Texto sob autoria de: Robson Valdez

Robson Valdez

Internacionalista, Pesquisador da FEE. International Affairs Researcher at the FEE.

A flexibilização global das relações de trabalho é uma tendência generalizada? Uma breve análise da situação da Ásia Oriental

Ao longo das últimas décadas, em particular, após a grande crise econômica mundial, no final da primeira década do século XXI, tem-se observado e discutido o fenômeno da deterioração das relações de trabalho, com particular interesse na União Europeia e nos Estados Unidos. Em 2013, a Revista Internacional do Trabalho, vinculada à Organização Internacional do Trabalho (OIT), dedicou uma edição inteira à identificação da situação das relações de trabalho no contexto europeu, com conclusões, em geral, pessimistas. Essa situação guarda semelhanças com o contexto dos Estados Unidos e mesmo de alguns países latino-americanos, inclusive o Brasil. É possível identificar uma correlação entre a globalização da economia, por um lado, e a deterioração das relações de trabalho, ao menos nas regiões mais desenvolvidas. Contudo, o que se passa em outras partes do mundo? Neste artigo, aborda-se a situação observada na Ásia Oriental, para onde se volta a atenção quanto às melhores práticas de políticas públicas, dada a rápida evolução recente das economias da região.

Antes da análise da indagação proposta, cabe ressalvar que os sistemas nacionais de proteção ao trabalhador encontram-se em uma situação mais favorável aos trabalhadores na Europa, na América do Norte e mesmo em alguns países mais industrializados da América Latina, em comparação com outras partes do mundo. No entanto, é necessário considerar não apenas a situação estática desses sistemas, mas também a tendência recente em ambos os grupos. Como a grande maioria dos estudos têm-se voltado para a investigação da problemática no continente europeu e na América Latina e identificado considerável piora nesse quesito, neste texto, enfoca-se a situação do trabalho na Ásia Oriental, com ênfase em três das economias emergentes mais representativas dessa região: China, Índia e Coreia do Sul.

O caso chinês parece bastante elucidativo. Não obstante o fato de as normas chinesas ainda permanecerem em um nível bastante inferior às de seus análogos na Europa quanto à renumeração e ao acesso a direitos básicos, como à aposentadoria, o Governo chinês tem-se movido no sentido de aprimorar a política trabalhista. A base da atual legislação trabalhista chinesa é relativamente recente (em vigor desde 1995), complementada pela Lei de Contratos Coletivos de Trabalho, de 2004. Como afirmam Wu e Sun (2014), vige um sistema liderado pelo Governo, que apresenta não apenas a atribuição de mediar e arbitrar conflitos entre trabalhadores e empregadores, mas também de impor condições e limites relativos a salários e horas trabalhadas, além de impelir as partes a negociarem, entre outros aspectos. Por um lado, a concessão de direitos pode ser entendida como uma resposta dos dirigentes nacionais às crescentes ondas de agitação de trabalhadores chineses em tempos recentes e ao aumento expressivo dos casos de disputas trabalhistas pelo País, iniciados em meados da década de 90. Os autores apontam que, em 1992, registraram-se 18.000 disputas trabalhistas, ao passo que, em 2008, esse número aumentou cerca de 90 vezes. A legislação trabalhista chinesa, além de ser mais restritiva em comparação a de seus equivalentes ocidentais, permanece assentada em uma lógica individualizada, em que são vedados o direito de greve e a criação de sindicatos independentes. Porém, como visto anteriormente nesta revista, a melhora relativa do bem-estar dos trabalhadores, mormente nas grandes cidades, pode ser entendida como parte dos desígnios do Partido Comunista da China de redirecionar o modelo econômico baseado nas exportações de bens industrializados para o desenvolvimento calcado no mercado interno, dada a permanente turbulência da economia mundial. A ampliação dos direitos trabalhistas, assim, apresenta uma relevante dimensão propositiva e, inclusive, estratégica.

A Índia, segundo país mais populoso do mundo após a própria China e com participação cada vez mais saliente na economia e na política global, apresenta um quadro significativamente distinto. Por um lado, o País contou com cerca de 84% de sua mão de obra em ocupações informais em 2012, de acordo com dados da OIT, um nível superior inclusive ao de outros países em desenvolvimento. Por outro lado, esse percentual tem-se reduzido ao longo das últimas décadas, ainda que de forma bastante lenta. No início da presente década, o Governo indiano promoveu mudanças, no sentido de garantir direitos trabalhistas, com enfoque em grupos específicos, como a criação da Lei Sobre Assédio Sexual de Mulheres no Trabalho, de 2013, e da Política Nacional Para Trabalhadores Domésticos, de 2011, como relata uma recente publicação do Programa de Trabalho Decente. Cabe ressalvar, entretanto, o avanço da percepção favorável à flexibilização das normas trabalhistas por parte do Governo de Narendra Modi.

