Texto sob autoria de: panorama

Reforma trabalhista: um retrocesso dos direitos sociais

Em entrevista à Panorama, a juíza do trabalho Valdete Souto Severo critica a reforma trabalhista brasileira, porque entende que muitos aspectos da nova legislação violam regras da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e são um retrocesso dos direitos sociais. Valdete fala de “reforma”, entre aspas, para demarcar sua compreensão de que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi alterada substancialmente, com o objetivo de proteger apenas os empregadores, subvertendo a razão histórica pela qual existe a legislação trabalhista.

A entrevistada é Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP) e juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. É Mestre em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital, da USP, e da Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. É membro da Associação de Juízes Pela Democracia (AJD) e professora, coordenadora e diretora da Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul (Femargs).

Panorama: Como a reforma trabalhista brasileira tem sido percebida em organismos internacionais?

De modo negativo. A OIT já se pronunciou oficialmente, revelando sua preocupação com o desmanche do sistema de proteção a quem trabalha, perpetrado pela Lei 13.467/2017. Há alguns dias, inclusive, a OIT divulgou uma recomendação feita em relatório do seu Comitê de Peritos, pedindo que o Governo considere a revisão de alguns pontos da “reforma” trabalhista.

Panorama: Na sua visão, há comprometimento do País com o cumprimento de normas estabelecidas em convenções da OIT?

Sem dúvida há. A regulação sobre o trabalho intermitente, a possibilidade de ajustar individualmente a perda do intervalo, a referência ao fato de que questões relativas à jornada não são atinentes à saúde do trabalho e a dificuldade que a “reforma” cria para o acesso à justiça são todas alterações que estão na contramão das orientações da OIT em matéria de proteção ao trabalho.

Panorama: A reforma brasileira atual encontra forte inspiração na reforma espanhola, aprovada no início desta década. O que fundamenta essas flexibilizações das legislações trabalhistas no Brasil e na Europa?

A “reforma” brasileira é, na realidade, um recorte do que há de pior nas alterações legislativas neoliberais ocorridas na Espanha, em Portugal, na Itália e na Inglaterra. Vários dispositivos, de certo modo copiados de recentes legislações europeias, foram piorados, como é o caso do contrato de trabalho intermitente, que, aqui no Brasil, não tem previsão de um número mínimo de horas a serem trabalhadas por mês. As alterações relativas ao chamado “negociado sobre o legislado” não são propriamente inspiradas em leis de outros países, pois tanto a previsão legal acerca da atuação sindical quanto a realidade de atuação dos sindicatos e de intervenção do Estado na atuação coletiva são peculiares ao Brasil. E não há um fator exclusivo que explique nossa “reforma”. O texto da Lei 13.467/2017 contém alterações que são claramente reivindicações de determinados setores da economia, alterações que constituem a vontade de um pequeno grupo de juízes que, apenas após a aprovação da lei, revelou-se como formado pelos “pais da reforma”, e cópias de legislações estrangeiras. É extremamente agressiva nos âmbitos tanto material quanto processual e revela um momento de retração dos direitos sociais, que também está sendo sentido na Europa. As explicações para essa retração são múltiplas. A crise do capital é cíclica e decorre de circunstâncias que são objetivamente produzidas pelo próprio sistema — como o desemprego, a concentração de renda, o esgotamento de recursos naturais, etc. Por sua vez, os direitos sociais, notadamente os trabalhistas, constituem algo “arrancado do capital”, como escreveu Marx, algo com o que o capitalismo lida de forma tensa. Direitos sociais, em uma lógica capitalista de meritocracia e acumulação de riquezas, em uma realidade na qual as oportunidades não são e nunca serão para todos, constituem uma concessão que só é possível na medida em que não comprometa demais essa ordem excludente. É por isso que a história dos direitos sociais, e também a do Direito do Trabalho, é uma história de avanços e retrocessos. Os direitos sociais já foram considerados mecanismo de auxílio para o enfrentamento de crise econômica, como no caso da criação da OIT, em 1919, ou do New Deal, mas também já foram considerados, como hoje, “bode expiatório”, culpados dessas consequências objetivas da nossa escolha de convívio social.

Há, ainda, o fato de que a história do capital, nos últimos séculos, tem oscilado entre períodos de maior abertura democrática, em que a luta pela liberdade efetiva e pela melhor distribuição de bens ganha espaço, e períodos de avanço do discurso fascista, que é um discurso concentrador, inimigo das liberdades e, por consequência, das garantias sociais. O mundo ocidental, infelizmente, por uma série de razões que não há como serem elencadas neste espaço, está passando por uma fase conservadora, o que não se reflete apenas na “reforma” trabalhista, mas também na forma de governar e na escolha de governantes em países de diferentes tradições históricas e nas políticas de intolerância com as diferenças, entre tantos outros exemplos. Já passamos por isso, mas é evidente que, quanto mais avançamos no tempo sob a mesma forma de organização social, quanto mais aumentamos como número de seres humanos sobre a Terra, quanto menos recursos naturais e áreas de exploração temos ao nosso dispor, pior fica.

Há, ainda, o fato de que somos um país de tradição escravista e colonialista, que ainda funciona na lógica da relação senhor-escravo, na qual os direitos sociais nunca foram realmente respeitados. Basta ver a nossa dificuldade em efetivar direitos que estão há décadas na Constituição, como é o caso da garantia contra despedida arbitrária. Temos uma cultura de que o trabalhador “ganha emprego” e o empregador “dá trabalho”. É difícil lidar com o senso comum (ideologia) que habita nas relações sociais. Mesmo os trabalhadores e trabalhadoras muitas vezes acabam reproduzindo o discurso de que são gratos ao seu empregador, como se não estivessem vendendo tempo de vida por remuneração, inclusive pela absoluta impossibilidade de sobreviver de outro modo em um sistema capitalista de produção.

