Texto sob autoria de: Robson Valdez

Robson Valdez

Internacionalista, Pesquisador da FEE. International Affairs Researcher at the FEE.

Migrações Internacionais e seus fluxos de contradições

Deisy Ventura é Professora de Direito Internacional e Livre-Docente do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), Professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e membro da Comissão Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Global e Sustentabilidade. É Doutora em Direito Internacional e Mestre em Direito Comunitário e Europeu pela Universidade de Paris 1, Panthéon-Sorbonne, graduada em Direito e Mestre em Integração Latino-americana pela Universidade Federal de Santa Maria. Coordena, no IRI, o projeto de extensão universitária Cosmópolis sobre políticas migratórias (parceria da USP com a Prefeitura Municipal de São Paulo).

Em entrevista ao Panorama, Deisy Ventura avalia as políticas migratórias de países desenvolvidos e em desenvolvimento e considera cada vez mais tênue a diferença entre migrantes e refugiados. No contexto global, a pesquisadora pondera que as migrações acabam sendo desejadas nas condições que atendam ao mercado de trabalho e não aos direitos dos migrantes. Deisy também critica o papel das potências internacionais na crise dos refugiados sírios e, para o Brasil, aponta a necessidade urgente de legislação adequada e coordenação entre unidades federativas e setores para que as migrações e o refúgio não gerem crises humanitárias ou políticas a cada fluxo pontual.

Panorama: Qual a sua visão geral sobre o tema das migrações internacionais no atual contexto geopolítico global?

O atual ciclo migratório, que teve início nos anos 80, é um processo lento e contínuo, vinculado ao aprofundamento das desigualdades econômicas entre os países e à mudança das formas de produção trazida pela globalização econômica, além de outros fatores pontuais específicos, principalmente os conflitos armados, a perseguição étnica ou religiosa e as catástrofes naturais.

Mireille Delmas-Marty refere-se à globalização como uma “fábrica de migrantes”, no sentido de que os trabalhadores deslocam-se em busca de emprego e vida digna. No entanto, os países desenvolvidos adotam políticas migratórias cada vez mais restritivas. Já os países em desenvolvimento, em geral, não adotam políticas restritivas de ingresso em seus territórios, mas não encorajam a regularização migratória e o acesso a direitos. Assim, o direito de migrar é o parente pobre dos direitos humanos. A Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os direitos dos trabalhadores migrantes e de suas famílias, de 1990, teve a adesão de cerca de 40 Estados, enquanto a maior parte dos tratados internacionais de direitos humanos é subscrita por bem mais de uma centena de Estados. No Brasil, por exemplo, essa convenção tramita há anos no Congresso Nacional, e a lei vigente ainda é o Estatuto do Estrangeiro, herdado da ditadura militar.

O não reconhecimento do direito de migrar parece ser uma grande contradição do ideário da globalização econômica que elenca, entre suas propaladas vantagens, uma inédita liberdade de circulação de pessoas, possibilitada pelo avanço extraordinário do setor de transporte. Contudo, creio que não se trata de uma contradição, mas sim de uma característica: a liberdade de circulação que de fato encontra pleno respaldo na contemporaneidade é a vinculada ao turismo e aos negócios, ou de pessoas com renda suficiente para que o seu livre estabelecimento em outro país não constitua um obstáculo. Assim, para que a globalização funcione, é preciso que esses fluxos dessas pessoas sejam encorajados. Aos Estados é reservada, porém, a prerrogativa de interrompê-los a qualquer momento, por variadas razões (econômicas, de segurança, de saúde pública etc.).

Quanto ao trabalhador migrante, não é que sua migração seja indesejada; ela pode ser desejada, mas nas condições que atendam ao mercado de trabalho, amiúde precárias, e enquanto tal necessidade existir. Quem é livre, na verdade, é o mercado, e não as pessoas. A cada vez que se consagram os direitos dos migrantes — tanto o direito de migrar como, uma vez instalados, o “direito a ter direitos” (a expressão é de Hannah Arendt, em seu extraordinário livro sobre as origens do totalitarismo) —, reduz-se a capacidade dos atores do mercado e dos Estados de desfazer-se dos contingentes indesejados. Isso explica que países com políticas migratórias altamente restritivas mantenham um vasto “mercado negro” em que trabalhadores em situação migratória irregular submetem-se a condições de trabalho igualmente irregulares, não raro desumanas ou análogas à escravidão.

Panorama: Ao se discutirem os fluxos migratórios internacionais (Norte-Norte; Norte-Sul e Sul-Sul), fatores socioeconômicos são comumente elencados para explicar tal fenômeno. No entanto, quando se trata de refugiados, o tema é tomado como uma crise humanitária. Você acredita que a questão migratória deva ser tratada de forma distinta?

A diferença clássica entre refúgio e migração concerne à vontade da pessoa: no caso do refúgio, ela não poderia ficar, enquanto a migração seria o desejo de partir. Enquanto o direito internacional dos refugiados é bastante consolidado na legislação dos Estados, o direito de migrar, como já afirmei, ainda é imberbe na maioria dos Estados. Todavia, essa diferença entre migrante e refugiado é cada vez mais tênue. Embora os conflitos armados correspondam plenamente à ideia da impossibilidade de ficar num território, o colapso da economia de alguns países, por exemplo, também pode facilmente levar uma pessoa a crer que em breve seus meios de subsistência desaparecerão. Considero que nem as migrações nem o refúgio devem ser abordados sob o prisma humanitário. Obviamente uma assistência deve ser prestada aos refugiados em seu deslocamento e em sua chegada ao país de destino, mas o único enfoque que pode responder de forma eficaz ao vertiginoso aumento dos deslocados forçados é a obtenção da paz nas regiões em conflito e a redução das desigualdades entre Estados. Não se pode atacar os efeitos sem atacar as causas — e atualmente, bem ao contrário, os países desenvolvidos têm contribuído sobremaneira tanto ao aprofundamento dos conflitos armados em suas zonas de interesse como ao aprofundamento das desigualdades econômicas.