Outro interessante caso regional é o da Coreia do Sul. Apesar do rápido avanço econômico nas últimas décadas, que lhe alçou à condição de “Tigre Asiático”, o País foi atingido pela grande crise global de 2008, depois de ter sido atingido, de forma ainda mais contundente, pela crise do Leste Asiático, em 1997. Durante a crise dos anos 90, o País viu-se em uma aguda crise de escassez de divisas externas que gerou impactos em seus indicadores macroeconômicos. Assim como fizeram outros países da região, o Governo sul-coreano solicitou resgate junto ao Fundo Monetário Internacional, o qual, por sua vez, condicionou a assistência a políticas fiscais, que impactaram fortemente as relações de trabalho. Após a taxa de desemprego aumentar rapidamente (de cerca de 2,5% no final de 1997 para 8,5% no final de 1998), o ajuste recessivo foi paulatinamente substituído por um enfoque diferenciado, denominado, à época, Grande Acordo Social Para a Superação da Crise Econômica. Essa política congregava tanto elementos pró-mercado como a ampliação da rede de seguridade social aos trabalhadores. No lado do capital, manteve a preocupação de estabilizar o nível de preços e salários e facilitou a execução de férias coletivas; no lado do trabalho, ativou a política de geração de empregos, a ampliação do seguro-desemprego e o empoderamento de sindicatos de trabalhadores. A manutenção dessa solução de meio-termo suavizou os danos causados pela crise global a partir da segunda metade de 2008, a ponto de a taxa de emprego sair praticamente ilesa durante todo o período. Na fase mais recente, têm ocorrido divergentes pressões políticas, ora por parte de grandes grupos empresariais, ora por parte de sindicatos, para alterar as normas trabalhistas vigentes. Em 2017, a ascensão do Partido Democrático, de centro-esquerda, encorajou os sindicatos a reivindicar políticas que combatam a elevada proporção de trabalhadores ocupados em meia-jornada e reduzam o número de horas trabalhadas, indicador que se encontrava entre as maiores médias da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A partir da análise de três das maiores economias da região da Ásia Oriental, retoma-se a pergunta original deste texto. Esses casos permitem afirmar que, embora as leis trabalhistas nos três países permaneçam em patamares bastante inferiores aos da Europa e aos da América do Norte, não se verifica uma adesão clara à tendência de flexibilização das relações de trabalho nem significativas mudanças no conteúdo da própria legislação. O principal destaque, em termos legais, cabe à Índia, cujas inovações têm o potencial de melhorar a situação das mulheres no ambiente de trabalho. No entanto, é no aspecto das disputas políticas que se pode verificar ganhos relativos do conjunto dos trabalhadores. No caso sul-coreano, destacam-se importantes concessões ao conjunto dos trabalhadores, como a política de manutenção de empregos e o aumento do poder de barganha dos sindicatos. No caso chinês, as melhorias na situação dos trabalhadores respondem tanto aos temores de uma convulsão social generalizada como ao propósito de rever a inserção econômica do País, dependente das exportações de bens.

Cabe reforçar que não se verifica uma situação de bonança para os trabalhadores nesses três países. Em primeiro lugar, como visto, sua situação permanece altamente precária, sobretudo na Índia. Em segundo lugar, não há como afirmar que essa tendência de melhoria relativa permanecerá incólume, dado que o aumento do poder de barganha do conjunto dos trabalhadores pode levar à reação de setores empresariais nesses mesmos países. Já se nota semelhante movimentação nesse sentido, na Índia, onde as pressões por flexibilizações têm ganhado espaço nos debates públicos. Diante dessa breve exposição, é válido concluir que as relações de trabalho nas economias emergentes mais significativas da Ásia Oriental têm testemunhado um processo distinto dos da Europa, da América do Norte e mesmo de partes da América Latina. No entanto, é demasiado cedo indicar a permanência dessa tendência oriental sui generis em relação a essa temática.

Realidades, utopias e a agenda global das mudanças climáticas

Esta edição da revista Panorama Internacional FEE aborda a temática ambiental em âmbito global. Nesse sentido, busca-se discutir os esforços de articulação multilateral que visam à construção de um regime internacional para o enfrentamento dos efeitos adversos decorrentes das mudanças climáticas sobre a vida e os modos de organização das sociedades. Os principais desafios dizem respeito aos dilemas envolvendo a conciliação de agendas atreladas à promoção do crescimento econômico dos países e à preservação do meio ambiente.

Em que pese a repercussão da decisão unilateral dos Estados Unidos se retirarem do Acordo de Paris, os demais países têm dado declarações no sentido de que a comunidade internacional está, em algum grau, comprometida com uma agenda ambiental comum. Entretanto, diante desse cenário, o Brasil tem dado demonstrações que colocam em dúvida seu real alinhamento com os esforços globais na área ambiental. Nessa perspectiva, chama atenção a recente decisão da Justiça Federal brasileira de suspender a ação contra a mineradora Samarco, responsável pelo maior desastre ambiental da história do País. Adicionalmente, no final do mês de agosto, o Governo Federal autorizou, via decreto presidencial, a extinção de uma reserva nacional na Amazônia, a Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca), para possibilitar a atividade mineradora em uma área equivalente ao tamanho da Dinamarca.

Na esfera estadual, a situação é alarmante. No que tange à questão hídrica do Estado, a Pesquisadora em Geografia da Fundação de Economia e Estatística (FEE) Mariana Pessoa lembra que: O Estado coleta apenas 31,2% do esgoto gerado e trata menos de 13%, abrigando, por isso, três dos 10 rios mais poluídos do País: Sinos, Gravataí e Caí — todos localizados na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), abastecendo mais de 1,5 milhões de pessoas”. Ainda que o peso da agricultura no Produto Interno Bruto (PIB) estadual seja da ordem de 10%, a pesquisadora lembra que o setor utiliza 78% da água disponível no Estado. Faz-se necessário ressaltar que o impacto do uso de agrotóxicos nas lavouras do Estado é devastador para a manutenção dos solos, dos mananciais de água e para todo o ecossistema. Além de reforçar a centralidade da questão hídrica em diversos conflitos interestatais, assim como em políticas para o desenvolvimento das sociedades, a pesquisadora pontua alguns dos principais desafios pertinentes à gestão da água nos âmbitos federal e estadual. Dessa forma, sua discussão passa pela avaliação dos 20 anos da promulgação da Lei n.º 9.433/1997, também conhecida como Lei das Águas, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Bruno Jubran, Pesquisador em Relações Internacionais, traça um panorama histórico dos principais debates pertinentes à coordenação multilateral dos países no enfrentamento dos efeitos adversos das mudanças climáticas. Tendo como ponto de partida a Conferência de Estocolmo (1972), passando pela Conferência das Nações Unidas Sobre o Ambiente e o Desenvolvimento (1992), o autor destaca três principais regimes mundiais de acompanhamento e de enfrentamento das mudanças climáticas: a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, em sua sigla em inglês), o Protocolo de Quioto e o Acordo de Paris. À luz da saída unilateral dos Estados Unidos do Acordo de Paris, Jubran também discute as contradições inerentes à complexa conciliação de agendas para o desenvolvimento sustentável envolvendo países com assimetrias econômicas e sociais bastante marcantes.