É importante mencionar, ainda, para que compreendamos o espectro simbólico dessa “reforma”, que ela só se torna possível em nosso país a partir da ruptura democrática operada em 2016. Bem ou mal, desde que promovemos (de modo conciliado, é verdade) a abertura democrática após os anos de chumbo da ditadura civil-militar, sabíamos quais eram as regras do jogo democrático. Não havia possibilidade concreta (tanto assim que isso não aparece em qualquer das campanhas eleitorais que disputaram as eleições, seja para o Parlamento, seja para a Presidência da República) de retirada ostensiva de direitos sociais, porque sequer havíamos alcançado o que costumamos chamar de “patamar mínimo civilizatório”. As poucas conquistas auferidas durante a última década e meia, no Brasil, endereçaram-se a uma espécie de inclusão por renda, sem que tenhamos conseguido alterar as bases e a qualidade da estrutura pública de educação, saúde, moradia e sem que conseguíssemos fazer valer a Constituição de 1988, no que tange ao sistema de proteção ao trabalho. Ainda assim, havia uma espécie de consenso, retratado no texto da Constituição, acerca da necessidade de avanços. O golpe parlamentar perpetrado em 2016 promoveu uma ruptura desse diálogo de consenso. A partir de então, tudo passou a ser permitido. As regras do jogo foram alteradas sem que houvesse sequer a preocupação de fingir que continuavam sendo respeitadas. O que vale para alguns não vale para outros. O parlamento — o mais conservador de todos os tempos no País, segundo pesquisa oficial — aprovou a “reforma” de modo sorrateiro, mudando um projeto original que tinha poucos artigos, votando, a portas fechadas, em troca de vantagens e privilégios, em uma tramitação relâmpago e completamente de costas para a vontade social. Foi mais ou menos como se a cortina caísse e nos deparássemos com uma realidade completamente diferente daquela que até então enxergávamos. Obviamente essa realidade já estava lá, há muito tempo, e tem estreita relação com a herança escravista que mencionei antes. A questão é que o disfarce que, em alguma medida, se materializava em práticas de contenção da lógica destruidora do capital foi eliminado. Agora, temos um Governo que financia campanha mentirosa em favor da reforma da Previdência, aprova portaria que praticamente autoriza trabalho em situação de escravidão, um parlamento que propõe criminalizar o aborto e que segue aprovando, quase todos os dias, leis que destroem garantias sociais, e um judiciário que não consegue realizar sua única missão: proteger e fazer valer a ordem constitucional.

Há, portanto, dentro de um movimento que é internacional e que, de certo modo, viabiliza a “reforma”, características muito particulares da ordem metabólica do capital no Brasil, e o resultado é um absurdo retrocesso.

Panorama: O debate sobre a reforma da CLT é bastante antigo e apresenta interessantes nuances, mas tem sido erroneamente retratado que apenas setores neoliberais defendem alterações. No entanto, vozes à esquerda do espectro político nacional também fazem importantes críticas ao referido código. Quais são os principais aspectos salientados pelos progressistas brasileiros?

Veja, a “reforma” da CLT não foi feita. Não há como falar em “reforma”, quando mais de 200 dispositivos são alterados e todos eles, sem exceção, têm o objetivo (declarado pelos “pais” da Lei 13.467/2017) de proteger empregadores, ou seja, subvertem a razão histórica pela qual temos uma legislação trabalhista. É como incluir no Estatuto da Criança e do Adolescente uma regra permitindo o abuso sexual em determinadas circunstâncias e seguir afirmando que se trata de regra de proteção ou dispor que os pais têm o direito de infligir castigos físicos e psicológicos às crianças e adolescentes e seguir insistindo que estamos “reformando” o estatuto da criança e do adolescente. Então, sequer é possível discutir as críticas necessárias à legislação trabalhista em um ambiente como o que estamos enfrentando, porque houve um deslocamento do discurso. O que chamamos de “reforma” (e por isso escrevo entre aspas) é um golpe cujo objetivo final é eliminar a noção que temos de Direito do Trabalho. Para que a pergunta não fique sem resposta, observo que, se tivéssemos de falar em críticas à CLT desde a perspectiva da razão histórica pela qual existem leis trabalhistas (proteger quem trabalha), teríamos de iniciar pela necessária extinção das regras sobre justa causa, que punem apenas o empregado e não são compatíveis com a lógica contratual que insistimos em utilizar no trato das relações de trabalho.

Nesse momento de investida fascista sobre os direitos trabalhistas, parece-me que não é hora de apontar os defeitos, mas sim de reconhecer as qualidades do ordenamento jurídico trabalhista, inclusive para o efeito de compreender a perversidade da destruição que a Lei 13.467/2017 pretende realizar. O processo do trabalho, por exemplo, tem regras que foram copiadas nas recentes alterações do Código de Processo Civil (CPC). Aliás, conta com uma lógica de efetividade que o CPC até hoje não alcançou. Apenas para dar um exemplo, desde a criação dos decretos de 1932 que deram origem à parte processual da CLT, contamos com um processo único, que só termina quando o bem da vida for realmente entregue ao credor, nos casos de procedência. O CPC, até 2005, separava conhecimento e execução. Então, para além dos aspectos críticos que podem ser levantados contra o texto da CLT, parece-me que o momento, estrategicamente, é de defesa desse conjunto de regras, sobretudo por sua importância simbólica. A resistência deve encaminhar-se para a revogação da Lei 13.467/2017 ou, pelo menos, a neutralização de parte dos seus efeitos nocivos.

Panorama: Após a entrada em vigor das novas regras, que alterações mais significativas são identificadas na rotina da Justiça do Trabalho?

Há uma queda no número de ações ajuizadas, que talvez não tenha a ver tanto com o receio de que as alterações processuais lesivas sejam aplicadas, mas com a expectativa natural dos atores sociais (especialmente dos advogados e das advogadas) acerca da interpretação (constitucional ou não) que será feita das novas regras. Nas audiências, percebo uma postura arrogante por parte de algumas (poucas, é verdade) grandes empresas, que invocam as alterações legislativas como verdadeiras armas contra o direito do trabalhador ou da trabalhadora. Vem crescendo, também, o número de demandas em que não há sequer pagamento das verbas resilitórias, o que faz com que o tempo do processo, muitas vezes, seja fatal, inclusive para a sobrevivência física de quem trabalha.

Antecedentes externos e implicações da reforma trabalhista para o Brasil

Após a grande crise de 2008, que teve, entre as suas causas, o avanço do neoliberalismo e de uma de suas faces mais devastadoras, a desregulamentação financeira, observa-se que muitos países vêm paradoxalmente aprofundando medidas de corte liberal, com o intuito deliberado de superar a crise. A flexibilização das leis trabalhistas impõe-se, nesse contexto, ao lado de medidas de austeridade fiscal, como parte fundamental do receituário convencional para a necessária retomada do crescimento e para o enfrentamento do desemprego. Nesta edição da Panorama Internacional FEE, apresenta-se um conjunto de artigos que buscam contextualizar o cenário mundial no qual a reforma trabalhista brasileira se insere, as implicações e as incertezas envolvidas e suas origens históricas.

A necessidade de reformar as leis trabalhistas tem sido apresentada aos países do ocidente como um caminho sem alternativas, mas a experiência internacional mostra que os benefícios dessa reforma são, no mínimo, incertos. O artigo do pesquisador em relações internacionais Ricardo Leães aborda o caso paradigmático da reforma espanhola e revela que, enquanto a precarização das relações de trabalho é uma realidade cada vez mais presente, não é certo que a geração recente de empregos no País tenha resultado da reforma. Por outro lado, os países asiáticos adotam o reformismo em ritmo próprio, como descrevem os internacionalistas Bruno Jubran e Robson Valdez. Enquanto a Coréia do Sul combina a flexibilização da legislação trabalhista com a adoção de políticas explícitas de geração de emprego, a China, de praxe, na contramão, caminha para a ampliação dos direitos trabalhistas e previdenciários, com vistas a estimular o mercado interno e dar sequência à manifesta transição do seu modelo de desenvolvimento.