Panorama: Como você avalia o papel das potências internacionais na crise dos refugiados sírios?

 As potências internacionais têm desempenhado um papel vergonhoso, em flagrante descumprimento de sua própria legislação sobre refúgio. Infelizmente, a apropriação eleitoral do tema das migrações e do refúgio pela extrema direita tem levado governos de todos os matizes a tratar o atual fluxo de refugiados sírios como um problema a ser combatido por meio de controle de fronteira e legislação mais rígidos. Desafortunadamente, superamos atualmente o número de refugiados da Segunda Guerra Mundial, e as imagens que nos chegam da Europa revelam uma tragédia humanitária a céu aberto e em tempo real. Isso, no entanto, não tem levado as potências a rever suas políticas no Oriente Médio e, em especial, sua atitude diante da Síria. Os atentados de novembro em Paris contribuíram tanto para estigmatizar refugiados sírios como para que a França se envolvesse ainda mais nos combates em curso.

Panorama: E em relação à crise dos refugiados do Oriente Médio e da África, que intensificou a já complexa questão dos fluxos migratórios internacionais, qual a sua percepção?

Na minha opinião, os números ajudam muito nessa avaliação, embora muitas das estatísticas disponíveis mereçam críticas, sobretudo por sua incompletude. Não obstante, os números disponíveis permitem compreender que a ampla maioria dos refugiados se encontra nos países em desenvolvimento (segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, ACNUR, seriam 86%), grande parte deles instalada em campos de refugiados na Turquia, no Paquistão e no Líbano (onde se encontram 30% do total de refugiados), assim como Irã, Etiópia, Jordânia e Quênia. Em outras palavras, a Europa não é nem de longe a região mais atingida pelo fluxo contemporâneo de refugiados. Estima-se que hoje existam mais de 60 milhões de deslocados forçados, dos quais mais de 20 milhões deslocaram-se para um país diferente daquele em que residiam (ou seja, são refugiados), provenientes principalmente da Síria, do Afeganistão e da Somália. Já no que se refere às migrações, segundo a Organização das Nações Unidas, o percentual de 3,2% da população mundial mantém-se sem grandes alterações desde 1995, o que hoje representa cerca de 250 milhões de pessoas. Caso a legislação internacional sobre refúgio fosse obedecida, o fluxo atual de migrantes sírios não complicaria a questão migratória porque os países de destino seriam obrigados a integrar essas pessoas em suas sociedades até a cessação dos conflitos armados, eis que o refúgio, em princípio, é um estatuto jurídico transitório.

 Panorama: O Brasil tem sido um polo receptor de fluxos migratórios de refugiados sírios e haitianos. Como você avalia os desafios e a postura do Brasil na gestão desse tema?

Gostaria, antes de mais nada, de atenuar essa afirmação. Em comparação a outros países, o Brasil tem recebido poucos refugiados sírios. Em julho de 2015, segundo o ACNUR, a Turquia, por exemplo, acolhia 1,8 milhão de refugiados sírios, enquanto 1,1 milhão encontrava-se no Líbano. Quanto aos migrantes haitianos, segundo a literatura especializada, existem três grandes polos migratórios: o Caribe, a América do Norte e a Europa. Preocupa-me a falsa ideia, muitas vezes propalada pelos meios de comunicação, de que o Brasil tem sofrido uma “onda” ou uma “invasão” de migrantes e refugiados. Estima-se que, no atual ciclo migratório, o Brasil tenha um número de emigrantes equivalente ou superior ao número de imigrantes que recebe.

Creio que o Brasil fez muitos progressos na gestão desse tema, mas ainda tem muito por avançar. Precisamos com urgência de uma legislação adequada e de uma coordenação entre unidades federativas e igualmente entre setores para que as migrações e o refúgio não gerem crises humanitárias ou políticas a cada fluxo pontual. A chegada dos haitianos no Acre e seu encaminhamento a São Paulo, por exemplo, foi uma verdadeira comédia de erros. A migração é um fenômeno altamente positivo para os países de acolhida, tanto do ponto de vista cultural como do econômico. Já o refúgio é uma obrigação ética de um Estado de Direito que mereça tal nome. Qualquer um de nós pode tornar-se um migrante ou refugiado, por vontade ou por necessidade. É essa consciência que falta tanto ao Estado como à sociedade brasileiros, não raro incapazes de superar os preconceitos que grassam em nosso território para ver nos migrantes negros e refugiados árabes as feições de nossos antepassados — principalmente africanos, asiáticos e europeus, em sua maioria pobres e desgarrados como os migrantes de hoje — que simplesmente construíram o Brasil.

Migrações globais: um constante desafio para a comunidade internacional

O Panorama Internacional FEE traz ao debate, em sua terceira edição, o tema das migrações internacionais. O fenômeno das migrações humanas tem sido recorrente no processo evolutivo das sociedades. Suas dimensões, suas causas e seus efeitos encontram-se na seara da política, da economia, da religião, do histórico das mudanças climáticas, etc. A complexidade da questão é de extrema relevância para o entendimento de outros fenômenos históricos, políticos, econômicos e sociais. Como entender, por exemplo, a formação dos Estados nacionais e de seus sistemas políticos e econômicos ao longo da história sem levar em consideração o papel dos fluxos migratórios no contexto de todos esses processos?

Dada a complexidade inerente à dinâmica própria dos movimentos migratórios, atribuir a esses fenômenos o rótulo de “crise” parece ser redundante na medida em que as migrações se configuram em um desafio cotidiano para os países. Dessa forma, tem-se a impressão de que o potencial de crise está inversamente relacionado à capacidade dos Estados de lidar com o influxo de estrangeiros em territórios nacionais. Por outro lado, tem-se a percepção de que as causas, muitas vezes, se relacionam com o fracasso dos Estados em proverem as condições para a permanência de seus cidadãos em sua terra natal. Assim, levando-se em consideração que as políticas públicas dos Estados estão cada vez mais condicionadas às expectativas positivas dos investidores internacionais em relação à gestão de suas contas públicas nacionais, a adoção de políticas migratórias pelos países tem o desafio, dentre muitos outros, de se enquadrar no escopo econômico há muito tempo designado à atração dos fluxos internacionais de capitais.

