada de início de forma experimental em uma localidade ou região, testada e, se aprovada, adotada para o conjunto do País. Além disso, todas essas medidas são formuladas à luz de uma estratégia de longo prazo, estritamente planejada. Com uma atenção cuidadosa para a análise dos cenários que se abrem, associada a uma capacidade de adaptação às mudanças nas correlações de força e nas dinâmicas políticas e econômicas, locais, regionais e mundiais, os dirigentes chineses vêm demonstrando uma capacidade ímpar de enfrentar as turbulências da conjuntura. É essa postura que orienta as mudanças recentes que a China implementa para enfrentar o cenário internacional decorrente da crise financeira de 2008.

O centro dessa estratégia é uma transição de um modelo de crescimento baseado nas exportações para um crescimento baseado no mercado interno chinês. Os milhões de cidadãos que saíram da pobreza e o enorme contingente que constitui a nova classe média passam a ser a base para a sustentabilidade do crescimento. Esse redirecionamento da economia para o mercado interno se combina com um movimento de internacionalização das empresas chinesas e de projeção geopolítica do País. Hoje, para além de exportar mercadorias, a China exporta capitais — de um lado, com a compra de ativos nos países centrais, em especial na Europa, e, de outro, com uma presença crescente de companhias chinesas operando nos mercados da Ásia, África e América Latina.

O movimento de reposicionamento da China opera de maneira articulada no plano internacional e no plano interno. No âmbito internacional, um conjunto de iniciativas econômicas e geopolíticas opera no sentido de fortalecer a posição da China. Medidas para fortalecer a conversibilidade da moeda chinesa, a constituição do Banco do BRICS, as iniciativas estratégicas da nova “Rota da Seda” e todo um conjunto de ações voltadas para aprofundar a articulação da economia chinesa na Ásia Central, em parceria com a Rússia, a Índia, o Paquistão e outros países menores, dão sustentabilidade para a inserção internacional do País.4

Por outro lado, no plano político interno, a nova orientação tem como foco a coesão social. Três elementos são centrais nessa estratégia: (a) a valorização do mercado interno como vetor para o desenvolvimento; (b) o reforço à inovação e ao desenvolvimento tecnológico; e (c) o enfrentamento das contradições internas que interferem no desenvolvimento do País. Nos três casos, a gestão dos processos econômicos está intimamente ligada com as dimensões políticas que se constituem como pano de fundo do projeto de desenvolvimento chinês.

No caso do mercado interno, os dirigentes chineses têm claro que a melhoria das condições sociais e econômicas da população tende a ser o pilar de sustentação do crescimento da economia chinesa. No entanto, a ênfase governamental não se restringe ao aspecto econômico da elevação dos salários reais como instrumento de estímulo ao consumo. Os dirigentes chineses buscam uma melhoria global, que implica também no fortalecimento dos direitos sociais, com a ampliação de mecanismos de previdência, de direitos trabalhistas e de dispositivos institucionais de defesa do consumidor. Seu objetivo é “prestar maior atenção ao trabalho, ao emprego e aos ingressos dos habitantes, à seguridade social e à saúde do povo” (COMITÉ CENTRAL DEL PARTIDO COMUNISTA DE CHINA, p. 34). A compreensão por parte dos dirigentes chineses de que uma melhor distribuição de renda e a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos são importantes para a sustentabilidade do crescimento econômico é central no novo modelo. Nesse sentido, a China anda na contracorrente da tendência mundial que atua no sentido da flexibilização e/ou redução de direitos sociais. Ao contrário, os dirigentes chineses trabalham justamente na direção da formalização institucional de direitos como instrumento de inclusão social e dinamização da economia.

No âmbito tecnológico, a China passou de um período em que sua manufatura se baseava na cópia de produtos estrangeiros para um momento no qual as empresas chinesas passaram a disputar os mercados com base no desenvolvimento tecnológico. O Estado Chinês investe pesadamente na pesquisa, na expansão do ensino universitário, na formação de mão de obra qualificada e de um corpo técnico de cientistas e pesquisadores de ponta e de nível internacional. Assim, as empresas chinesas hoje já concorrem em pé de igualdade com empresas de alta tecnologia mundial. Esse processo resultou de grandes investimentos públicos do Estado chinês em ciência e tecnologia, voltados para a qualificação dos processos produtivos.