No Brasil, a reforma trabalhista também passou a ser vista como um pré-requisito, ao lado do cumprimento do teto para os gastos públicos e da aprovação da reforma da previdência, para a retomada do crescimento. Contudo, a relação entre a reforma e a geração de empregos aqui também não é automática. No passado recente, o País logrou alcançar um ciclo sustentado de crescimento econômico, com taxas de desemprego margeando as mínimas históricas, em conjunto com uma série de transformações na estrutura do mercado de trabalho que começaram a romper antigos padrões, como o aumento da formalização e a redução das desigualdades salariais entre negros e não negros e entre homens e mulheres. Tudo isso foi alcançado sem alterações profundas na legislação trabalhista. Sabe-se que tal cenário foi possibilitado por um ambiente externo favorável, que dificilmente se repetirá nos próximos anos. As reformas, então, seriam o único caminho para a retomada do crescimento?

Em seu artigo, os pesquisadores em economia Iracema Castelo Branco e Alessandro Donadio Miebach apresentam os principais aspectos da reforma trabalhista brasileira. De um lado, os que a defendem argumentam que formas mais flexíveis de negociação, inclusive para o estabelecimento da jornada de trabalho, e a redução das incertezas jurisdicionais contribuem para estimular a competitividade, ampliando as oportunidades para todos, não apenas para os incluídos no mercado formal, além de evitar ajustes quantitativos no emprego, nos períodos de crise. De outro, os críticos assinalam que a reforma aumenta a insegurança dos empregados, ao possibilitar a redução dos salários e o aumento da carga de trabalho (por vezes, unilateralmente), com previsíveis consequências negativas, não apenas para o bem-estar dos trabalhadores, mas também para a expansão do mercado interno e para o próprio crescimento econômico. Para além do debate econômico, os autores apontam as incertezas jurídicas que permanecem no horizonte e que só serão dirimidas após o andamento dos processos, a possibilidade de que uma parcela dos trabalhadores passe a auferir remunerações mensais inferiores ao salário mínimo (devido à formalização do trabalho intermitente), e o reflexo disso na arrecadação da previdência social, e as dificuldades criadas para os sindicatos e para o acesso dos trabalhadores à justiça.

As leis trabalhistas, em conjunto com a liberdade de associação sindical, buscam equilibrar uma relação de forças entre empregadores e trabalhadores que é naturalmente desigual nas sociedades capitalistas. Se bem calibrado, esse conjunto de regras contribui para a preservação de uma existência digna dos trabalhadores, não somente no que diz respeito ao acesso a bens de consumo, mas também ao seu reconhecimento como sujeitos e parte de uma sociedade, ao mesmo tempo em que preserva o estímulo à expansão econômica e à criação de empregos.

Alguns ajustes nas leis brasileiras talvez pudessem ser profícuos diante das mudanças que ocorrem no mundo do trabalho. O artigo do historiador Rodrigo Weimer revela que a legislação trabalhista brasileira começou a ser desenhada mesmo antes da sua consolidação na “bíblia do trabalhador” (designação popular para a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)) e que, desde então, vem sendo ajustada. O alcance e a profundidade das mudanças aprovadas no governo de Michel Temer, porém, não encontram paralelo no passado. A conjunção de forças atualmente no poder deixa dúvidas sobre se o objetivo da reforma aprovada é flexibilizar as regras para dar mais dinamismo à economia ou desequilibrar a balança das relações entre o capital e o trabalho. Para a entrevistada desta edição, a juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 4.a Região (TRT4) Valdete Souto Severo, não há dúvidas: “a ‘reforma’ da CLT não foi feita. Não há como falar em ‘reforma’ quando mais de 200 dispositivos são alterados, e todos eles, sem exceção, têm o objetivo declarado de proteger os empregadores”.

Boa leitura!

Mudanças climáticas: desafios globais exigem soluções globais

Catherine Tinker é Professora Associada visitante na Escola de Diplomacia e Relações Internacionais da Seton Hall University, onde leciona as disciplinas de Direito Internacional e Legislação Ambiental Internacional. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito da George Washington University, realizou mestrado e doutorado em Direito Internacional na Faculdade de Direito da New York University. É fundadora e representante do Tinker Institute on International Law and Organizations (TIILO), localizado na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque. Suas temáticas principais de pesquisa são direito internacional, desenvolvimento sustentável, ONU e Lei das Águas.

Em entrevista à Panorama, a pesquisadora norte-americana avalia quais elementos influenciam as políticas internacionais em relação às mudanças climáticas e como a comunidade internacional situa o debate em torno do assunto. Catherine comenta as consequências da saída dos EUA do Acordo de Paris, um dos instrumentos jurídicos internacionais mais importantes sobre mudanças climáticas. Além disso, avalia que os países exportadores de petróleo deveriam substitui-lo por fontes alternativas de energia.

Panorama: Como o capital, o Estado e as relações de trabalho influenciam a capacidade dos países de alcançar seus objetivos na agenda internacional de mudanças climáticas?

O capital, as regras e as leis do Estado e as relações de trabalho são todos elementos cruciais de qualquer política que pretenda lidar com os complexos desafios impostos pelas mudanças climáticas e limitar as elevações da temperatura média global resultante das emissões contínuas de gases de efeito estufa (GEE). Segundo projeções, os efeitos das mudanças climáticas, como condições climáticas extremas (secas, inundações), aumento do nível do mar e acidificação do oceano, podem ameaçar a segurança alimentar em todo o globo, o que pode afastar mais pessoas de seus lares na busca por sobrevivência, além de extinguir espécies e alterar os ecossistemas. As forças de mercado estão respondendo à escassez de recursos naturais e à necessidade de mudar padrões de consumo e produção, com vistas à sustentabilidade. É claro que nenhuma entidade sozinha — nacional, individual, privada ou pública — pode alcançar o delicado equilíbrio necessário para adaptar ou mitigar os efeitos das mudanças climáticas ou limitar as emissões de GEE. É aqui que entra o direito internacional baseado na boa ciência.

O debate tem-se alterado desde as décadas de 60 e 70, quando a soberania sobre os recursos naturais era suprema, e os princípios do direito internacional, como o das “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, permitiram que países em desenvolvimento postergassem seu comprometimento às regras e aos padrões internacionais, ao passo que os países desenvolvidos assumiam os custos do problema. Algumas razões de ordem prática, mas também históricas e de equidade, levaram a essa abordagem e produziram alguns resultados: o progresso na solução da poluição global, em muitas regiões, os avanços tecnológicos e o entendimento científico sobre as causas e os efeitos nos sistemas naturais. Hoje há um sentido maior de responsabilidades compartilhadas em um nível mundial, e os princípios do direito internacional, como o “princípio ou abordagem da precaução”, suscitam maior cuidado quando existe a incerteza científica sobre os efeitos das atividades humanas intencionais sobre o meio ambiente. Os complexos desafios globais requerem soluções globais, e a participação e o compromisso de todos os estados são necessários para que sejam dados, nas próximas uma ou duas décadas, os passos que protegerão a vida na Terra para as gerações futuras.