Nos dois extremos dessa problemática, país natal e país receptor, evidenciam-se subprodutos incontestáveis do sistema capitalista no qual a economia do planeta está inserida: os perdedores e os ganhadores. Nesse sentido, tem-se observado que a divisão internacional do trabalho, que há muito tempo cristalizou o papel de cada país dentro do sistema econômico global, vem sendo paulatinamente reconfigurada pela pulverização dos processos produtivos em escala mundial, naquilo que se convencionou chamar de cadeias globais de valor.

Os países centrais que já alcançaram elevados níveis de desenvolvimento econômico e social para suas populações, muitas vezes à custa da pilhagem e do colonialismo de povos da periferia global (Ásia, América Latina e África), buscam manter o bem-estar social “conquistado”. Já os países periféricos, detentores mundiais de matérias-primas estratégicas, seguem, inercialmente a passos lentos, e em condições totalmente distintas, o caminho traçado pelos campeões do capitalismo global com o intuito de também assegurar algum bem-estar econômico e social aos seus nacionais. Dessa forma, essa interdependência econômica acentua os graus de dependência e vulnerabilidade entre os países e consolida canais de transmissão que viabilizam, por exemplo, a construção de pontes migratórias Norte-Norte, Sul-Sul e Sul-Norte.

Ao tratar da temática migratória no contexto internacional, também é comum atribuir às guerras ou à emergência de conflitos étnico-religiosos um peso crucial para entender a intensidade e o direcionamento dos fluxos migratórios. Em outros casos, eventos climáticos extremos (terremotos, tsunamis, desertificação de áreas agricultáveis, secas prolongadas, etc.) são apontados como força motriz de grandes migrações. No entanto, essa temática demanda uma análise política que insira essas variáveis em uma abordagem sistêmica que dê conta das complexas disputas interestatais por recursos de poder no âmbito do sistema internacional. Adicionalmente, e de forma complementar, essa análise deve levar em consideração, também, as contradições do sistema capitalista que se potencializam à medida que o processo de globalização se intensifica.

No último ano, o desafio da União Europeia frente à explosão do número de imigrantes internacionais que chegaram às fronteiras de seus países-membros reacendeu a discussão sobre os fluxos migratórios internacionais. Em 2015, muitos dos imigrantes que fugiam dos conflitos na Síria e no continente africano buscaram asilo nos países europeus. O envolvimento direto dos Estados Unidos e das potências europeias em grande parte desses conflitos os colocou no centro do debate como atores-chave no equacionamento da crise dos refugiados.

No Brasil, essa discussão já vinha sendo feita pelas autoridades federais desde 2010, quando o País passou a receber o influxo de imigrantes haitianos que deixaram seu país após a ocorrência de um grande terremoto naquele mesmo ano. Com a eclosão da Guerra Civil na Síria em 2011, o Brasil também passou a receber refugiados sírios em território nacional.

Tanto no Brasil quanto na Europa, a discussão sobre os refugiados provocou debates sobre a responsabilidade dos países de acolherem ou não essas pessoas. No cerne das argumentações, estão os impactos do influxo migratório nos mercados de trabalho dos países receptores; a pressão desse influxo migratório sobre o sistema de bem-estar social dos Estados acolhedores; além de questões xenófobas, como o impacto cultural e religioso do estrangeiro sobre as sociedades locais.

No Rio Grande do Sul, estado da Federação com grande influência estrangeira na sua formação cultural, econômica e social (portugueses, escravos africanos, italianos e alemães), a questão migratória ganhou relevância pelo fato de o Estado ter-se tornado polo de atração de mão de obra haitiana que entra no Brasil pelo Estado do Acre. Além dos haitianos, é comum encontrar imigrantes africanos que buscam oportunidades de emprego e renda no Rio Grande do Sul.

Assim, considerando-se a complexidade e a contemporaneidade dessa temática nos âmbitos internacional, nacional e local, o Panorama Internacional FEE traz esse olhar sistêmico sobre o atual cenário das migrações internacionais e suas interações globais nos campos da economia e da geopolítica, assim como sobre o papel do Brasil diante desse desafio. Mais do que encontrar respostas e apontar soluções para essa questão, esta edição visa à problematização desse tópico, que pode ser analisado a partir das mais variadas perspectivas.

O pesquisador e economista Jaime Carrion Fialkow faz, no primeiro texto da publicação, uma leitura preliminar sobre os principais processos pertinentes à migração internacional nos dias atuais. Com base nos dados de agências das Nações Unidas que lidam com os fluxos migratórios internacionais, seu texto elenca as principais variáveis em cada um dos fluxos migratórios sugeridos em sua pesquisa. No segundo artigo, os pesquisadores em Relações Internacionais Ricardo Fagundes Leães e Bruno Mariotto Jubran analisam a variável central da atual crise dos refugiados na Europa: a guerra civil na Síria. Fugindo de abordagens dicotômicas que buscam identificar as forças do bem e do mal, os pesquisadores lançam luz sobre a complexa teia de conflitos de interesses geopolíticos que envolvem uma gama variada de atores internacionais na região do Oriente Médio. Já no terceiro trabalho desta edição, a economista e pesquisadora Iracema Keila Castelo Branco trata essa temática sob uma perspectiva nacional, investigando o impacto do recente fluxo migratório internacional dos últimos cinco anos sobre o mercado de trabalho no Brasil e no Rio Grande do Sul. No quarto e último artigo, o pesquisador e historiador Álvaro Antônio Klafke analisa, em três momentos históricos distintos, a percepção da imprensa sobre as discussões que envolvem os influxos migratórios no Rio Grande do Sul.