Dentro dessa perspectiva, o pesquisador Tarson Nuñes avalia especificamente a decisão unilateral de os Estados Unidos se retirarem do Acordo de Paris. Além das impressões pessoais do Presidente Donald Trump sobre o tema das mudanças climáticas, o cientista político discute o impacto do posicionamento do atual Governo norte-americano sobre a opinião pública do País, em relação à temática ambiental em âmbito global. Nesse sentido, o pesquisador destaca a forte divisão entre o lobby das indústrias tradicionais de mineração e de combustíveis fósseis — de apoio à postura do Governo — e os influentes movimentos da sociedade civil e das indústrias intensivas em tecnologia em oposição à retirada do País do Acordo de Paris.

Embora as causas do aquecimento global não sejam um ponto pacífico entre especialistas, o Pesquisador em Economia Jaques Bensussan argumenta que existe um entendimento consolidado de que, de fato, vivemos atualmente em um planeta mais quente e com os níveis de dióxido de carbono (CO2) 30% mais altos do que os do final do século XIX. Assim, com base na definição de campos opostos desse debate, na tradicional indústria de combustíveis fósseis e no emergente setor de energias renováveis, o pesquisador analisa e compara as matrizes energéticas de países que estão no centro dessa discussão: Estados Unidos, China e Brasil.

Como forma de discutir e aprofundar a temática abordada ao longo dos textos, a Panorama Internacional FEE entrevistou a Dra. Catherine Tinker, professora associada da Escola de Diplomacia e Relações Internacionais da Seton Hall University, Nova Jérsei, onde ministra os cursos de Direito Internacional e Direito Internacional Ambiental. Dra. Tintker é fundadora e representante do Tinker Institute on International Law and Organizations (TIILO), na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque. O TIILO é uma organização não governamental credenciada junto ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC, em sua sigla em inglês), que se dedica à pesquisa e à educação nas áreas de direito internacional, políticas e organizações.

É dentro desse cenário de avanços e retrocessos no campo do combate aos efeitos das mudanças climáticas que a Panorama Internacional FEE lança mais uma série de estudos temáticos. Nesta nova edição, celebra-se o segundo aniversário da publicação, que já abordou outras oito temáticas internacionais igualmente relevantes para o Brasil e para o Rio Grande do Sul: exportações, petróleo, 25 anos do Mercosul, fluxos migratórios, Estados Unidos, China, mega-acordos comerciais e o acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia. Dessa forma, e dentro desse espírito de celebração, fica o desejo de vida longa à Panorama Internacional FEE e à Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul.

Boa leitura!

O longo acordo de comércio e investimentos Mercosul-União Europeia

Em março deste ano, aconteceu a XXVII Rodada de Negociação Mercado Comum do Sul-União Europeia (Mercosul-UE) em Buenos Aires, na Argentina. Em que pesem os altos e baixos vividos por esse bloco econômico sul-americano, o Mercosul, desde sua criação, em dezembro de 1991, consolidou-se como um dos principais eixos da política externa do País e mercado para produtos e serviços brasileiros. Atualmente, conforme o Quadro 1, as propostas e os acordos comerciais do Brasil estão vinculados a ele. Além da própria relação do Brasil com o bloco, a efetivação de um acordo comercial transatlântico envolvendo Mercosul e União Europeia consolida-se como a mais ambiciosa proposta de livre-comércio para o Brasil.

Após duas décadas da assinatura do Acordo-Quadro de Cooperação Mercosul-União Europeia, em 15 de dezembro de 1995, os dois blocos econômicos regionais ainda não conseguiram superar seus respectivos constrangimentos e entraves, de forma a levar à efetiva celebração de um acordo de livre-comércio. Assinado na data referida, o Acordo entrou somente em vigor em julho de 1999.1 Segundo o documento, o tratado buscava preparar as respectivas regiões para o estabelecimento das condições para a criação de uma associação inter-regional envolvendo os domínios comercial, econômico e de cooperação.

Na seara comercial, o Acordo prevê o fomento e a diversificação das trocas comerciais, com o objetivo de preparar as regiões para uma liberalização progressiva que leve à criação de uma área de livre-comércio entre as partes, considerando questões sensíveis e em conformidade com a Organização Mundial do Comércio (OMC). Ainda segundo o documento, a cooperação na área comercial se dará sem a exclusão de qualquer setor, abrangendo especialmente: (a) acesso ao mercado, liberalização comercial (obstáculos tarifários e não tarifários) e regras comerciais, tais como práticas restritivas de concorrência, regras de origem, salvaguardas, regimes aduaneiros especiais, entre outras; (b) relações comerciais das partes com terceiros países; (c) compatibilidade da liberalização comercial com as normas do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), da OMC; (d) identificação de produtos sensíveis e de produtos prioritários para as partes; (e) cooperação e intercâmbio de informações, em matéria de serviços, no âmbito das competências respectivas.

Nos campos econômico e de cooperação, o Acordo prevê esforços com vistas ao incremento das relações comercias. Nesse sentido, a cooperação se dá no âmbito empresarial, na promoção dos investimentos em matéria de energia, transporte, proteção ao meio ambiente, telecomunicações e tecnologias da informação, além de cooperação nas áreas científicas e tecnológicas. Por fim, a cooperação institucional prevê esforços nas áreas de comunicação, informação, cultura, educação e combate ao tráfico de drogas.