A ciência da mudança climática foi elaborada em cinco relatórios consensuais do Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), nos últimos 25 anos. O IPCC, ao valer-se de métodos científicos para o exame de hipóteses e de projeções e para a publicação de resultados, alcançou um espaço consensual entre cientistas conceituados em todo o mundo. O órgão concluiu, em seu último relatório, que “as projeções de emissões de gás do efeito-estufa [dióxido de carbono, óxido nitroso e outros, os quais determinam o aquecimento global] apresentam um amplo espectro variável, dependendo tanto do desenvolvimento socioeconômico como da política climática. As emissões antropogênicas de GEE dependem principalmente do tamanho da população, da atividade econômica, do estilo de vida, do uso da energia, dos padrões de uso da terra, da tecnologia e da política climática”

Panorama: Atualmente, existem três instrumentos principais que se dedicam a criar padrões e normas para mitigar as emissões globais de GEE, quais sejam: a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês), o Protocolo de Quioto e o Acordo de Paris. Como você observa a evolução do debate sobre as mudanças climáticas e os passos dados pela comunidade internacional no sentido de apresentar um plano razoável de enfrentamento aos desafios impostos pelo aquecimento global?

O primeiro instrumento de direito internacional dedicado a criar padrões e normas para reduzir as emissões globais de GEE foi o tratado das mudanças climáticas, resultante da Convenção da ONU sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês), que entrou em vigor em 1994, após ter sido aberto para assinaturas no Rio de Janeiro, durante a Convenção da Terra, em 1992. Existem, no momento, 197 estados-membros da UNFCCC, que apresenta ratificação quase universal.[1]

O Protocolo de Quioto, com 192 estados-parte, inclusive a União Europeia (UE), é praticamente tão universal quanto a Convenção-Quadro, que o viabiliza e apoia. O Protocolo de Quioto[2] entrou em vigor em 2005 e voltava-se, inicialmente, a determinados países desenvolvidos, com o estabelecimento de metas específicas para a redução de emissão de GEE. Esse documento estabelecia que 37 países desenvolvidos e a UE limitassem suas emissões de GEE e tomassem outras medidas, mas desobrigava 100 países em desenvolvimento, inclusive a China e a Índia, da meta de redução de 5% em relação aos níveis de 1990. Quando o Protocolo de Quioto foi estendido a 2020, foi determinado que os países em desenvolvimento assumissem responsabilidades de diminuir suas emissões de GEE em, pelo menos, 18% abaixo dos níveis de 1990 durante o período entre 2013 e 2020; além disso, alguns GEE foram incluídos no Anexo.

A partir de 2015, com a extensão do Protocolo de Quioto até 2020, houve uma maior ênfase tanto na responsabilidade dos países em desenvolvimento quanto na dos países desenvolvidos. Alguns países altamente industrializados que haviam ratificado o Protocolo de Quioto original se desvincularam, inclusive o Canadá, sob a justificativa de que o Protocolo seria ineficaz sem os EUA e a China. Ainda assim, com diferentes membros, o Protocolo foi estendido até 2020, inclusive com a adesão da China. De acordo com o Protocolo, os países atingem metas por meio de medidas nacionais, com a ajuda adicional de três mecanismos que se baseiam em uma lógica de mercado: o comércio internacional de emissões, o mecanismo de desenvolvimento limpo e a implementação conjunta.

O Acordo de Paris, o terceiro instrumento jurídico internacional sobre mudanças climáticas, foi um triunfo diplomático que envolveu diversos atores em um processo iniciado muito antes de a conferência ter ocorrido, em dezembro de 2015, em Paris. Uma das metas do Acordo de Paris é limitar o aumento da temperatura global em até 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais, se possível.[3] Existem, no momento, 160 estados-parte do Acordo de Paris, o qual entrou em vigor em 2016. O desafio agora é saber como os estados manterão seus compromissos e se as medidas prometidas serão adequadas e suficientemente precisas para prevenir desastres em uma escala sem precedentes, caso as temperaturas globais continuem a aumentar e as emissões globais de GEE não sejam adequadamente reduzidas.

Diversos fatores, como uma liderança habilidosa, uma preparação extensa, por meio de uma série de reuniões e conferências regionais, nacionais e locais da ONU, e o uso de mídias sociais e da Internet para atingir um público abrangente, contribuíram para o sucesso da Conferência das Partes, em Paris, no âmbito da UNFCCC, que culminou na assinatura do Acordo de Paris. Um grupo abrangente e influente de representantes do setor privado, tanto de corporações multinacionais como de pequenas e médias empresas, além de representantes de governos locais e nacionais, de grupos da sociedade civil, de organizações regionais e globais, de cientistas e estudiosos esteve presente em Paris e contribuiu para o avanço das promessas feitas nas Contribuições Pretendidas Nacionalmente Determinadas (INDC, na sigla em inglês). Essa ampla participação resultou em um documento forte e em um senso de apropriação dos compromissos necessários para a implementação do acordo. Os comprometimentos voluntários por parte dos 155 governos nacionais em suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC, na sigla em inglês) serão revisados a cada cinco anos e publicados no registro de NDC (ínterim).[4]

A UNFCCC e seu Protocolo de Quioto, somados aos comprometimentos do Acordo de Paris, de 2015, apresentam, em seu conjunto, o potencial de alcançar sucesso global nas metas e as consequências terríveis de não conseguir alcançá-las de forma global.

Panorama: A UNFCCC estabeleceu uma lista de países industrializados que deveriam se comprometer com regras mais rigorosas nas emissões de GEE. Entretanto, alguns países em desenvolvimento têm aumentado suas emissões desde meados da década de 90, em especial, a China, a Índia e também alguns grandes produtores de petróleo, como a Arábia Saudita. Tendo-se em mente a saída dos EUA e do Canadá do Protocolo de Quioto, como será possível para os países mais industrializados engajarem o mundo em desenvolvimento no regime de mudanças climáticas?