Por fim, o Panorama Internacional FEE entrevista a Professora Doutora do Curso de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo Deisy Ventura. A partir de seu vasto currículo de pesquisas em migrações humanas internacionais, Deisy Ventura expõe suas impressões sobre essa relevante temática internacional, analisando o posicionamento dos principais atores internacionais, assim como a postura do Brasil frente a esse desafio.

Mercosul: muito além da integração econômica

Em 2016, o Mercado Comum do Sul (Mercosul) celebra 25 anos de existência, em meio a incertezas e críticas no Brasil e, inclusive, especulações sobre sua extinção. Como razões para essa visão pessimista, têm sido apontadas, em primeiro lugar, a ineficácia do bloco em promover a aproximação econômica entre os países; em segundo, a persistência de prejuízos para o Brasil; e, por fim, as dificuldades impostas pela sua estrutura na condução de negociações com outros países ou blocos.

Ainda que as críticas ao Mercosul sejam pertinentes, vale ressaltar que a integração deve ser analisada de forma mais ampla, considerando não apenas as questões comerciais. Apesar de altamente relevante, o comércio não é o único objeto da integração regional, a qual envolve, também, segurança, cultura e educação. Ademais, o bloco tem avançado a velocidades diferentes em cada setor, de forma semelhante a outros mecanismos de integração regional, inclusive a União Europeia (UE).

Em relação à primeira crítica, afirma-se que o bloco não tem sido exitoso em promover a integração entre as economias dos países-membros e salienta-se a recente diminuição proporcional de comércio entre eles. A principal razão parece ser a postura protecionista do Governo argentino. De fato, tanto para o caso do Brasil como para o do Rio Grande do Sul, os países do Mercosul reduziram significativamente sua participação nos últimos anos, devido ao excepcional desempenho das exportações para a China.

No entanto, é bastante forçoso afirmar que o Mercosul foi ineficaz ou tem perdido sua relevância, especialmente quando se abre a série histórica dos dados. Embora compartilhem uma fronteira de mais de 1.200km, Brasil e Argentina, até a década de 90, careciam de cooperação econômica relevante e duradoura. Durante décadas, os principais parceiros comerciais do Brasil foram os Estados Unidos e a Alemanha Ocidental. Ademais, a dinâmica das relações bilaterais sempre foi marcada por iniciativas de cooperação efêmeras e pela persistência da lógica de rivalidade entre brasileiros e argentinos.

Com base nos dados do gráfico, observa-se que o comércio bilateral entre Brasil e Argentina atingiu níveis históricos após a criação do Mercosul, em 1991, demostrando os efeitos comerciais da integração regional. Além disso, pode-se notar um momento de alta comercial no início dos anos 60, que foi subsequentemente descontinuado. A criação da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), iniciativa tripartite entre Brasil, Argentina e México, explica esse movimento. No entanto, com o desinteresse dos Governos na manutenção do projeto, o comércio regional retrocedeu a padrões anteriores, o que serve de alerta para quem visa à dissolução do Mercosul.

Participação da Argentina no comércio exterior brasileiro — 1953-2013

O Mercosul foi responsável pela consolidação dos esforços de aproximação multisetorial do Brasil com a Argentina, iniciados ainda no final da ditadura civil-militar brasileira. De fato, houve momentos de maior otimismo, como no início da década de 90, quando da formalização do bloco, e outras fases mais críticas, como na desvalorização do real, em 1999, que desapontou profundamente os demais membros e, pouco depois, quando a Argentina passou por uma grave crise econômica e social. A recente estagnação em termos de valor dos fluxos comerciais certamente causa apreensões, mas cabe ressaltar que a imposição de cotas de importações aos produtos brasileiros por parte do Governo argentino é uma medida de defesa comercial em acordo com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), no caso de surto de importações que comprometam determinado setor da economia ou seu balanço de pagamentos, se comprovados os nexos causais.

Para além do comércio, foram estabelecidos, de forma gradual, canais institucionais para a implementação de projetos de cooperação nas áreas de política, educação, cultura, segurança, entre outras. Além disso, a instituição da cláusula democrática, prevista no Protocolo de Ushuaia (1998), e, mais recentemente, a criação do Parlamento do Mercosul denotam o comprometimento político dos Governos com os valores e as instituições democráticas, além de aproximar os cidadãos de forma mais efetiva. Apesar de o prazo para a eleição de parlamentares via voto direto ter sido prorrogado para 2020, o Paraguai já realizou duas eleições (2008 e 2012).

Em relação ao tema dos custos, os “mercopessimistas” asseveram que o Brasil é o mais prejudicado no bloco. Entretanto, cabe observar que, em outros casos de formação de coalizões regionais, os Estados mais poderosos (seja em termos econômicos, seja em termos políticos ou militares) são os proponentes de iniciativas de integração regional, como no caso do condomínio franco-alemão na União Europeia, da Rússia na União Eurasiana, dos Estados Unidos no Acordo Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA) e da China nas negociações da Parceria Econômica Abrangente do Leste Asiático. Em todos esses casos, os Estados maiores concedem algumas vantagens mais tangíveis ou imediatas aos parceiros menores, de forma a ampliar a atratividade da participação no bloco em questão. Por exemplo, na Comunidade Europeia e no Mercosul, a sede dos mecanismos de integração é fora do território do Estado-motor: Bruxelas (Bélgica) e Montevidéu (Uruguai), respectivamente, cumprem essa função.

A concessão de vantagens ou concessões pontuais aos países menores em um processo de integração econômica é geralmente explicada pelo fato de as economias desses países, em muitos casos, carecerem do grau de competitividade das empresas dos países maiores, as quais normalmente operam em uma escala bem maior e conseguem explorar oportunidades mais rapidamente do que suas congêneres. Outro argumento bastante explorado por políticos e negociadores uruguaios e paraguaios é que seus países são mais suscetíveis a sofrer desvio de comércio com a imposição de tarifa externa comum. Segundo essa visão, os países menores tendem a ser mais prejudicados, por terem economias mais dependentes do comércio exterior.