Desde a assinatura do Acordo-Quadro, em 1995, até a sua entrada em vigor, em 1999, as relações entre blocos econômicos passou por um processo de distanciamento. Nesse contexto, pode-se citar um maior interesse do Mercosul em consolidar-se como uma união aduaneira e incrementar a integração produtiva de alguns setores das economias dos países do bloco. Adicionalmente, deve-se ressaltar o protagonismo de todo o processo de negociação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) dentro da agenda internacional do Brasil e dos demais países do Mercosul. Na outra margem do Atlântico, a União Europeia estava em processo de expansão rumo ao leste e buscava o estabelecimento de medidas macroeconômicas para a futura implementação da moeda única do bloco (CARVALHO; LEITE, 2013).2

Os diálogos são retomados na reunião da Cúpula América Latina, Caribe e União Europeia, em junho de 1999, no Rio de Janeiro. É a partir desse momento que as negociações começam a se estruturar em comitês e subcomitês, assim como em diversos grupos de trabalho. Em 2000, no âmbito do Comitê de Negociações Birregionais, foram estabelecidos grupos de trabalho para analisar os temas pertinentes a bens, acesso a mercados, procedimentos alfandegários, investimentos, serviços, fluxos de capital, propriedade intelectual, compras governamentais, etc.

A Cúpula aconteceu também em Madri (2002), Guadalajara (2004), Viena (2006), Lima (2008) e, novamente, em Madri (2010). No decorrer de todas essas reuniões, os momentos de maior avanço nas negociações se deram nos anos de 2001 e 2004. No primeiro momento, a União Europeia apresentou uma proposta para o comércio de bens, serviços e compras governamentais (CARVALHO; LEITE, 2013). Em 2004, os dois lados apresentaram propostas de liberalização comercial, com abrangência de até 90% dos bens e serviços em diversos setores, com exceções e ressalvas pertinentes ao setor agrícola. Os debates foram retomados, novamente, na Cúpula de Madri, em 2010. Nessa ocasião, foi instituído um plano de ação para as atividades do período 2010-12 (CARVALHO; LEITE, 2013). É interessante notar que, assim como se deu com as negociações envolvendo Estados Unidos e União Europeia, estabeleceu-se, nesse biênio, um fórum não governamental para a discussão dos temas pertinentes à criação de uma área de livre-comércio entre a América Latina e a União Europeia: a Fundação União Europeia-América Latina-Caribe. Destaca-se que é no âmbito dessas reuniões de grupos de interesses organizados da sociedade civil que se busca o consenso em torno de propostas que possam ser contempladas nas negociações comerciais.

Em 26 de janeiro de 2013, ocorreu a Reunião Ministerial Mercosul- União Europeia no Chile. Nesse encontro, havia-se estabelecido um prazo para que os blocos preparassem suas respectivas propostas para um efetivo acordo de livre-comércio. Em 2013, deu-se início ao processo de convergência de ofertas nacionais no âmbito do Mercosul, com vistas à consolidação de uma oferta conjunta do bloco, que foi, finalmente, anunciada em 2014, no Comunicado da Cúpula de Caracas. A troca efetiva das ofertas deveria ocorrer no último trimestre de 2015, como acordado durante a Reunião Ministerial Mercosul-UE, realizada em Bruxelas, em junho daquele mesmo ano. Após o consentimento do Conselho da UE para a continuidade das negociações (novembro de 2015), as trocas, finalmente, se concretizaram no dia 11 de maio do ano seguinte, na capital belga. Essas negociações trataram de comércio de bens, compras governamentais, investimentos e serviços. Em junho de 2016, os negociadores-chefes dos dois blocos reuniram-se em Montevidéu, no Uruguai, para debater questões técnicas pertinentes às ofertas do Acordo. Cinco meses mais tarde, em outubro, aconteceu, em Bruxelas, a primeira reunião após a troca de oferta de acesso aos mercados (BRASIL, 2017).3

Por fim, em março de 2017, ocorreu a XXVII Rodada de Negociação Mercosul-União Europeia em Buenos Aires, Argentina.4 As negociações dos grupos de trabalho abrangeram: comércio de bens, regras de origem, facilitação comercial e aduaneira, barreiras técnicas ao comércio, medidas sanitárias e fitossanitárias, instrumentos de defesa comercial, subsídios, solução de controvérsias, serviços, compras governamentais, propriedade intelectual, comércio e desenvolvimento sustentável, pequenas e médias empresas e assuntos institucionais.

O peso do mercado doméstico como variável determinante do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e a consolidação não só do Mercosul como também da América Latina e do Caribe como áreas estratégicas para a inserção comercial do Brasil podem ser percebidos como um desafio aos interesses do País no âmbito dessas negociações. O Gráfico 1 evidencia que, ao longo dos últimos anos, essas regiões consolidaram-se como mercados relevantes para o comércio exterior brasileiro. Nos últimos 16 anos, a União Europeia tem-se destacado como o principal destino das exportações do Brasil, seguida pela China. Os Estados Unidos, que, até 2009, eram o segundo destino das exportações brasileiras, perderam o posto para o gigante asiático e para o Mercosul, que se manteve na terceira posição até 2014. A América Latina e o Caribe, excluindo o Mercosul, importantes mercados de produtos manufaturados brasileiros, são um potencial alvo da estratégia comercial do bloco europeu, que pode valer-se de sua inserção na região via acordo de comércio e investimentos com o Mercosul.

Ainda que, isoladamente, a corrente de comércio dos membros do Mercosul pareça inexpressiva, com exceção do Brasil, os dados agregados do bloco sul-americano chamam atenção. De acordo com a Tabela 1, em 2015, o Brasil representou 69,91% da corrente de comércio do bloco com a União Europeia. A Argentina era a segunda economia. No mesmo ano, o Mercosul respondeu por US$ 54,47 bilhões em valor das exportações do bloco europeu. Desse total, US$ 38,3 bilhões tiveram o Brasil como destino.