Os países em desenvolvimento, como a China, a Índia e a Arábia Saudita, estão lidando com suas próprias decisões políticas, as quais contribuíram para a adoção das Metas de Desenvolvimento Sustentável no âmbito da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que inclui a Meta 13 sobre mudanças climáticas, que reconhece a UNFCCC como o vetor primordial do direito internacional de mudanças climáticas. O consenso nesses encontros globais e os documentos resultantes mostram que os Estados compreendem que a saúde, a erradicação da pobreza e a sobrevivência ambiental dependem do desenvolvimento sustentável. A velocidade e o nível de crescimento da população nos maiores países em desenvolvimento atestam para a urgência de sua participação; por exemplo, a quantidade de emissões de GEE na China é aproximadamente a mesma que a dos EUA e está aumentando na Índia. Além disso, os países exportadores de petróleo deveriam ser sensatos e reconhecer que o petróleo é uma fonte não renovável de energia e substituí-lo por soluções alternativas, juntando-se a algumas empresas do setor de petróleo e gás que estão diversificando seu portfólio de investimentos, ao incluir fontes energéticas limpas e renováveis. São os países que estão se industrializando e se desenvolvendo rapidamente que precisam lidar com as causas e com os efeitos das mudanças climáticas para seus próprios cidadãos e para o mundo e adotar políticas, regras e leis que reduzam as emissões de GEE e incentivem a busca por novas tecnologias e por fontes energéticas de baixo custo e livres de carbono. Os mecanismos de mercado permitem que países em desenvolvimento participem dos sistemas de comércio de carbono, com o objetivo de reduzi-lo na atmosfera e alcançar a “neutralidade de carbono” no mundo todo.

O financiamento para a mitigação das mudanças climáticas e a adequação em países em desenvolvimento foi criado no âmbito da UNFCCC por meio da Global Environment Facility (GEF) e a alocação complementar de verbas em países em desenvolvimento será disponibilizada pelo Acordo de Paris, por volta de 2020, em um total de US$ 100 milhões. Uma série de parcerias público-privadas foram criadas por meio da ONU e de outras iniciativas para auxiliar os países a cumprirem seus compromissos diante das mudanças climáticas e de seus efeitos, como os desastres naturais que matam pessoas e animais, destroem cidades e vilas e que requerem resgates onerosos e reconstrução de infraestruturas, empresas e indústrias.

Panorama: Quais são as consequências da saída dos EUA do Acordo de Paris tanto para os objetivos de mudanças climáticas do próprio acordo quanto para a ampla diplomacia em torno do Acordo de Paris?

As consequências da saída norte-americana do acordo de Paris são lamentáveis, mas não devem ser superestimadas. Muitas medidas têm sido tomadas pela grande maioria dos países altamente industrializados como os EUA e os estados-membros da EU, ao longo das últimas décadas, para atingir maior eficiência em combustíveis, máquinas, equipamentos, automóveis e fabricações, e tem-se avançado na redução da poluição advinda de operações industriais e municipais, na pesquisa por fontes de energia alternativas e na redução da dependência de combustíveis fósseis. O Acordo de Paris baseia-se em referências novas e mais autodefinidas, para que todos os países contribuam mais para a redução das emissões de carbono e para o enfrentamento da mudança climática. Por meio disso, o Acordo de Paris envolveu cada país no processo, mesmo que nem todos os estados tenham ratificado o acordo até o momento. Nos EUA, que são um sistema federal como o Brasil, as promessas nacionais realizadas em Paris estabeleceram padrões que devem ser implementados por estados individuais. Existem já muitos esforços para reduzir as emissões de GEE nos níveis regional, estadual e municipal nos EUA que não serão afetados pela desvinculação do Governo nacional do Acordo de Paris, como, por exemplo, a Califórnia e suas severas restrições às emissões de GEE e suas exigências rigorosas para os equipamentos automotivos. Um outro exemplo é a Iniciativa Regional do Nordeste para os Gases Estufa (RGGI, na sigla em inglês)[5] na Nova Inglaterra e nos estados do Médio Atlântico, o primeiro programa obrigatório baseado no mercado nos EUA. Desde 2009, opera de forma exitosa, ao colocar um preço no carbono e ao estabelecer um orçamento regional para emissões de CO2 a partir do setor energético. Esses programas demonstram que os sistemas de limitação e comércio (cap-and-trade) podem tanto reduzir as emissões de carbono como resultar em crescimento econômico em dada região. No nível municipal, o plano OneNYC[6], da Cidade de Nova Iorque, trata das reduções de emissões de GEE, da mitigação e da adaptação aos efeitos das mudanças climáticas e das importantes medidas de resiliência nas áreas costeiras, para obter uma redução do risco de desastres decorrentes das mudanças climáticas.

Panorama: Como a sociedade norte-americana tem reagido à decisão dos Estados Unidos de sair do Acordo de Paris?

Em junho de 2017, o Presidente Trump anunciou a saída norte-americana do Acordo de Paris[7], em prol de negociações que fossem retomadas ou discutidas em novos termos considerados mais favoráveis aos EUA. Em seguida, com a Ordem Executiva de Independência Energética [8], o Presidente Trump ordenou à Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA, em sua sigla em inglês) rever o Plano de Energia Limpa do Presidente Barack Obama[9], com a possibilidade de suspender o plano completamente ou de modificá-lo após sua revisão. O Plano de Energia Limpa foi desenvolvido antes da Conferência de Paris, em 2015, para substituir o uso de carvão e petróleo em usinas de geração de energia nos EUA por fontes renováveis de energia, para que o País pudesse cumprir seu compromisso assumido no NDC, no âmbito do Acordo de Paris. Com esse compromisso, os EUA encorajavam outros países a elaborar promessas ambiciosas em Paris. Uma Organização Não Governamental (ONG) americana, a Environmental Defense Fund, estimava que, se fosse completamente executado, o Plano de Energia Limpa reduziria as emissões de GEE do setor energético para 32% abaixo dos níveis de 2005. O setor de petróleo e gás se opõe.

Um ano antes da Ordem Executiva de 2017, por parte do Presidente Trump, a realização do Plano de Energia Limpa do Presidente Obama, em 2016, foi desafiada por 29 governos e agências estaduais, com o apoio de grupos setoriais e empresas públicas. Nessa ação, o Plano foi defendido por um conjunto de 14 grupos ambientais, de saúde pública e outros. Sua execução foi suspensa pela Corte Suprema dos EUA e remetida ao Tribunal de Apelação do Circuito Federal. Até o dia 8 de agosto de 2017, esse tribunal manteve a suspensão por 60 dias adicionais, o que significa que a Agência de Proteção ambiental dos EUA não pode continuar com suas atividades de desenvolver e executar o Plano de Energia Limpa. Esse caso desafia a autoridade da Agência de Proteção Ambiental Federal de regular as emissões de GEE oriundas de usinas energéticas nos EUA com base no Ato do Ar Limpo (Clean Air Act), uma lei de proteção ambiental aprovada em 1970 e revisada em 1990. Os procedimentos legislativos federais realizam-se para revisar o poder das agências de executar leis aprovadas pelo Congresso, e, nesse caso, incluirão uma revisão da ciência das mudanças climáticas da qual a agência se valeu para criar as normas.[10] O chefe da EPA anunciou um plano para “os três Es”[11]: meio ambiente (proteção), economia (regras sensíveis que permitem o crescimento econômico) e engajamento (com parceiros estaduais e locais).[12] Nesse sentido, o anúncio de que os EUA estavam se retirando do acordo de Paris não foi uma surpresa para muitos, uma vez que a suspensão do Plano de Energia Limpa proposto pelo Presidente Obama interferia nos instrumentos fundamentais para o cumprimento dos compromissos dos EUA em Paris.