Justamente por entrarem como sócios menores, os Estados mais frágeis sob o ponto de vista econômico, populacional ou territorial precisam contar com benefícios tangíveis e imediatos para fazer valer sua participação no projeto de integração regional. No caso do Mercosul, observa-se que os principais ganhos políticos só poderiam ser obtidos pelo Brasil, o único que pode se alçar à condição de player global. Se exitoso o processo de integração, as empresas brasileiras seriam as mais favorecidas, o Brasil seria uma potência global e seria seu o assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Logo, é de se esperar que o principal interessado no Mercosul tenha disposição para arcar com os seus custos, com vistas a suavizar as assimetrias regionais e promover o crescimento econômico intrabloco. Não é razoável imaginar que uruguaios, paraguaios, venezuelanos e argentinos queiram pertencer a um grupo vertebrado pelo Brasil sem obter vantagens materiais em contrapartida.

Um terceiro conjunto de críticas sustenta que o Mercosul tem dificultado a negociação de acordos comerciais com outros países ou blocos, em virtude da suposta baixa disposição de alguns membros em adensar as relações com outros países. Nessa perspectiva, o Brasil deveria abandonar seus compromissos regionais e conduzir sozinho as negociações com a União Europeia e com os Estados Unidos. Contudo, nesse caso, apresenta-se um dilema complexo, ainda que comum, nas relações internacionais. De fato, é possível concordar que um eventual acordo entre o Brasil e a União Europeia seja mais abrangente em termos de conteúdo, mas é também provável que seus termos sejam mais desiguais do que os de um acordo entre blocos. O poder de barganha tende a ser maior quando os seus atores preferem agir em conjunto a negociar separadamente, mas é também provável que o acordo final apresente um escopo temático mais limitado.

Dessa forma, os 25 anos do Mercosul devem ser avaliados concomitantemente sob a ótica política e econômica, observando suas sinergias. Analisar isoladamente suas dimensões é encará-lo como uma estratégia individualizada de cada membro em um jogo de soma zero. Ainda que a dimensão econômica do Mercosul acabe consolidando-se como termômetro do sucesso do bloco devido à facilidade de se mensurarem volumes e valores de seus fluxos comerciais, é imperativo ressaltar que todo acordo econômico é precedido de algum tipo de entendimento político, para mitigar as divergências inerentes ao processo de integração. Por esse motivo, a dimensão política da integração no Mercosul assume um papel relevante. À medida que suas instituições se consolidam como fóruns de integração e solução de conflitos nas mais variadas áreas de seus respectivos governos, criam-se oportunidades tanto para reduzir os custos como para aumentar os ganhos da integração entre seus países-membros.

Os desafios do RS na era dos emergentes

Luciano D’Andrea

Gerente de Relações Internacionais e Comércio Exterior da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs). Bacharel em Administração de Empresas pela Virginia Commonwealth University (VA), nos EUA, e Mestre em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Em entrevista para o Panorama, Luciano D’Andrea analisa a dinâmica do cenário internacional, a inserção brasileira nesse mercado e as ações dos países dos BRICS, grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. O entrevistado desta edição também opina sobre a pauta exportadora gaúcha para mercados emergentes e sobre a atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Panorama: As últimas duas décadas têm sido marcadas por um intenso dinamismo geopolítico e econômico em âmbito global. Nesse sentido, vários são os centros de pesquisa, públicos e privados, que se dedicam a uma análise sistêmica do cenário internacional. Na esfera local, qual a importância dessas análises para o processo decisório de empresas e instituições governamentais?

As pesquisas e análises de dados político-econômicos sobre o cenário internacional são de fundamental importância para qualquer ator que deseja desenvolver uma estratégia global e/ou alguma forma de relacionamento com diferentes blocos econômicos ou países. Da mesma forma, estudos e a organização sistêmica de informações são considerados essenciais para um determinado país que queira, internamente, qualificar e preparar seus setores industrial e comercial para um cenário cada vez mais competitivo e globalizado. Uma das bases do processo decisório, tanto de entidades como de empresas, é o conhecimento, porém nem sempre a estrutura organizacional dos atores públicos ou privados permite que os mesmos realizem a coleta e a análise de dados estratégicos. Portanto, a diversificação de órgãos produtores de conhecimento e, principalmente, o compartilhamento dessa inteligência, de forma acessível e transparente, são indispensáveis para o desenvolvimento nacional ou regional, seja de forma coletiva ou individual. A partir do entendimento da conjuntura internacional, é possível definir objetivos, metas e áreas de atuação, bem como fundamentar o planejamento estratégico e a execução destes de forma mais segura e assertiva.

Panorama: Além do protagonismo internacional de atores tradicionais como Estados Unidos, Europa e Japão, países como Brasil, China, Rússia e Índia vêm alcançando projeção internacional em vários temas da agenda internacional. Como você avalia a recente inserção internacional do Brasil? Em que medida essa inserção pode se traduzir em oportunidades para o Rio Grande do Sul?