Por fim, o terceiro elemento desse reposicionamento chinês demonstra uma grande autoconsciência e capacidade crítica dos dirigentes do País. A percepção de que o processo vivido pelo País desde as reformas trouxe, além do crescimento econômico, problemas que precisam ser enfrentados, está na base de um esforço voltado para fortalecer a coesão social e garantir a estabilidade política. O enfrentamento das desigualdades sociais geradas no processo de desenvolvimento, o combate à corrupção e a luta contra a degradação ambiental provocada pelo crescimento acelerado são as prioridades políticas do momento.

Nesse âmbito, encontra-se a mais importante mudança de paradigmas operada pelos dirigentes chineses: a transição de um modelo que buscava o crescimento a qualquer custo para um modelo voltado para a sustentabilidade ambiental. A China é hoje um dos países do mundo que mais investem em políticas ambientais, incluindo explicitamente em suas diretrizes políticas o objetivo de construir uma “civilização ecológica socialista” (COMITÉ CENTRAL DEL PARTIDO COMUNISTA DE CHINA, p. 4). Todos esses movimentos têm, ao mesmo tempo, uma dimensão estritamente política, mas também uma dimensão econômica. A China busca garantir que o desenvolvimento da economia seja um instrumento para a construção de uma sociedade mais harmônica. Nesse modelo, o crescimento é um instrumento para o desenvolvimento social e não um fim em si. Com isso, a China cria condições para garantir a estabilidade e um crescimento sustentável.

É evidente que esse modelo não é isento de contradições. O crescimento dos conflitos trabalhistas na China reflete a inquietação dos trabalhadores industriais em relação aos seus salários e condições de trabalho. Andreas Bieler e Chun-yi Lee, da Universidade de Norfolk, recentemente analisaram as formas de resistência e de organização dos trabalhadores fabris na China5, mostrando o crescimento das mobilizações operárias no País. Da mesma forma, Ruckus e Bartholl (2014)6 fazem um extenso levantamento do crescimento dos conflitos trabalhistas na China. Ambos os estudos mostram que as relações de trabalho e as desigualdades sociais podem vir a se constituir em um componente de potencial instabilidade na situação política desse país, e é justamente a neutralização desses conflitos que informa os esforços dos dirigentes chineses no sentido de reorientar o modelo econômico do País. Construir uma estratégia que permita combinar crescimento econômico com estabilidade política e competitividade no mercado mundial é o objetivo central da estratégia política do governo chinês neste novo momento da conjuntura mundial.

1WORLD BANK OPEN DATA. 2016. Disponível em: < http://data.worldbank.org/ >. Acesso em: 29 nov. 2016.

2COMITÉ CENTRAL DEL PARTIDO COMUNISTA DE CHINA, 18.,[2013, Beijing]. Documentos de la III Sesión Plenaria del … Beijing: Ediciones en Lenguas Extranjeras, 2013.

3 POMAR, W. China: desfazendo mitos. São Paulo: Publisher Brasil, 2009.

4CINTRA, M. A. A.; SILVA FILHO, E. B., COSTA PINTO, E. (Org.). China em transformação: dimensões econômicas e sociopolíticas. Rio de Janeiro: IPEA, 2015.

5 BIELER, A.; LEE, C. Chinese labour in the global economy: an introduction, globalizations. 2016. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1080/14747731.2016.1207934>. Acesso em: 8 jan. 2017.

6 RUCKUS, R.; BARTHOLL, T. China, avanço do capital e revolta na nova fábrica do mundo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014.

As eleições argentinas e seu significado para o Mercosul

A dinâmica dos processos de integração depende, por definição, do acordo das forças políticas hegemônicas em cada país acerca dos seus objetivos nacionais. No caso do Mercosul, a eleição realizada em 25 de outubro, na Argentina, tem um peso significativo sobre as perspectivas da integração regional. No momento da publicação deste artigo, o resultado das eleições já estará definido. Trata-se, portanto, menos de avaliar o processo eleitoral, mas de analisar os seus impactos sobre o futuro do Mercosul. É evidente que a eleição argentina é apenas um entre outros fatores que incidem sobre a evolução do bloco. Tanto os processos políticos internos nos demais países como a própria dinâmica internacional são também fatores decisivos. No entanto, os resultados na Argentina, segundo país mais importante do bloco, seguramente terão um peso significativo.