Na comparação com os demais destinos das exportações da União Europeia, ainda para o ano de 2015, o Mercosul consolidou-se como a 8.ª corrente de comércio e 7.º mercado exportador do bloco europeu. Já o Brasil registrou a 12.ª corrente de comércio do bloco, o 15.º mercado exportador e o 11.º fornecedor de importados. A Tabela 2 evidencia, acima de tudo, a característica do comércio triangular em nível global envolvendo União Europeia, Estados Unidos e Ásia (com destaque para China e Japão). Adicionalmente, os dados ilustram a força comercial da União Europeia e dimensionam os desafios do Mercosul em relação às negociações com os europeus.

O que se infere de todo esse longo processo de negociação para o estabelecimento de uma área de livre-comércio e investimentos entre o Mercosul e a União Europeia parece ser o fato de que algum acordo nesse sentido será celebrado. Observa-se que, mesmo com todas as crises políticas e econômicas nas duas margens do Atlântico, as negociações avançam em seu ritmo próprio. Vale ressaltar que, ainda que o acordo venha a ser firmado, as tratativas estabelecem diversos calendários para a adaptação às conformidades dos mais variados setores econômicos, visando à efetivação plena do acordo entre as partes. As expectativas do Mercosul e da União Europeia são de que seja possível assinar um acordo entre as partes em 2018. Contudo, faz-se necessário ressaltar que a estabilidade, ou a sua ausência (na política e na economia), é uma variável determinante na dinâmica dessas negociações.


1 Acordo-quadro inter-regional de cooperação entre a comunidade europeia e os seus estados-membros e o Mercosul e os seus estados-partes. Disponível em: <http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-internacionais/multilaterais/acordo-quadro-inter-regional-de-cooperacao-entre-a-comunidade-europeia-e-os-seus-estados-membros-e-o-mercosul-e-os-seus-estados-partes/>. Acesso em: 10 maio 2017.

2CARVALHO, F. A. T; LEITE, A. C. C. Acordo de associação inter-regional Mercosul-União Europeia: entraves à aprovação e perspectivas futuras. Século XXI, Porto Alegre, v. 4, n. 2, jul./dez. 2013. Disponível em:. Acesso em: 25 abr. 2017.

3BRASIL. Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. Negociações internacionais Mercosul/União Europeia. 2017. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2017.

4O conteúdo dos temas tratado nessa última rodada de negociação está disponível em: <http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2017/april/tradoc_155477.pdf>. Acesso em: 5 maio 2017.

As relações entre o Brasil e a China frente aos desafios impostos pelo ajuste fiscal

A inserção internacional do Brasil nos dois mandatos do Presidente Lula e, em menor medida, no primeiro mandato da Presidente Dilma Rousseff foi marcada pela diversificação de suas relações internacionais sem que isso pudesse comprometer sua relação com parceiros tradicionais como os norte-americanos, japoneses e europeus. No entanto, diferentemente do período em tela, o atual cenário de forte deterioração da economia nacional e de severo contingenciamento dos gastos públicos, nas esferas federal e estadual, impõe desafios à capacidade do País para estabelecer critérios de complementariedade no âmbito de suas relações com a China.

Enquanto os países centrais experimentaram os efeitos da severa crise econômica de 2008, a primeira década dos anos 2000 foi marcada pelo protagonismo dos países emergentes no cenário internacional. Dentro de um contexto de forte elevação dos preços de suas principais commodities exportáveis, os países emergentes buscaram, com razoável sucesso, implementar políticas econômicas capazes de gerar um certo dinamismo econômico doméstico. Nesse cenário, destacam-se Brasil, Rússia e China. O crescimento econômico dessas nações, ao lado de África do Sul e Índia, projetou-as internacionalmente de forma a garantir certo poder de articulação de seus interesses em fóruns internacionais como o próprio BRICS — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul —, o G20 financeiro, o G20 comercial, a Organização Mundial de Comércio (OMC), além das várias agências no âmbito da Organização das Nações Unidas, como a Conferência das Nações Unidas Sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) e a Organização das Nações Unidas Para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

Nesse processo, além de serem potências nucleares, China e Rússia dão um peso estratégico ao conjunto dos países emergentes na defesa de suas respectivas agendas no Conselho de Segurança da ONU, onde têm assento permanente e poder de veto, alçando-as à categoria de players da geopolítica global. Contudo, no campo econômico, a China destaca-se dos demais países, desenvolvidos e em desenvolvimento, pela pujança que se traduz em impressionantes superávits comerciais, níveis de crescimento econômico, reservas internacionais e volumes de investimentos mundo afora.

O Brasil retomou as relações diplomáticas com a República Popular da China (RPC) em 1974. Desde então, o país asiático aumentou sua participação até assumir a posição de principal destino das exportações brasileiras. Em 1985, as exportações brasileiras atingiram US$ 817,5 milhões. Uma década depois, o valor alcançava US$ 1,2 bilhão, e a pauta exportadora era composta majoritariamente por produtos manufaturados e semimanufaturados. A partir de então, os produtos básicos passaram a se consolidar como os principais itens na pauta exportadora brasileira para a China. Em 2005, o valor das exportações atingiu a soma de US$ 6,8 bilhões. A partir de 2009, a China passou a ser o principal parceiro comercial do Brasil, assumindo a posição que era dos Estados Unidos. Nesse ano, os chineses importaram US$ 21 bilhões. Em 2013, esse valor saltou para US$ 46 bilhões, conforme o Gráfico 1. Desde então, a China, isoladamente, é o principal destino das exportações brasileiras, competindo com União Europeia, América Latina e Caribe.