Desde meados dos anos 90, o Brasil vem expandindo suas relações bilaterais e multilaterais, acompanhando um processo global de abertura internacional e adensamento das relações externas impulsionado também pelo fim da Guerra Fria. Nos últimos 15 anos, houve uma mudança clara nos paradigmas da política externa brasileira, e o País vem promovendo esforços políticos no sentido de consolidar parcerias no âmbito da América Latina, Ásia e junto ao continente africano. Essa nova abordagem brasileira em relação ao sistema internacional aposta na estratégia do multilateralismo e na diversificação de mercados não tradicionais e promissores. De modo geral, a atual política externa trouxe consigo alguns benefícios, os quais se materializaram em exportações e importações de bens e serviços com esses mercados, além de novos projetos de investimentos. Sem dúvida, a China foi o país com o maior destaque, tornando-se o principal parceiro comercial do Brasil e do RS devido ao extraordinário crescimento desse mercado apresentado nas últimas décadas e pela fenomenal demanda desse país oriental por produtos de natureza comoditizada, como minério de ferro, soja, carnes, entre outros, produtos estes de grande oferta do nosso país. Por outro lado, as importações da China trouxeram grande preocupação à indústria nacional através da enxurrada de produtos chineses no mercado brasileiro, facilitados pela excessiva sobrevalorização do real na última década. O resumo desse novo cenário conclui que a China contribuiu fortemente para os saldos positivos da balança comercial do Brasil nos últimos anos, porém, por outro lado, ajudou a causar um déficit de mais de 100 bilhões na balança de produtos manufaturados no mesmo período, através das suas exportações de máquinas e equipamentos e bens de consumo intermediário e final. Nesse contexto paradoxal de ameaças e oportunidades, o Rio Grande do Sul foi um dos estados mais favorecidos pelo lado das vendas externas àquele país, pois se posicionou com a oferta de produtos cuja demanda chinesa é alta, especialmente exportações de soja, carnes e tabaco. Essas exportações também foram beneficiadas pelo alto preço dessas commodities no mercado internacional. Já o continente africano se tornou a primeira origem das importações gaúchas, devido às compras da Petrobrás (Refap) de combustível e derivados, especialmente oriundas da Nigéria, da Argélia, e de Angola. Em 2014, as importações da África representaram 23% do total comprado pelo Estado, somando US$ 3,52 bilhões. Portanto, a aproximação junto aos BRICS foi positiva, devido ao aproveitamento do maior crescimento relativo dessas economias, especialmente no período entre 2000 e 2008. Entretanto, ao passo que houve avanços junto às economias dos BRICS, percebe-se um relativo retrocesso e distanciamento do Brasil das economias desenvolvidas, como EUA e União Europeia, cujos mercados constituem a espinha dorsal da economia mundial, representando quase metade do PIB global. Neste exato momento, nota-se um esforço de recuperação dessas relações com esses mercados através de acordos bilaterais e de livre comércio e outras iniciativas apontadas no recente Plano Nacional de Exportações lançado pelo Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) no último dia 24 de junho.

Panorama: Em que pesem as contradições nas relações entre os membros do BRICS, o grupo vem se consolidando como um contraponto ao atual sistema internacional estabelecido no Pós Segunda Guerra Mundial (Organização das Nações Unidas, Organização Mundial do Comércio, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional). De que forma você avalia o dinamismo desse processo que ainda está em curso?

Uma ação mais coesa dos BRICS depende de questões centrais em termos políticos, econômicos e de segurança. A posição dos países participantes do grupo em relação a esses assuntos é bastante divergente, graças aos interesses nacionais que seguem caminhos opostos, dificultando a consolidação política do grupo. No entanto, o aumento das trocas comerciais entre esses países tem ganhado cada vez mais representatividade no cenário internacional, podendo ser um vetor facilitador da cooperação. Ademais, a criação do Banco de Desenvolvimento dos BRICS, de certa forma, vai ao encontro da estratégia desses países de diminuir a dependência de fundos e bancos internacionais coordenados pelos países desenvolvidos. Por mais que não haja uma agenda estabelecida dos BRICS como um bloco — ainda que as agendas bilaterais venham se fortalecendo — o fato de países com tamanha representatividade na economia mundial estarem reunidos e dispostos a debater pautas conjuntas é um importante passo em direção à consolidação e ao fortalecimento dos mesmos através de ações efetivas de incremento econômico.

Panorama: Em 2014, os demais países dos BRICS representaram algo em torno de 27% do total das exportações gaúchas. Em sua opinião, como os exportadores gaúchos e o Governo do Estado podem defender seus interesses no âmbito das negociações dos BRICS?

Voltando à questão da importância de análises do cenário internacional, é necessário que o Governo e os empresários busquem entender as potencialidades que o mercado dos BRICS tem a oferecer ao Estado. Estudos de inteligência comercial e estratégica podem embasar a abordagem das empresas em relação aos BRICS. E o Governo, tendo entendimento da realidade regional e do bloco, pode montar uma abordagem para a defesa de interesses em consonância com as potencialidades do setor privado, ou seja, a agricultura, indústria e serviços.

Panorama: A soja é o principal produto da pauta exportadora do Rio Grande do Sul, sendo China, Coreia do Sul, Vietnã, Índia e Tailândia os principais compradores da commodity gaúcha. Além da soja, tabaco, carnes (aves), arroz, couro e máquinas agrícolas têm como destino países emergentes da África, Ásia e América Latina. Como você compreende a dinâmica econômica dessas regiões do planeta sobre o setor exportador do RS? O que o setor privado e o governo local podem fazer para aumentar o volume das exportações gaúchas para esses destinos?

De fato, o Rio Grande do Sul atende de forma majoritária esses mercados emergentes no âmbito Sul-Sul com sua pauta tradicional de produtos pertencentes ao complexo soja, carnes e tabaco. Entretanto não há dúvida que existem inúmeras oportunidades de exportações para outros produtos e segmentos gaúchos a esses países. Para um maior dinamismo na pauta exportadora, é preciso diversificar a oferta através da ampliação do conhecimento frente às rápidas transformações que vêm ocorrendo nos hábitos de consumo e das necessidades de importação desses mercados. A China, por exemplo, após anos demandando produtos básicos como alimentos, minério de ferro e petróleo, passa agora não só a requerer quantidades maiores de bens de consumo como também necessita abastecer, com produtos de alto valor agregado, consumidores cada vez mais exigentes e com um poder aquisitivo maior. Nesse sentido, para aproveitar esse movimento de crescimento do mercado consumidor não só da China como também de países em franca ascensão naquela região, como Vietnã, Malásia e Tailândia, é imprescindível que o setor exportador gaúcho seja competitivo e conheça o mercado e as tendências dos seus respectivos segmentos. A criação de zonas francas comerciais na China, por exemplo, demonstra a implementação de reformas econômicas e financeiras recentes com o objetivo de incentivar o consumo interno de produtos importados. Esse caso chinês abre novas possibilidades para produtos de maior valor agregado brasileiro, como alimentos premium, por exemplo. No caso da América Latina, mercado estratégico para as exportações de produtos manufaturados brasileiros e gaúchos, a região precisa se revitalizar e aprimorar os mecanismos de pagamentos e criar meios efetivos de integração das cadeias produtivas de valor, focando a especialização produtiva. Não obstante, essa região requer investimentos em infraestrutura e logística para reduzir os custos operacionais do comércio exterior a fim de se equiparar ao grau de competitividade com terceiros mercados concorrentes, especialmente o asiático. As instabilidades econômicas e políticas e as recorrentes crises também são gargalos a serem enfrentados por empresas e governos.