Disputaram essa eleição dois projetos principais: o de continuidade do peronismo kirchnerista, materializado na candidatura do Governador da província de Buenos Aires, Daniel Scioli, da Frente para a Vitória (FPV), e o da oposição, de matiz liberal, de Mauricio Macri, Prefeito de Buenos Aires, da Proposta Republicana (PRO). Scioli concorreu com uma plataforma de centro-esquerda, nacionalista, de continuidade do projeto do governo atual, caracterizado por muitos analistas como populista. Já Macri aglutinava um conjunto de forças políticas do centro à direita, de matiz liberal, pró-mercado. O candidato da oposição representava uma aposta de mudança radical na política argentina, voltada para a busca de uma recomposição das relações do País com os investidores externos e a revisão da estratégia desenvolvimentista implementada nos últimos anos.

Scioli, por outro lado, foi nitidamente o candidato da continuidade, ainda que suas relações com o oficialismo tenham sido sempre um tanto conflituosas. O Governador da província de Buenos Aires foi vice-presidente na primeira gestão de Néstor Kirchner (2003-06) e tinha pretensões à presidência. Perdeu espaço para Cristina e, desde então, adotou uma postura de relativo distanciamento, a ponto de estabelecer uma relação cordial com os arqui-inimigos da presidenta, como o grupo midiático Clarín. Ainda que tenha se mantido sempre na FPV, buscava demarcar diferenças com Cristina. No entanto, a convergência entre a recuperação da popularidade do Governo com o fato de ser Scioli o candidato eleitoralmente mais viável fez com que os dois polos dessa complexa relação se reaproximassem, um movimento que foi consolidado com a indicação do kirchnerista Carlos Zanini para vice-presidente na chapa de Scioli.

Em relação à integração, as posições dos dois principais concorrentes apresentavam uma distinção nítida. O candidato da situação incorporava, de forma explícita no seu discurso, uma postura integracionista, com foco na América Latina e nas relações Sul-Sul. Nesse contexto, o Brasil é um aliado estratégico, e a prioridade da Argentina deve ser “[…] fortalecer e ampliar o Mercosul, consolidar a Unasul e dotar de maior dinamismo a Celac”.[1] Já Macri defendia que a Argentina precisava “reinserir-se no mundo” e abandonar o “eixo bolivariano”.[2] Para Rogelio Frigerio, um dos seus principais colaboradores, “[…] é preciso revisar o Mercosul e começar a olhar mais para o Pacífico”.[3] O candidato manifestava explicitamente seu ceticismo em relação ao bloco, afirmando que ele é hoje “[…] quase uma ficção, cheio de travas, vítima de um retrocesso em relação ao que se conquistou na década passada”.[4] Uma leitura superficial do posicionamento dos candidatos aponta, portanto, uma visão simplista: no caso de vitória de Macri, a ruptura com o Mercosul; no caso de vitória de Scioli, um aprofundamento da integração.

No entanto, a realidade quase sempre é mais complexa, especialmente no que tange à relação da Argentina com seus vizinhos. De um lado, é inevitável constatar que o discurso integracionista de Cristina Kirchner em seus dois mandatos nem sempre foi acompanhado de ações concretas. Pelo contrário, a frequente imposição de barreiras em relação às exportações brasileiras e as objeções argentinas que têm bloqueado o acordo Mercosul-União Europeia mostram que, na vida real, atitudes desse tipo por parte da Argentina têm mais atrapalhado do que auxiliado o aprofundamento da integração. As contradições internas da política e da economia argentina têm imposto uma dinâmica na qual os interesses nacionais argentinos tendem a criar obstáculos ao aprofundamento da integração.

A Argentina sofreu duas grandes ondas de desindustrialização: a primeira, durante os anos da ditadura militar (1976-85), e a segunda, durante os anos 90, nos governos de Carlos Menem. Até 1976, as manufaturas correspondiam a mais de dois terços do total das exportações argentinas. A participação da manufatura no Produto Interno Bruto (PIB) do País caiu de 30,9% em 1989 para 17,1% em 1998. Por isso, a defesa da indústria nacional tende a ser uma prioridade do Governo, o que implica a adoção de medidas protecionistas. Além disso, o País vive sérios problemas cambiais desde o default do início dos anos 2000 e dos conflitos com os credores, o que também gera limites estruturais em sua balança comercial. Esses dois fatores fazem com que o Governo tenda a adotar medidas que são contraditórias ao seu discurso pró-integração.