No final de agosto de 2017, um grupo de assessoria em mudanças climáticas foi dissolvido pelo Presidente Trump. O grupo, composto por representantes de 17 agências federais, tinha a tarefa de elaborar, para o governo norte-americano, um relatório científico com recomendações baseadas em consensos científicos, um documento que já havia sido produzido quatro vezes no passado. Um esboço do quinto Relatório Nacional de Avaliação em mudanças climáticas (CSSR, na sigla em inglês) circulou em junho de 2017, pouco antes de o grupo ser dissolvido. O esboço  não foi publicado, mas uma cópia chegou aos meios de comunicação.[13] Ela demonstrava os efeitos das mudanças climáticas em diferentes cenários e fazia previsões sobre a responsabilidade das atividades humanas pelo aumento das emissões de dióxido de carbono e outros GEE. Esperava-se que o relatório fosse aprovado e lançado pelo Governo em 2018. O projeto do relatório não está disponível no site da EPA; entretanto, o site apresenta algumas informações técnicas com indicadores de mudança climática.[14]

A sociedade americana tem reagido de diversas maneiras, com ações jurídicas contestatórias em tribunais e no Congresso, com reuniões públicas realizadas por um amplo conjunto de organizações não governamentais e governos locais e com manifestações nas ruas. Apesar dos desdobramentos no nível nacional, indivíduos e comunidades locais, assim como alguns estados nos EUA, continuam esforçando-se para reduzir os custos e o uso de energia, desenvolver fontes alternativas de energia e combiná-las com combustíveis fósseis e gás natural e manterem-se  participando de pactos regionais e locais. A responsabilidade individual e as escolhas de estilos de vida pessoais continuam a ser relevantes para muitos, especialmente para os jovens, cujo futuro se encontra em risco. Não conseguir renovar os subsídios governamentais para energia solar em alguma legislação nacional recente poderá impactar negativamente o crescimento da indústria nos EUA e aumentar o custo do uso de energia solar para geração de eletricidade. As pessoas que escolheram instalar painéis solares receberam créditos em impostos em muitos estados e produziram energia, o que reduziu seus custos com eletricidade; acabar com os créditos nos impostos poderia diminuir o incentivo à expansão da energia solar ou, no mínimo, aumentar seu custo para uso. Ainda assim, os subsídios e os créditos de impostos continuam na lei federal para o desenvolvimento da energia eólica nos EUA.

O resultado da situação doméstica dos EUA, em um sentido mais amplo, afetará a maneira pela qual as políticas e as leis nacionais são criadas e implementadas tanto em termos de mudança climática como em todas as outras questões e impactarão a participação dos EUA em diversas conferências ou iniciativas internacionais ou regionais, assim como sua observância aos instrumentos de direito internacional.


[1] Disponível em: <http://unfccc.int/essential_background/convention/items/6036.php>. Acesso em: 23 ago. 2017.

[2] Disponível em: <http://unfccc.int/kyoto_protocol/items/2830.php>. Acesso em: 23 ago. 2017. Note que os EUA não participaram das negociações do Protocolo de Quioto a partir de 2001 e, oficialmente, não fazem parte de nenhuma reunião ou têm qualquer obrigação.

[3] Disponível em: <http://unfccc.int/paris_agreement/items/9485.php>. Acesso em: 23 ago. 2017.

[4] Disponível em: <http://www4.unfccc.int/ndcregistry/Pages/Home.aspx>. Acesso em: 23 ago. de 2017.

[5] Disponível em: <https://www.rggi.org/>. Acesso em: 23 ago. 2017.

[6] Disponível em: <https://onenyc.cityofnewyork.us/>. Acesso em: 23 ago. 2017.

[7] Disponível em: <https://www.whitehouse.gov/blog/2017/06/01/president-donald-j-trump-announces-us-withdrawal-paris-climate-accord>. Acesso em: 23 ago. 2017.

[8] “Executive Order on Energy Independence”, assinado em 28 de março de 2017. Disponível em: <https://www.epa.gov/Energy-Independence>. Acesso em: 23 ago. 2017.

[9] “Carbon Pollution Emission Guidelines for Existing Stationary Sources: Electric Utility Generating Units,” 80 Fed. Reg. 64,662 (23 de outubro de 2015)

[10]  Disponível em: <https://www.epa.gov/Energy-Independence>. Acesso em: 20 ago. 2017.

[11] Os termos originais em inglês são environment, economy e engagement.

[12] Disponível em: <https://www.epa.gov/home/back-basics-agenda>. Acesso em: 23 ago. 2017.

[13] Disponível em: <https://www.nytimes.com/interactive/2017/08/07/climate/document-Draft-of-the-Climate-Science-Special-Report.html?mcubz=3>. Acesso em: 23 ago. 2017.

[14] Disponível em: <https://www.epa.gov/climate-indicators>. Acesso em: 23 ago. 2017.

Entrevista: Acordo comercial entre Mercosul e União Europeia em debate

O acordo de livre-comércio entre o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a União Europeia (UE) é tema de discussões tanto na academia quanto no plano empresarial. Para estimular o debate, a Panorama Internacional convidou dois entrevistados para responderem a questões que ajudam a compreender o assunto. O consultor internacional de empresas Frederico Behrends avalia que, apesar dos entraves, o acordo pode ter um entendimento político até o fim deste ano, para ser implantado em 2018. Já o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Luiz Augusto Faria entende que o Brasil hoje tem a vantagem da preferência comercial com a América Latina, o que seria colocado em xeque, caso se concretizasse o acordo de livre-comércio com a UE.

Conheça abaixo os entrevistados desta edição:

Frederico L. Behrends é consultor internacional de empresas e possui mais de 40 anos de experiência em comércio exterior. Químico industrial formado pela Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é conselheiro e consultor do Conselho de Comércio Exterior (Concex) da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (FIERGS), coordenador do Grupo Temático de Negociações Internacionais (GTNI) da FIERGS e conselheiro de comércio exterior (Comex) da Federação do Comércio (Fecomércio). Foi professor de vários Cursos de Pós-Graduação em Comércio Exterior, em instituições como UFRGS, Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), Universidade de Caxias do Sul (UCS) e Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

Luiz Augusto Faria é Professor Associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais e nos cursos de graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais. Possui graduação em Ciências Econômicas e mestrado e doutorado em Economia pela UFRGS. Foi pesquisador da Fundação de Economia e Estatística (FEE) entre 1982 e 2014. Pesquisa Economia Política e Economia Internacional e atua principalmente nas análises de economia brasileira, integração econômica, globalização e relações exteriores do Brasil e do Mercado Comum do Sul (Mercosul).