Panorama: No século XXI, a África tem-se destacado por sua elevada taxa de crescimento econômico, que contrasta com o baixo dinamismo do continente nas décadas anteriores. Como muitos desses países vêm se desenvolvendo à base da produção agrícola, quais são os meios para o RS aproveitar o ensejo e expandir o comércio de máquinas agrícolas na África?

A exportação de máquinas agrícolas para a África representa um nicho interessante para as empresas gaúchas. Segundo dados do MDIC de 2015, 42% do total exportado pelo Brasil para o continente africano é de produtos manufaturados, e o nível de intensidade tecnológica aplicada a esses produtos apresenta crescimento nos últimos três anos. O Rio Grande do Sul pode-se beneficiar das peculiaridades do desenvolvimento agrícola africano, trabalhando na adaptação e no desenvolvimento de equipamentos que possam atender com maior otimização às necessidades do mercado. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2014, a agricultura africana pode e deve ser impulsionada através de soluções integradas que envolvam a indústria, o meio rural e o setor de serviços. Outra frente muito importante com vistas à expansão das exportações desse setor envolve linhas de crédito de exportação oferecidas pelo Governo por meio do Banco do Brasil, voltadas principalmente para países africanos com o financiamento de máquinas e equipamentos agrícolas produzidos no Brasil. Logo, a larga experiência do governo e do empresariado gaúcho no setor agrícola, aliada à concessão de linhas de crédito, pode servir como diferencial competitivo na atuação frente o mercado africano.

Panorama: Em todos os países que foram exitosos ao fomentar suas exportações, como Estados Unidos, Japão, Alemanha e China, observou-se a presença de um banco especializado para internacionalizar as empresas nacionais, de forma a dinamizar seus investimentos e suas vendas. Em que medida o BNDES contribui para a integração das empresas brasileiras no mercado mundial?

A presença de um banco de fomento ao comércio exterior é um mecanismo fundamental para alavancar as exportações e o investimento brasileiro em outros países. A atuação do BNDES no comércio internacional engloba tanto a concessão de crédito para a produção de bens e serviços destinados à exportação como também a comercialização dos produtos e serviços nacionais no exterior, oferecendo prazos, juros e condições de pagamento de acordo com o tamanho da empresa. O BNDES também atua no apoio a projetos no exterior, financiando não só a aquisição de bens de capital como também o capital de giro das empresas. Essas medidas facilitam a abertura de mercados, a inserção de empresas brasileiras nas cadeias globais de valor e a ampliação do fluxo de comércio brasileiro. Cabe ressaltar que é sempre importante estar atualizado com as demais políticas financeiras ofertadas pelos bancos de promoção das exportações de outros países, como EUA e Alemanha, por exemplo, no sentido de ajustar a gestão de recursos de fomento nacional à altura da concorrência, aliada às necessidades reais das empresas e aos seus respectivos perfis exportadores.

A relevância dos BRICS para o Rio Grande do Sul

Entender e acompanhar sistematicamente a dinâmica das relações entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (BRICS), assim como a inserção internacional desses países, é importante não somente para a Presidência da República e para o Ministério das Relações Exteriores (MRE) do Brasil. Dadas as relações entre esses mercados e a pauta exportadora do Rio Grande do Sul, compreender os BRICS deve ser, também, tarefa do Governo do Estado do Rio Grande do Sul.

O acrônimo BRIC foi originalmente cunhado, em 2001, pelo economista inglês Jim O’Neill do Banco Goldman Sachs no estudo Building Better Global Economics, em que apontava a influência das economias emergentes de Brasil, Rússia, Índia e China sobre o futuro do conjunto da economia global. Na medida em que se confirmavam as projeções sobre os BRICS, outro estudo da mesma instituição financeira, BRIC’s and Beyond, passou a fazer prognósticos econômicos para um grupo de 11 países, que ficou conhecido como o Next Eleven (Bangladesh, Coreia do Sul, Egito, Filipinas, Indonésia, Irã, México, Nigéria, Paquistão, Turquia e Vietnã).

Ainda que esse enfoque econômico sobre os BRICS siga repercutindo entre os analistas do mercado financeiro internacional, há de se destacar que essa é uma abordagem do mercado em relação a esse grupo de países.

Assim, acredita-se que para melhor compreender o papel e a influência da ação conjunta desses países na cena internacional, de forma mais abrangente, é aconselhável analisar esse grupo de geometria variável a partir do ponto de vista de seus próprios membros.

No campo político e diplomático, em que pesem suas divergências e contradições, os BRICS capitalizaram a expectativa internacional em torno de suas economias para dar início a projetos de articulação política e econômica, assim como a programas de cooperação em áreas sensíveis a esses países: educação, desenvolvimento econômico, energia, segurança alimentar, meio-ambiente, defesa, etc.

A partir da perspectiva da Economia Política Internacional, encontram-se, então, razões que explicam, por exemplo, a participação da África do Sul no bloco de economias emergentes. Embora não tenha o peso econômico dos demais parceiros, a liderança e influência da África do Sul no continente africano e seu peso regional nos diversos fóruns mundiais dariam ao então BRIC legitimidade às demandas e propostas do bloco nos mais variados temas da agenda internacional.

Nesse sentido, tornam-se mais evidentes as razões que levaram os demais parceiros a incluir o país africano ao grupo durante a terceira reunião de cúpula do bloco em 2011. A adição do “S” ao acrônimo BRIC mostra, então, que há uma clara distinção entre a conotação dada por Jim O’Neil no início dos anos 2000 e o sentido que os membros dos BRICS dão ao bloco.