No que tange aos investimentos diretos, os dados do Banco Central do Brasil mostram que, entre os anos de 2010 e 2014, a distribuição de estoque de investimento direto no Brasil (participação no capital) apresentou o valor médio acumulado no período de US$ 577,9 bilhões. Desse total, tem-se o seguinte percentual médio acumulado entre os principais países investidores: Estados Unidos (20%), Espanha (12%), Bélgica (8%), Reino Unido (7%), França (6%), Países Baixos (5%), Japão (5%), Alemanha (4%), Itália (3%), Suíça (3%) e China (2%)1. Ainda que, nessa área, o Brasil dependa das agendas decisórias dos Estados Unidos, da Europa e do Japão, as relações bilaterais entre Brasil e China, que se estreitaram dentro dessa dinâmica recente de construção de projetos de desenvolvimento nacional, consolidaram o parceiro asiático como uma alternativa pragmática e estratégica na captação de recursos externos para investimentos no Brasil.

A recente onda de investimentos chineses no Brasil chama atenção. De acordo com os dados do American Enterprise Institute e da Heritage Foundation2, os chineses aportaram US$ 51,7 bilhões em investimentos no Brasil, no período 2005-16. Os investimentos abrangeram os setores: imóveis, energia, agricultura, químicos, tecnologia, metais, transporte e financeiro. De acordo com os dados da Figura 1, o setor de energia foi o que mais atraiu investimentos. Nesse segmento, as empresas chinesas aportaram um total de US$ 38,15 bilhões no período. Logo depois, têm-se os setores de mineração (US$ 4,39 bilhões), financeiro (US$ 2,11 bilhões), agricultura (US$ 1,93 bilhão), transporte (US$ 1,81 bilhão), imobiliário (US$ 1,36 bilhão), químicos (US$ 1,5 bilhão) e tecnologia (US$ 450 milhões).

O Gráfico 2 mostra o aporte dos investimentos chineses no Brasil, ao longo do período 2005-16. Nota-se que 2010 foi o ano em que as cifras alcançaram os maiores valores, US$ 13,89 bilhões. Nesse ano, o setor de energia foi o que mais recebeu investimentos, US$ 11,82 bilhões. Em 2012, a redução desses investimentos atingiu US$ 3,05 bilhões. A partir desse ponto, os investimentos retomaram a tendência de alta e atingiram US$ 12,1 bilhões em 2016. Novamente, o setor de energia recebeu a maior parte dos investimentos, totalizando US$ 10,3 bilhões.

Faz-se necessário destacar que, ao longo dos últimos 15 anos, o esforço empreendido na consolidação de parcerias estratégicas entre os dois países buscava a complementariedade de políticas nacionais dos países nas áreas do desenvolvimento econômico e das relações internacionais. Nesse sentido, ainda que, durante o Governo Dilma Rouseff, os constrangimentos políticos e econômicos de ordem doméstica tenham relegado a política externa brasileira a um plano secundário, os projetos de cooperação entre os dois países, no BRICS ou nos mais diversos fóruns internacionais, foram mantidos. Contudo, o agravamento da crise econômica e política no País, nos útlimos dois anos, lança dúvidas sobre o papel que a China passa a desempenhar no governo do Presidente Michel Temer.

O alinhamento do atual governo com a ortodoxia econômica consubstanciada em um severo ajuste fical que limita, por 20 anos, a capacidade do executivo federal de executar políticas de investimentos públicos em áreas estratégicas para o desenvolvimento nacional realça o papel coadjuvante que o Brasil deve assumir nessa nova fase de sua relação com o gigante asiático. O desmonte de políticas de conteúdo nacional, que viabilizaram, por exemplo, a emergência do polo naval de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, evidencia a desconstrução de elos de complementariedade que, até então, caracterizavam o protagonismo do Brasil na construção de suas relações bilaterais, principalmente as que se davam no âmbito da cooperação sul-sul.

Na seara estadual, o Rio Grande do Sul emula a atual dinâmica federal em suas relações com a China. Ainda que os investimentos externos diretos tenham um relevante impacto na geração de emprego e renda, são os projetos de complementariedade estratégica de longo prazo que têm potencial para produzir efeitos duradouros nas áreas de desenvolvimento econômico.

O ajuste fiscal adotado pelo Governo do Estado limita a capacidade do Estado do Rio Grande do Sul de estabelecer projetos de parceria estratégica de longo prazo com a China nas áreas do desenvolvimento econômico e também nas áreas da cultura, da educação, da ciência e da tecnologia. A extinção de fundações públicas de pesquisa restringe as possibilidades de se estreirarem ainda mais as relações do Rio Grande do Sul com com a China para além do enfoque puramente comercial. Da mesma forma que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) estabeleceu, em 2012, acordos de cooperação com o Chinese Academy of Agriculture Science (CAAS), acredita-se que acordos semelhantes envolvendo fundações de pesquisas do Estado e os diversos órgãos de pesquisa da China poderiam consolidar-se como interfaces para o desenvolvimento de interesses mútuos envolvendo chineses e gaúchos em suas respectivas áreas do conhecimento.

Em 2017, ainda no contexto de ajuste das contas públicas estaduais, a empresa chinesa da área de energia, State Grid, passou a ser controladora da CPFL Energia e responsável por dois terços da distribuição de energia no Estado do Rio Grande do Sul. A companhia do país asiático é proprietária da RGE e da RGE Sul. Vale lembrar que, em um contexto de ataque à qualidade prestada por serviços prestados por empresas estatais, a State Grid é uma empresa chinesa 100% estatal forte candidata a comprar a Companhhia Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul (CEEE), caso a estatal gaúcha venha a ser efetivamente privatizada como deseja o Governo do Estado. Além disso, ainda há o caso da possibilidade de privatização da Companhia Rio-Grandense de Mineração (CRM). O Estado do Rio Grande do Sul detém 86% das jazidas de carvão do País. Nesse caso, as empresas chinesas Zhejiang Electric Power Construction Co (ZEPCC), State Grid e China Three Gorges (CTG) apresentam-se como potenciais compradores da estatal gaúcha.

