A água doce[1] é considerada, atualmente, um dos bens mais preciosos e cobiçados do mundo, ao lado do petróleo, e, por essa razão, já se tornou um dos principais motivos de disputas e conflitos internacionais. Com a expansão das atividades humanas, especialmente industriais e agrícolas, e o crescimento desordenado das cidades, os mananciais de água doce foram sendo afetados de maneira incisiva, o que envolve a diminuição não apenas da quantidade disponível mas também da qualidade.
Alguns conflitos podem ilustrar bem a disputa por recursos hídricos no mundo, como é o caso do que ocorre no território da Caxemira, entre a Índia, o Paquistão e a China, pelo controle da nascente e do curso alto do Rio Indo. Além desse embate, há os que ocorrem no Oriente Médio (local no mundo onde acontece o maior número de conflitos relacionados a disputas por recursos hídricos), como o que abarca Iraque, Síria e Turquia, territórios que correspondem à antiga Mesopotâmia — portanto, banhados pelos Rios Tigre e Eufrates —, por causa da diminuição da vazão desses rios, ocasionada pelas barragens construídas pela Turquia, e o que envolve Israel, Síria e Jordânia pelo controle das nascentes do Rio Jordão (principal rio da região), localizadas nas colinas de Golã, que pertenciam à Síria e foram invadidas por Israel durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967.
Embora o Brasil não esteja envolvido diretamente em nenhum tipo de conflito por recursos hídricos e concentre cerca de 13%[2] do total do volume de água doce do mundo, a distribuição dessa pelo território é bastante desigual. Essa distribuição varia de acordo com características geográficas (geomorfologia e pedologia), climáticas (regime de precipitação e taxas de evapotranspiração) e sociodemográficas, uma vez que a ocupação intensiva do solo, sobretudo, quando desordenada, contribui para a diminuição da disponibilidade de água. Além disso, outro fator que contribui em muito para a disparidade do acesso à água e, consequentemente, do balanço hídrico[3], é a perda da qualidade das águas devido às ações antrópicas resultantes das atividades da indústria, da agropecuária e, também, da urbanização.
Em termos quantitativos, as bacias do semiárido nordestino são as que apresentam a situação mais crítica, devido à baixa disponibilidade hídrica: ali, o volume de precipitação anual pode ficar abaixo dos 500 mm (no restante da região, varia de 1.000 a 1.500 mm anuais). Além disso, o NE possui apenas dois rios perenes (São Francisco e Parnaíba), sendo os demais intermitentes, ou seja, só possuem vazão nos períodos chuvosos. Esses cursos d’água intermitentes correspondem a cerca de 22% do total de água doce superficial disponível para a região (AGÊNCIA NACIONAL DAS ÁGUAS, 2016[4]; QUADRO et al., 2014[5]).
Já as bacias da Região Sul apresentam situações críticas tanto pela baixa qualidade das águas como pela grande demanda, ambas relacionadas, dentre outras coisas, com o alto grau de urbanização e industrialização. O Rio Grande do Sul, especificamente, que possui uma grande disponibilidade hídrica (grande densidade de cursos e corpos d’água e importantes reservatórios subterrâneos), apresenta um dos maiores desequilíbrios hídricos tanto em quantidade quanto em qualidade. O Estado coleta apenas 31,2% do esgoto gerado e trata menos de 13%, abrigando, por isso, três dos 10 rios mais poluídos do País: Sinos, Gravataí e Caí — todos localizados na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), abastecendo mais de 1,5 milhões de pessoas. Ainda na RMPA, os municípios de Canoas e Gravataí figuram entre os 20 piores do Brasil no ranking do saneamento (que analisa a situação dos 100 municípios mais populosos do País) (PESSOA, 2015)[6].
A agropecuária, um importante setor da economia do Estado — correspondendo a cerca de 10% do seu Produto Interno Bruto (PIB) — é a maior responsável pela diminuição da disponibilidade hídrica quantitativa, uma vez que a maior demanda por água doce do Estado é para atividades de irrigação (cerca de 78% do total de água utilizada). Além disso, o RS usa quase o dobro da quantidade de agrotóxico nas lavouras, se comparado com a média anual brasileira: 8,3 litros por habitante contra 4,5 l/hab. O excesso de agrotóxico contamina o solo, as águas subterrâneas e os mananciais do entorno, uma vez que a chuva drena o solo e carrega esses poluentes, afetando não apenas a qualidade dessas águas, mas todo o ecossistema do local (PESSOA, 2015).