Panorama: Em 2015, as grandes empresas foram responsáveis por 94,35% do valor exportado. Desse total, 244 delas exportaram US$ 145,64 bilhões. Como conciliar os interesses de um pequeno, mas importante, grupo de empresas exportadoras com os interesses das demais empresas nacionais que atuam especificamente no mercado doméstico brasileiro?

Frederico L. Behrends: Existe um mecanismo de consulta ao setor privado, no que diz respeito às negociações internacionais feitas pelo Governo brasileiro, chamado Coalizão Empresarial Brasileira (CEB). A CEB, cuja coordenação é da Confederação Nacional da Indústria, é composta por entidades de classes, como associações, federações e sindicatos patronais, que buscam influenciar as estratégias brasileiras de integração internacional, representando o interesse das empresas de sua base, incluindo também as pequenas e médias empresas. Conciliar o interesse de um universo tão heterogêneo de empresas certamente não é uma tarefa das mais fáceis. As dificuldades da harmonização das listas de ofertas é um desafio inerente a todos os países, especialmente àqueles que negociam como blocos. Entretanto, é preciso que se busque um entendimento que possa beneficiar as empresas brasileiras, independentemente do porte. Com relação às empresas brasileiras que atuam somente no mercado doméstico, um acordo dessa magnitude fará com que reflitam sobre sua estratégia de atuação, devido ao aumento acentuado de entrada de produtos europeus. Será primordial que essas empresas busquem parcerias, invistam em tecnologia para seus produtos e na melhoria nos processos de produção, para aumentar sua competitividade. Hoje as empresas brasileiras possuem uma espécie de “redoma” tarifária no Brasil, que as protege com alíquota média de importação de 11%.

Luiz Augusto Faria: A concentração econômica é uma tendência natural do capitalismo, que só pode ser modificada por políticas específicas. A Europa as tem consolidado há décadas, como exemplificam a Política Agrícola Comum e a Política de Desenvolvimento Regional, os dois maiores orçamentos da União Europeia (UE). Nesses dois casos, há uma intenção de dirigir esforços para o desenvolvimento de pequenas empresas, seja por meio da agricultura familiar, seja pelos arranjos produtivos locais, com redes de colaboração entre pequenas firmas. No Mercosul, existe um espaço para o que aqui chamamos de PyMEs (pequenas e médias empresas), em que se procura concentrar políticas de promoção desses segmentos. Mas, para isso, é preciso iniciativa política. Por exemplo, o acordo automotivo foi muito favorável às grandes montadoras, que tiveram ganhos de escala e especialização, mas foi muito ruim para os fornecedores de componentes locais, em grande parte, tragados pelo avanço de fornecedores multinacionais. Impedir que isso se repita exige não apenas requisitos de conteúdo regional mas também crédito e outras formas de incentivo.

Panorama: A negociação de um acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia se estende por mais de duas décadas. Qual o principal entrave para a celebração desse acordo?

Frederico L. Behrends: O acordo passou por diversos obstáculos ao longo dessas últimas duas décadas. Iniciadas as tratativas, em 1999, as negociações do acordo ficaram paralisadas entre 2004 e 2010, quando houve o relançamento durante a cúpula Mercosul-UE. Desde 2010, importantes movimentos foram feitos, mas em uma velocidade bastante lenta, muito em razão da falta de interesse dos Governos brasileiro e argentino à época. O foco da política comercial brasileira, por exemplo, estava distante da negociação de acordos de livre-comércio, que, quando eram eventualmente celebrados, envolviam países com baixa relevância e potencial de intercâmbio. Além disso, houve também um receio da indústria de manufaturados em relação à possibilidade de entrada de produtos europeus de melhor qualidade. Por outro lado, os produtores agropecuários sempre vislumbraram, na conclusão do acordo, uma grande oportunidade de vender para os europeus — um mercado superior a 500 milhões de consumidores. Hoje, com a mudança na postura dos Governos do Brasil e da Argentina, que se aproximam mais de países com maior relevância econômica, e um maior interesse dos europeus, a partir da negativa dos EUA ao acordo Transatlântico, existe a possibilidade de o acordo ter um entendimento político até o fim deste ano, com a implementação sendo feita em 2018.

Luiz Augusto Faria: As negociações tiveram início na última década do século passado, em um ambiente político dominado pelas ideias do liberalismo comercial, uma crença que vê, no aumento dos fluxos de importações e exportações, um benefício para a sociedade per se. Desde então, muita coisa mudou. O Mercosul assumiu uma posição cética em relação ao livre mercado e adotou políticas de promoção do desenvolvimento regional. Além disso, houve a crise de 2008 e a estagnação econômica da Europa. Afora essas mudanças, desde o início, o foco das discussões está no acesso aos mercados de ambas as partes. Os europeus querem maior participação em serviços e produtos industriais, e nós enfrentamos a muralha do protecionismo da política agrícola da União Europeia. Há pouca margem de concessão, por isso, a dificuldade. Além disso, a importância do mercado europeu para a América do Sul é declinante desde o final do século XX. Nosso maior parceiro hoje é a Ásia, com a China à frente.

Panorama: A América Latina, em seu conjunto, é um dos principais destinos das exportações brasileiras de manufaturados e semimanufaturados. Adicionalmente, o consumo doméstico tem uma relevância consistente na formação do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Nesse sentido, em que medida um acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia beneficiaria o Brasil?

Frederico L. Behrends: Um dos principais fatores que tornou o mercado da América Latina tão importante e com tanto potencial, principalmente para o setor industrial brasileiro, é que, ao longo das últimas três décadas, foram negociadas as preferências tarifárias regionais com diversos países no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), além de importantes acordos de complementação econômica, como, por exemplo, os assinados entre o México, o Peru e o Chile. Atualmente, a União Europeia é a principal parceira comercial do Brasil, com um intercâmbio de produtos superior a US$ 64 bilhões, 1/5 do total. A participação das exportações de produtos industrializados para a União Europeia cresceu, em média, 3,6 pontos percentuais nos últimos dois anos. A conclusão do acordo de livre-comércio entre o Mercosul e o bloco europeu, além de ser uma boa oportunidade para a indústria de transformação buscar aprimorar sua competitividade, no que diz respeito tanto à tecnologia como também a processos e governança, traria um benefício muito grande aos setores agroindustrial e de máquinas e implementos agrícolas, uma indústria muito importante para o nosso Estado. Portanto, o impacto de um mega-acordo desse porte é bastante grande e é fundamental que tanto o Governo — a partir da realização de reformas estruturais e investimentos em infraestrutura — quanto as empresas preparem-se para a abertura de mercado que o País realizará nos próximos anos.