Por outro lado, a proposta de Macri de ruptura com um projeto focado na região e na busca por uma maior abertura em relação ao resto do mundo tampouco implica uma renúncia à integração. Para a Argentina, o Mercosul segue sendo essencial. O bloco gerou um crescimento do comércio 12 vezes maior entre seus sócios desde a sua formação. Em 2013, a Argentina destinou 28% das suas exportações a seus sócios regionais e recebeu deles 28% de suas importações. Esse comércio registrou um alto coeficiente de comércio intraindustrial: mais de 50% do total de exportações de manufaturas da Argentina destinaram-se aos países do bloco.

Além disso, o alto grau de institucionalização do processo implica um custo para sua ruptura. O dirigente da Unión Cívica Radical (UCR), partido que apoia Macri, afirma que “[…] é muito difícil que qualquer governo faça retroceder os processos de integração”, “[…] a correlação de forças parlamentares não vai mudar muito e muitas decisões teriam que passar por ali”. [5] Isso dificulta alterações muito radicais nos termos do acordo. Além disso, o desenho institucional do Mercosul, gestado nos anos 90, não é incompatível com a agenda liberal de Macri.

Portanto, para os liberais, em que pese a busca de maior abertura para o resto do mundo, o Mercosul, no seu desenho atual (como um tratado de livre comércio, que é altamente vantajoso para a economia argentina), também é funcional. O custo de uma ruptura não justificaria o esforço político necessário. Ainda assim, a tendência, no caso de vitória do PRO, seria de um progressivo distanciamento da agenda do bloco, com poucos esforços reais no sentido de avanço da integração. Nesse sentido, no longo prazo, uma

vitória de Macri poderia, de fato, gerar uma dinâmica de enfraquecimento do Mercosul. A busca de saída do “eixo bolivariano” e de uma ampliação das relações com outros blocos e países foi parte importante do discurso da oposição.

Já no caso de vitória de Scioli, o ponto de partida tende a ser o mesmo: o bloco continuar como se encontra hoje — em ritmo lento e em meio a impasses muitas vezes causados pela própria Argentina. Disso pode resultar a continuidade da dinâmica atual. Contudo, se o ponto de partida é o mesmo, esse resultado também pode abrir espaço para uma nova evolução. Com uma vitória da situação, é possível que as declarações de vocação integracionista do peronismo, até agora mais retóricas do que reais, possam ir além do discurso. As ideias de complementação produtiva, de articulação de cadeias de valor em escala regional, assim como as iniciativas de integração na área da infraestrutura, representam uma abordagem potencialmente inovadora.

A continuidade de um governo da FPV pode, nesse caso, abrir espaço para uma nova dinâmica, uma estratégia de aprofundamento do Mercosul. Em seu programa, Scioli defende o equacionamento das disputas comerciais intrabloco, um maior impulso político da integração produtiva, o reposicionamento da estratégia de inserção internacional do bloco, a agregação de valor e conteúdo tecnológico a setores estratégicos e o investimento em projetos de infraestrutura e integração energética.[6] Nesse caso, o resultado eleitoral pode gerar avanços importantes no processo de integração da região.

[1] A União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) são dois projetos integracionistas surgidos a partir de uma articulação de países que aspiram a um maior protagonismo no hemisfério, fora da órbita dos Estados Unidos.

GENTILI, P. Scioli y Macri ante el Mercosur. Página 12, Buenos Aires, 14 jul. 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015.

[2] GENTILI, P. Scioli y Macri ante el Mercosur. Página 12, Buenos Aires, 14 jul. 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015.

[3] PARTIDO de Macri apuesta a revisar el Mercosur. Montevideo Portal, Montevideo, 10 nov. 2014. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015.

[4] MACRI: “Hay que recuperar el Mercosur”. Buenos Aires Ciudad, Buenos Aires, 27 mayo 2013. Disponível em: .  Acesso em: 12 set. 2015.

[5]MOREAU: Macri no fortalecería la relación com el Mercosur. BAE Negocios, Buenos Aires, 18 dez. 2014. Disponível em: < http://www.diariobae.com/notas/48421-moreau-macri-fortaleceria-la-relacion-con-el-mercosur.html>. Acesso em: 14 set. 2015.

[6]DESARROLLO ARGENTINO (DAR). El-Mercosur y los desafios de la regionalización. 2015. Disponível em: . Acesso em: 4 set. 2015.