Percebe-se que, na atual conjuntura, tanto o Governo Federal quanto o do Estado enxergam os investimentos chineses como um alívio de curto prazo na busca de soluções para os seus respectivos desafios de ajuste nas contas públicas. A parceria com os chineses deveria ser percebida e instrumentalizada como uma estratégia de cooperação bilateral e sistêmica de longo prazo. Assim, deve-se frisar que as relações internacionais são pautadas, antes de tudo, pelos interesses nacionais, e a cooperação é o meio pelo qual os interesses dos países podem ser satisfatoriamente alcançados. Dessa forma, tem-se o entendimento de que, ao sobrepor a fragilidade das contas públicas a projetos amplos de cooperação com os chineses, corre-se o risco de restringir uma relação bilateral estratégica para o País a meros acordos de comércio e de investimento sem maiores contrapartidas chinesas para o desenvolvimento do Brasil. Dentro dessa dinâmica imediatista e subserviente, a China não terá incentivo a cooperar e tampouco constrangimento em maximizar as oportunidades de investimentos no Brasil e no Rio Grande do Sul — oportunidades que, no seu conjunto, se consolidarão como um verdadeiro negócio da China para os próprios os chineses.


1BANCO CENTRAL DO BRASIL. Censo de capitais estrangeiros no País: resultados anos-base: 2010 a 2014. 2016. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2017.

2THE AMERICAN ENTERPRISE INSTITUTE AND THE HERITAGE FOUNDATION.China Global Investment Tracker. 2017. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2017.

Brasil e os mega-acordos comerciais: princípios, história e desafios

O princípio basilar do comércio internacional é o da não discriminação. No âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), a não discriminação dá origem a outros dois importantes pilares, o tratamento nacional e a cláusula de nação mais favorecida. A cláusula de nação mais favorecida estabelece que qualquer vantagem comercial oferecida a qualquer país, membro ou não da OMC, seja igualmente oferecida às demais nações dessa organização. Já o princípio de tratamento nacional assegura que o produto importado deve receber o mesmo tratamento dado aos produtos nacionais. Com base nesses princípios, que buscam evitar a discriminação na origem e entre produtos, a OMC visa fomentar a liberalização do comércio em nível mundial. Adicionalmente, a OMC oferece aos seus membros um conjunto de medidas de defesa comercial contra o dumping (medidas antidumping), contra o subsídio (medidas compensatórias) e contra os surtos de importações (salvaguardas).

No entanto, as complexidades e assimetrias do comércio internacional que dificultam o processo de liberalização comercial levaram a Rodada de Tóquio, de 1979, da Organização a instituir a cláusula de habilitação. Essa cláusula visa à criação de um arcabouço normativo, paralelo às negociações multilaterais, para fomentar o avanço gradual do livre comércio por meio de sistemas de preferências comercias: o Sistema Geral de Preferências (SGP) e o Sistema Geral de Preferencias Comerciais (SGPC).

Tanto o SGP quanto o SGPC são regidos pela Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, em inglês). Enquanto o SGP trata de concessões tarifárias unilaterais dos países desenvolvidos aos países em desenvolvimento sem a necessidade de estendê-las aos demais países membros da OMC, o SGPC regula as concessões tarifárias entre os países em desenvolvimento. Dessa forma, tanto o SGP quanto o SGPC consolidaram-se como uma exceção ao princípio basilar da não discriminação.

No que tange à dimensão histórica recente dos acordos comerciais, é possível identificar três grandes ondas de regionalismo comercial.[1] A primeira onda de regionalismo comercial foi marcada pelo início do processo de unificação da Europa por meio da criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), em 1951, seguida da formação da Comunidade Econômica Europeia (CEE) em 1957. Tais experimentos tiveram influência, por exemplo, na criação de Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC) em 1960.

Durante a segunda onda, mais países aderiram à CEE, que, em 1993, com a assinatura do Tratado de Maastricht, passou a se denominar Comunidade Europeia (CE). O avanço da CE em direção aos países da Europa Oriental (satélites da antiga União Soviética) levou os Estados Unidos a abandonarem seu tradicional apreço pelas negociações multilaterais no âmbito do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, em inglês), da OMC, e a firmar um acordo bilateral com o Canadá (1988), que, em seguida, foi estendido ao México, em 1990, consumando, assim, a criação do North American Free Trade Agreement (NAFTA). Nesse mesmo período, tem-se, na América do Sul, a criação do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e da Comunidade Andina; na África e na Ásia, muitos outros acordos análogos foram firmados.

Por fim, o terceiro momento tem sido caracterizado pela influência dos Estados Unidos e da União Europeia. No entanto, a peculiaridade desse momento mais atual recai justamente sobre a participação dos países asiáticos, tradicionais apoiadores das negociações comerciais multilaterais no âmbito da OMC. Além da crise financeira de 1997 e do fracasso das negociações da OMC de 1999 em Seattle (EUA), a proliferação de acordos regionais na Ásia deveu-se, também, ao intenso processo de integração produtiva ocorrido na região, nos últimos anos.

Os acordos multilaterais da OMC caracterizam-se pela sua amplitude, por seus efeitos vinculantes e por incorporarem temas complexos, como o setor de serviços, os investimentos estrangeiros e a propriedade intelectual. Essa abrangência se deve ao rearranjo do sistema produtivo global nas últimas décadas, que demanda um comércio cada vez mais aberto e menos discriminatório.