O agravamento do desequilíbrio entre oferta e demanda por água se dá, principalmente, pela falta de planejamento e gestão adequados dos recursos hídricos. Diante da necessidade crescente de regrar o uso da água no País, com vistas a viabilizar o acesso mais equilibrado aos recursos hídricos e garantir a proteção ambiental dos mananciais de água doce, foi criada, em 1997, a Lei N.° 9.433/1997 (que está completando 20 anos), também conhecida como Lei das Águas, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SNGRH).
Os fundamentos nos quais essa Política se baseia são pautados pela premissa de que a água é um bem de “domínio público, limitado e dotado de valor econômico” e que visa, prioritariamente, atender às necessidades básicas, como o consumo humano e a dessedentação dos animais (BRASIL, 1997)[7]. O principal objetivo da PNRH é “assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos” (BRASIL, 1997, artigo 2.°, inciso I). Para isso, foca o gerenciamento dos recursos hídricos e a fiscalização dos seus usos, a partir de uma visão sistemática em que aspectos de qualidade e quantidade são vistos como indissociáveis, e o gerenciamento é compartilhado entre as diferentes esferas do Poder Público, articulando as escalas locais, regionais e nacional.
Os principais instrumentos utilizados para materializar a PNRH são (a) os Planos de Recursos Hídricos[8], que visam ao diagnóstico da situação atual e ao acompanhamento da ocupação do entorno e dos usos da água, além de servir como base para a cessão de outorga e cobrança pelos usos; (b) o enquadramento dos corpos d’água em classes, de acordo com o uso, assegurando a qualidade compatível para determinados fins e o combate à poluição; (c) a outorga dos direitos de uso e a devida cobrança por eles, os quais asseguram seu controle quantitativo e qualitativo bem como o direito de acesso à agua, em consonância com a proteção ambiental, acrescentando um componente econômico à gestão dos recursos hídricos; e (d) o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos (SIRH), que visa a “coleta, tratamento, armazenamento e recuperação de informações sobre recursos hídricos e fatores intervenientes em sua gestão” (BRASIL, 1997).
O Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos é responsável por garantir a implementação da PNRH através da coordenação da gestão integrada das ações de planejamento, regularização e controle dos usos e da preservação e da recuperação dos recursos hídricos, além de promover a cobrança pelo uso. O SNGRH é composto pelos Conselhos de Recursos Hídricos (nacional e estaduais), pelos Comitês de Bacia Hidrográfica e pelas Agências de Água (nacional e regionais).
Em âmbito nacional, a Agência Nacional das Águas (ANA) foi criada como uma entidade federal de implementação da PNRH, com o objetivo de operacionalizar, controlar e avaliar as ações de gestão dos recursos hídricos.
Uma das ações efetivadas pela ANA no cumprimento do seu papel foi o Pacto Nacional pela Gestão das Águas, firmado em 2011 (pela Resolução ANA N.° 379) através da articulação institucional com os dirigentes dos órgãos estaduais gestores de recurso hídricos, a fim de fortalecer os Sistemas Estaduais de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Para instrumentalizar esse pacto, foi criado, em 2013, o Programa de Consolidação do Pacto Nacional pela Gestão das Águas (Progestão), com o objetivo de oferecer incentivo financeiro (de até R$ 750.000 anuais por unidade federativa) aos estados, para subsidiar ações e projetos de gerenciamento de recursos hídricos. A adesão do estado ao Programa é feita por meio do enquadramento em uma das quatro tipologias (A, B, C e D), que abrangem um conjunto de metas que variam de acordo com a “[…] complexidade exigida no processo de gestão das águas, bem como a estrutura institucional necessária para enfrentar os desafios existentes em cada estado.” (AGÊNCIA NACIONAL DAS ÁGUAS, 2015, p. 2)[9]. Até o final de 2014, todos os estados e o Distrito Federal já haviam aderido ao Programa.
As metas são compostas por até 32 variáveis[10] divididas em diferentes níveis de complexidade. Os estados devem enviar relatórios anuais com a prestação de contas e a situação de atendimento a cada uma das variáveis, para, com isso, receber os valores correspondentes ao cumprimento das metas.
O Rio Grande do Sul aderiu ao Programa em 2013 (Decreto N.° 50.741/2013), sob a coordenação regional da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMA), enquadrando-se na tipologia B de gestão. O período de certificação definido para o Estado foi de 2013 a 2017, sendo que, até 2016, foram transferidos R$ 1.901.250,00 e aplicados apenas R$ 257.817,70. Com relação ao cumprimento das metas, para o processo de certificação, o RS teve notas finais de avaliação de 80% em 2014 e 73,5% em 2015 (AGÊNCIA NACIONAL DAS ÁGUAS, 2015).