Desde sua primeira reunião de ministros das Relações Exteriores, na Rússia, em 2008, seis Cúpulas Anuais de Chefes de Estado já ocorreram. Em 2014, os BRICS reuniram-se em Fortaleza, no Brasil. Neste ano, o sétimo encontro deu-se no dia 9 de julho em Ufá, na Rússia.

O fato concreto sobre os BRICS diz respeito ao alcance de sua inserção econômica e política nos mais variados temas da agenda internacional. O peso geopolítico de cada um desses países em suas respectivas áreas de influência ao redor do globo, assim como suas ações conjuntas, coloca os BRICS como contraponto ao atual sistema de articulação internacional estabelecido no pós Segunda Guerra Mundial — Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Organização das Nações Unidas (ONU).

No ano passado, os seis países anunciaram a criação do Banco de Fomento do BRICS com capital inicial de US$ 50 bilhões, que poderá chegar a US$ 100 bilhões. O Banco do BRICS prevê a criação de linhas de crédito para financiamento de projetos de infraestrutura, bem como um fundo para socorrer os países-membros em caso de turbulências financeiras internacionais. Assim, na medida que os BRICS se consolidam como uma realidade na qual o Brasil é um dos protagonistas, cabe à sociedade como um todo, especialmente a gaúcha, compreender toda essa dinâmica.

A característica marcante dos BRICS para o Rio Grande do Sul é o fato de possuírem relevantes mercados internos para os produtos da pauta exportadora gaúcha. Nesse sentido, o Estado do Rio Grande do Sul precisa antecipar-se aos fatos e planejar a melhor forma de incremento da relação das empresas gaúchas com esses mercados. Ainda que parte considerável da pauta exportadora seja de produtos primários, os esforços de cooperação entre os BRICS podem gerar oportunidades aos exportadores de produtos com maior valor agregado que já constam na pauta de exportação do Estado, como calçados, máquinas agrícolas e ferramentas.

As exportações gaúchas responderam por 18,2% (aprox. US$ 18,7 bilhões) do Produto Interno Bruto (PIB) do Rio Grande do Sul em 2014. Desse total, os parceiros dos BRICS representaram 27,23% do mercado para as empresas do Estado (aprox. US$ 5,1 bilhões). A taxa de crescimento médio das exportações para esses países, nos últimos 14 anos, foi de 20,2%, conforme a tabela.

Os BRICS como mercado para as exportações do Rio Grande do Sul (RS) — 2001-14

PAÍSES DOS BRICS MÉDIA ANUAL DA TAXA DE CRESCIMENTO DAS EXPORTAÇÕES2001-14 (%) 2001 2014
Valor(US$ milhões) Composição das Exportações para os BRICS (%) Participação no Total das Exportações do RS Valor(US$ milhões) Composição das Exportações para os BRICS (%) Participação no Total das Exportações do RS
Rússia 26,7 86.9 14,9 1,4 353.3 6,9 1,9
Índia 16,9 58.2 10,0 0,9 154.8 3,0 0,8
China 25,4 370.9 63,8 5,8 4.455.0 87,5 23,8
África do Sul 8,1 65.6 11,3 1,0 127.1 2,5 0,7
Total 20,2 581.6 100,0 9,2 5.090.1 100,0 27,2

FONTE DOS DADOS BRUTOS: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Sistema de Análise das Informações de Comércio Exterior ― ALICE-Web. 2015. Disponível em: <http://aliceweb.mdic.gov.br/>. Acesso em: 22 jul. 2015.

Ao se analisar a participação de cada um dos países como mercado para as exportações do Estado, tem-se: China (87,52%), Rússia (6,94%), Índia (3,04%) e África do Sul (2,5%). De acordo com os dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), em 2014, aproximadamente 300 empresas do Estado exportaram para China, 200 para a África do Sul, 130 para a Índia e 100 empresas exportaram para Rússia, conforme o quadro.

Destino e valor das exportações das principais empresas exportadoras do Rio Grande do Sul para os BRICS — 2014
DESTINO DAS EXPORTAÇÕES VALOR DAS EXPORTAÇÕES EMPRESAS ATIVIDADADE PRINCIPAL
Rússia Acima de US$ 50 milhões Philip Morris Brasil Tabaco
Rússia Entre US$ 10 e 50 milhões Universal Leaf Tabacos Ltda. Tabaco
Alibem Comercial de Alimentos Ltda. Suínos
Índia Acima de US$ 50 milhões Petrobras Petróleo
Bunge alimentos S/A Alimentos
Índia Entre US$ 10 e 50 milhões Bianchini S/A Soja
China Acima de US$ 50 milhões Bunge Alimentos S/A Alimentos
Noble Brasil Grãos e oleagenosas
Vale S/A Minérios
China Entre US$ 10 e 50 milhões Souza Cruz S/A Tabaco
BRF S/A Alimentos
Epcos do Brasil Ltda. Material elétrico e eletrônico
África do Sul Acima de US$ 50 milhões Scania Latin America Ltda. Caminhões
África do Sul Entre US$ 10 e 50 milhões Souza Cruz S/A Tabaco
Dana Indústrias Ltda. Suspensão e eixos automotivos
FONTE DOS DADOS BRUTOS: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Secretaria de Comércio Exterior (Secex). Empresas exportadoras por países e unidades da federação: Rio Grande do Sul 2014. 2015. Disponível em: <http://www.mdic.gov.br//sitio/interna/interna.php?area=5&menu=1444&refr=603>. Acesso em: 15 jul. 2015.

Por tudo isso, reforça-se a necessidade de o Governo Estadual defender, de forma institucional, os interesses dos empresários gaúchos (da indústria ao agronegócio) no processo de formulação da política de inserção comercial do Brasil no mundo. No caso dos BRICS, a defesa dos interesses do Estado demanda uma visão estratégica e sistêmica das relações políticas e econômicas no interior dos BRICS e das parcerias que esses países estabelecem com o resto do mundo.