No que diz respeito ao acesso aos mercados, os Acordos Preferenciais de Comércio (APCs) visam à redução e ou à eliminação das tarifas de importação, assim como à eliminação das barreiras não tarifárias. Já a regulação do comércio internacional trata da incorporação de regras do comércio internacional estabelecidas no âmbito da OMC (OMC-in), do aprofundamento dessas mesmas regras (OMC-plus) e da incorporação de regras ainda não contempladas pela OMC (OMC-extra). Desse modo, é possível perceber a dimensão regulatória dos APCs como condição necessária ou mesmo como uma estratégia deliberada para a inserção dos países na cadeia de produção global.[2]

Dentro desse contexto, o World Trade Report 2011, da OMC, destaca que os Acordos Regionais de Comércio que envolvem dois ou mais países de distintas regiões geográficas passaram a ser denominados Acordos Preferenciais de Comércio. Isso se deve ao fato de que os sistemas de preferências unilaterais (SGP e SGPC), assim como os demais acordos sem reciprocidade, se enquadram no conceito de Acordos Preferenciais de Comércio. Em fevereiro de 2016, a OMC registrou 284 acordos de comércio de bens e serviços envolvendo países de distintas regiões do mundo.

Por fim, é forçoso ressaltar que os APCs são acordos que ocorrem, também, no âmbito jurídico da OMC, contrariando, assim, o argumento sobre o eventual enfraquecimento da Organização. Os APCs, na verdade, destacam-se como uma estratégia de liberalização do comércio mundial que ocorre em paralelo à negociação multilateral da Rodada de Doha. Dessa forma, a OMC passa a oferecer dois canais de negociação para liberalização do comércio internacional: um, multilateral, que concede maior poder de barganha aos países em desenvolvimento (Rodada Doha); e outro, plurilateral, que concede maior poder de barganha aos países desenvolvidos.

Tem-se, então, que o atual cenário do comércio internacional impõe um sério desafio ao Brasil, na medida em que a negociação multilateral no âmbito da OMC, estratégia tradicional da diplomacia brasileira, vem sendo abandonada por algumas das principais potências comercias do mundo: Estados Unidos, União Europeia e Japão. Em 2013, o Presidente Barack Obama defendeu a criação da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (PTCI)[3] envolvendo os Estados Unidos e a União Europeia. No ano passado, Estados Unidos, Canadá, México, Chile, Peru, Japão, Vietnã, Brunei, Cingapura, Malásia, Austrália e Nova Zelândia firmaram o Tratado Transpacífico[4].

É importante lembrar que mesmo a negociação entre atores do mesmo porte de desenvolvimento econômico e social, como os Estados Unidos e a União Europeia, em torno do TTIP tem-se mostrado bastante complexa. No tocante ao TPP, as condições são assimétricas. Observam-se duas grandes potências comerciais (NAFTA e Japão) negociando um mega-acordo com países que possuem mercados domésticos reduzidos, com escassas alternativas do ponto de vista de suas políticas de crescimento econômico, senão a produção para o mercado externo — situação essa diametralmente oposta à do Brasil, que conta com um vasto e cobiçado mercado interno.

No que diz respeito ao Brasil, sua eventual adesão aos mega-acordos comerciais traz ao debate a discussão sobre: a flexibilização de suas leis trabalhistas; o impacto da concorrência internacional sobre os diversos segmentos industriais do Brasil; e a perda de mercado para os manufaturados brasileiros na América Latina, especialmente na América do Sul, etc. Adicionalmente, a questão cambial é uma variável central em todo esse processo e pouco discutida. Qual seria o impacto de um acordo dessa magnitude em um contexto de sobrevalorização do real para o conjunto da economia nacional?

Nesse sentido, a questão que se impõe é saber se o País está em condições para se inserir no comércio internacional via adesão aos mega-acordos comerciais. Questiona-se, também, a coesão do empresariado nacional em torno de uma política nacional para a inserção comercial do Brasil, que tradicionalmente contempla, por exemplo, subsídios federais, abertamente combatidos no comércio internacional.

Percebe-se, dessa forma, que a adesão do Brasil aos mais variados tipos de acordos comerciais passa, entre outras discussões, pela reavaliação de suas prioridades domésticas e externas. No âmbito doméstico, ressalta-se o impacto desses acordos sobre as contas externas do País, sobre o desgaste político junto a diferentes grupos empresariais com interesses conflitantes na execução da política exterior do País e sobre os interesses de trabalhadores e consumidores. No âmbito internacional, o Brasil busca uma solução conciliatória junto à Argentina no sentido de se chegar a um acordo comercial com a União Europeia sem comprometer seus objetivos junto ao Mercosul e à América do Sul, área de influência estratégica no âmbito de sua política externa.

Países com os quais o Brasil mantém Acordos Preferenciais de Comércio

PAÍSES INSTRUMENTOS SITUAÇÃO
Chile, Bolívia, Guiana, Suriname (arroz), México (inclusive setor automotivo), Peru, Equador, Colômbia, Venezuela e Cuba Acordos de Complementação Econômica do Mercosul Em vigência
Índia e Israel Acordos Preferenciais de Comércio do Mercosul Em vigência
União Aduaneira Sul-Africana (SACU, em inglês) — África do Sul, Namíbia, Botsuana, Lesoto e Suazilândia; Palestina e Egito Acordos Preferenciais de Comércio do Mercosul Em vigência
União Europeia Acordos Preferenciais de Comércio do Mercosul Em negociação

FONTE: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Acordos dos quais o Brasil é parte. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2016.


[1]    ORGANIZACIÓN MUNDIAL DEL COMERCIO.  La OMC y los acuerdos comerciales preferenciales: de la coexistencia a la coherencia. Informe sobre el Comercio Mundial 2011, Ginebra, 2011. Disponível em: . Acesso em: 9 mar. 2016.

[2]   THORTENSEN, V.; FERRAZ, L. O isolamento do Brasil em relação aos acordos e mega-acordos comerciais. Boletim de Economia e Política Internacional, Brasília, n. 16, p. 5-17, jan./abr. 2014. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2016.

[3] Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP), em inglês.

[4] Trans-Pacific Partnership (TPP) , em inglês.