Além da adesão ao Progestão, que garante um auxílio financeiro importante para a efetivação de politicas públicas voltadas ao gerenciamento dos recursos hídricos, o arcabouço legal que o Estado possui visando a esse mesmo fim conta com o Sistema Estadual de Recursos Hídricos (Lei n.º 10.350, de 30 de dezembro de 1994); o Conselho Estadual de Recursos Hídricos, instituído pela Lei n.º 10.350, de 30 de dezembro de 1994, em cumprimento à PNRH; o Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Lei n.º 8.850, de 8 de maio de 1989); o Plano Estadual de Recursos Hídricos, outra exigência da PNRH, que está em processo de elaboração e se tornará um importante instrumento de gestão; além dos 25 Comitês de Bacia Hidrográfica instaurados e efetivados.
Os Comitês de Bacia Hidrográfica são, certamente, os órgãos mais atuantes no cumprimento das exigências legais da PNRH. Boa parte desses comitês atua em parceria com universidades (públicas e privadas) e desenvolve trabalhos importantes de pesquisa, análise e monitoramento da qualidade das águas e das ocupações do entorno, além de elaborar os Planos de Bacia, que geram subsídios técnicos para a gestão dos mananciais, de acordo com as especificidades de cada bacia. Infelizmente, muitas vezes, a efetivação da gestão esbarra em questões burocráticas e/ou políticas, pois os limites das bacias hidrográficas perpassam os limites políticos dos municípios.
Por isso, apesar de, em termos legais, tanto no Brasil como no Rio Grande do Sul, a gestão dos recursos hídricos estar bastante ancorada, a concretização das ações que se reflitam em melhoria do acesso à água, em quantidade e qualidade satisfatórias para todos os usuários, e em preservação ambiental dos mananciais e do entorno ainda está aquém do esperado. Faz-se necessária uma maior articulação (muitas vezes, política) entre o Poder Público e os demais agentes, de forma a viabilizar o cumprimento da PNRH, no intuito de atingir o principal objetivo proposto pela Política, que é gerenciar os recursos hídricos, a fim de garantir à presente e às futuras gerações o acesso adequado e igualitário à água por todos os usuários e a preservação ambiental dos mananciais e dos ecossistemas associados.
[1] A água doce corresponde a 2,5% do total de água disponível no mundo, e apenas 0,27% desse volume (0,007% do total) está acessível na forma de água superficial (principalmente em rios e lagos).
[2] A vazão média de água doce no País é de cerca de 260.000 m3/s, dos quais 205.000 m3/s (quase 80% da vazão total) estão concentrados na Região Hidrográfica Amazônica.
[3] É o balanço entre a oferta de água e as demandas quantitativas e qualitativas (AGÊNCIA NACIONAL DAS ÁGUAS, 2016).
[4] AGÊNCIA NACIONAL DAS ÁGUAS (ANA). Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil: informe 2016. 2016. Disponível em: <http://www3.snirh.gov.br/portal/snirh/centrais-de-conteudos/conjuntura-dos-recursos-hidricos/informe-conjuntura-2016.pdf>. Acesso em: 3 jul. 2017.
[5] QUADRO, M. F. L. de et al. Climatologia de Precipitação e Temperatura. Cachoeira Paulista: CPTEC/INPE, 2014. Disponível em: <http://climanalise.cptec.inpe.br/~rclimanl/boletim/cliesp10a/chuesp.html>. Acesso em: 8 jul. 2017.
[6] PESSOA, M. L. O Rio Grande do Sul corre o risco de enfrentar uma crise hídrica? Carta de Conjuntura FEE, Porto Alegre, 2015. Disponível em: <http://carta.fee.tche.br/article/o-rio-grande-do-sul-corre-o-risco-de-enfrentar-uma-crise-hidrica/>. Acesso em: 6 jul. 2017.
[7] BRASIL. Lei N.o 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9433.htm>. Acesso em: 3 jul. 2017.
[8] O Rio Grande do Sul ainda não possui um Plano de Recursos Hídricos implementado, mas está elaborando um.
[9] AGÊNCIA NACIONAL DAS ÁGUAS (ANA). O Progestão no Rio Grande do Sul. 2015. Disponível em: <http://progestao.ana.gov.br/portal/progestao/mapa/rs/progestao_rs_2015.pdf>. Acesso em: 3 jul. 2017.
[10] A tipologia A possui o menor número de variáveis (17), e a D, o maior número (32). As tipologias B e C possuem, respectivamente, 20 e 29 variáveis.