Luiz Augusto Faria: O Brasil exporta para a América Latina produtos industrializados de maior valor agregado e, para a Europa, produtos básicos. Não foi assim no passado recente, quando também exportávamos para a Europa e os EUA bens industrializados. Foi o uso da taxa de câmbio como instrumento contra a inflação que retirou competitividade da nossa indústria. Nas últimas duas ou três décadas, fomos perdendo mercado para os países asiáticos. Enquanto a taxa de câmbio for mantida no patamar valorizado dos últimos anos, não há muita perspectiva de ganharmos competividade no setor industrial e, muito menos, no de serviços. O que temos hoje é a vantagem da preferência comercial com nossos vizinhos, o que um acordo de livre-comércio, seja com a UE, seja com os EUA, poria em xeque. A perda de competitividade pelo câmbio apreciado já consumou um retrocesso muito grande na composição de nossos fluxos de comércio. Voltamos a trocar matérias-primas por produtos de maior conteúdo tecnológico. Além disso, mesmo no mercado sul-americano, Brasil e Argentina vêm sofrendo a concorrência asiática na oferta de produtos industrializados.

Panorama: Brasil e Argentina, principais economias da região e do Mercosul, adotam, atualmente, uma gestão econômica mais alinhada com a ortodoxia liberal. Contudo, a exemplo dos Estados Unidos, a Europa vive um processo político-econômico mais isolacionista, focado em temas domésticos. Essas diferenças de contextos prejudicam as negociações?

Frederico L. Behrends: Percebe-se, como rescaldo da crise econômica internacional ocorrida em 2008, o fortalecimento das críticas à globalização e ao projeto de integração iniciado há mais de 60 anos, levando a alterar o equilíbrio político em diversos países da União, a partir da crescente popularidade de partidos de extrema-direita. Entretanto, a Comissão Europeia, encarregada das negociações internacionais dentro do bloco, não parece ter alterado sua política comercial na busca por acesso a novos mercados e negociações tidas como estratégicas e relevantes. Além da negociação com o Mercosul, a União Europeia negociou acordos com outros parceiros de importante relevância econômica, como Coreia do Sul, Canadá, Chile, México, entre outros. Com a eleição de Donald Trump ao Governo dos EUA, além da sua decisão de paralisar o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP), acordos como o Transatlântico (entre EUA e União Europeia) também não avançaram, o que aumentou o interesse dos europeus em concluir o acordo com o Mercosul. O que causou certa apreensão por parte do Mercosul foi a disputada eleição na França entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen. Porém, com a vitória do candidato pró-União Europeia, as perspectivas de apoio permanecem. Na Alemanha, também haverá eleições este ano; no entanto, espera-se a manutenção do partido de Angela Merkel. Logo, há um interesse mútuo dos blocos em concluir o acordo o quanto antes, a despeito das questões sociopolíticas que atualmente afetam os países europeus, como, por exemplo, o Britain Exit (Brexit).

Luiz Augusto Faria: Esse é outro problema. As mudanças políticas recentes nos dois principais atores do Mercosul trazem de volta o ambiente dos anos 90. Uma visão ideológica, no mau sentido do termo, volta a predominar, propondo concessões unilaterais sem nenhum tipo de contrapartida. Felizmente, hoje temos a tarifa externa comum como anteparo, obrigando que a abertura do mercado regional seja negociada pelo conjunto dos países, o que impõe um necessário pragmatismo e garante um nível maior de proteção. Entretanto, o endividamento argentino e o desmonte da cadeia de petróleo e infraestrutura no Brasil são um sinal de que estamos comprometendo as possibilidades de um desenvolvimento futuro. Será um enorme desperdício não utilizarmos as imensas jazidas de hidrocarbonetos sul-americanas para impulsionar a industrialização e o desenvolvimento tecnológico. Além disso, a renda gerada por esse setor tem potencial de produzir excedentes para financiar políticas sociais, como previa a lei brasileira antes de ser modificada no quadro de desgoverno atual.

Panorama: É sabido que a economia gaúcha é extremamente interligada ao dinamismo do mercado nacional, que, por sua vez, tem uma forte relação de interdependência com a economia internacional. Seria, então, possível elencar os setores da economia gaúcha que se beneficiariam e os que perderiam, caso um acordo de livre-comércio seja efetivamente firmado entre os dois blocos comerciais?

Frederico L. Behrends: Produtos que possuem um alto diferencial competitivo tendem a ter maior sucesso na implementação de um acordo internacional, uma vez que, com tarifas zeradas, os custos serão reduzidos. Aqueles que tiverem baixo diferencial competitivo, por forte concorrência, por falta de agregação de valor ou por tecnologias ultrapassadas, certamente terão mais dificuldades. Sua vantagem será maior facilidade para transferência de tecnologias e importação de insumos. Por isso, é fundamental que as empresas analisem sua atuação, seus nichos de mercados e, principalmente, seus concorrentes, de modo a criarem alternativas que incrementem sua competitividade. Vale ressaltar também que o acordo contemplará convergência regulatória, que preverá a harmonização de normas para a produção de determinados produtos. Em linhas gerais, podemos destacar que a indústria calçadista será beneficiada, visto que a tarifa europeia para esse produto ainda é significativa e afeta a competitividade dos produtos gaúcho e brasileiro, apesar do atual bom desempenho das vendas desse setor para o mercado europeu. Com o acordo e, consequentemente, a tarifa sendo reduzida a zero, essa indústria possivelmente ganhará muita competitividade, já que o calçado gaúcho tem qualidade para o padrão de exigência europeu. Além do calçado, as indústrias do couro e do tabaco também podem ser apontadas como prováveis beneficiadas com o fechamento do acordo. Como regra geral, é previsto que o acordo trará ao Brasil ganhos maiores para a agricultura e o agronegócio. Como consequência, o Rio Grande do Sul, por ter uma forte base industrial atrelada ao campo, deve se beneficiar com o Acordo Mercosul-UE.

Luiz Augusto Faria: É difícil fazer uma previsão neste momento, pois as negociações são muito pontuais. Por exemplo, ainda no Governo Dilma, o Mercosul chegou a sinalizar uma concessão no setor de lácteos, em que a Europa tem um excedente de produção estrutural, hoje direcionada à sua ajuda à África. Como, no início dessa cadeia, temos a agricultura familiar dos criadores de gado leiteiro, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) fizeram pressão, e o tema foi deixado de lado. Nas condições políticas de hoje, esse setor não teria interlocução com os negociadores. Os defensores do livre mercado sempre argumentam com ganhos de competitividade e avanço tecnológico como resultado. Embora a Europa seja menos avessa à transferência de tecnologia que os EUA, vide acordos na área nuclear ou na indústria militar, esses resultados só são alcançados por meio de negociações intergovernamentais — muito longe do mercado e da concorrência. A experiência no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) mostra o quão difícil é o tema agrícola para a Europa. Vender soja para alimentar as vacas francesas e importar queijo ou manteiga não faz nenhum sentido.