Texto sob autoria de: Bruno Mariotto Jubran

Bruno Mariotto Jubran

Internacionalista, Pesquisador da FEE International Affairs Researcher at the FEE.

As disputas globais pelo petróleo e seus efeitos no Brasil

Lucas Kerr de Oliveira é professor adjunto na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), no Curso de Relações Internacionais e Integração e no Mestrado em Integração Contemporânea da América Latina. É Doutor em Ciência Política e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos, Geopolítica e Integração Regional (NEEGI) da UNILA e pesquisador colaborador do Centro de Estudos Internacionais Sobre Governo (Cegov), do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE) e do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (Nerint).

Em entrevista ao Panorama, Lucas Kerr de Oliveira avalia a centralidade da China no consumo petrolífero mundial e destaca as variáveis fundamentais para compreender o setor. Ele opina sobre as estratégias de atuação econômica da Petrobras e afirma que ainda estão em debate os prejuízos da maior crise energética brasileira, ocorrida em 2001. Lucas posiciona-se diante das políticas do governo interino brasileiro em relação ao setor energético e discute os fatores que aprofundaram a crise econômica no País a partir de 2015, com a queda dos preços do petróleo. Para o entrevistado, mais do que um recurso energético, o petróleo é um meio para aprimorar o desenvolvimento e fornecer segurança para um país.

Panorama: Na visão convencional, a abrupta queda do preço do petróleo é entendida sob a ótica da demanda, qual seja, a diminuição do “apetite” chinês por essa matéria-prima. Como você observa esse fenômeno?

A redução das expectativas de crescimento chinês pode ser considerada uma variável central para explicar a atual dinâmica energética mundial, incluindo o atual ciclo de preços baixos do petróleo, embora seja apenas uma entre as diversas variáveis envolvidas nesse processo. Primeiramente, importa destacar que a China passou a representar uma parcela crescente do consumo mundial de energia ao longo das últimas três décadas, passando a ocupar o posto de maior consumidor de energia global a partir de 2009, quando ultrapassou o consumo total dos Estados Unidos. Em 2013, a China ultrapassou o consumo somado da Europa e da ex-União Soviética, incluindo a Rússia. Atualmente, o consumo energético chinês representa 23% do consumo total de energia primária mundial e deve chegar a 25% até 2035, ou seja, a China irá representar, nos próximos 20 anos, o mesmo “peso” percentual do consumo total mundial que os Estados Unidos representou entre 1980 e 2000. Entre 1990 e 2011, a China quadruplicou seu consumo total de energia primária e também quadruplicou o consumo de petróleo, tendo praticamente alcançado o mesmo índice de crescimento no consumo de carvão. A partir de 2013 e 2014, já se notava uma redução no ritmo de crescimento, que completaria uma média de pouco mais de 5% ao ano entre 2005 e 2015. Em 2015, com o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em 7%, o crescimento da demanda energética chinesa foi de apenas 1,5%, sendo que o crescimento do consumo de petróleo foi de 6,3%, representando metade do volume total de crescimento da demanda global em 2015, que foi de 1,9 milhão de barris. Era de se esperar que a China não pudesse manter esse ritmo de crescimento para sempre, especialmente devido à crise econômica mundial, que reduziu o crescimento dos grandes parceiros do País, como os Estados Unidos, o Japão, os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean) e a União Europeia. Atualmente, a China responde por 13% do consumo petrolífero mundial, cerca de 12 milhões de barris de petróleo por dia (mb/d), equivalente a pouco mais de 60% dos 18 milhões consumidos pelos Estados Unidos. Por tudo isso, a China representa hoje um ator central para qualquer projeção de cenário referente ao crescimento do consumo mundial de energia.

Ademais, o atual contexto internacional e o aprofundamento da crise política e econômica na União Europeia, em grande medida, reforçam a expectativa de que a demanda energética mundial não irá crescer significativamente no curto prazo, especialmente porque essa crise começa a afetar mais diretamente os países emergentes, inclusive os países dos BRICS. Somam-se a isso as expectativas de crescimento da extração de petróleo em novas zonas petrolíferas offshore (como o Pré-Sal), as perspectivas de aumento da participação das fontes de energia alternativas ao petróleo, incluindo energias renováveis, mas também outras fontes fósseis como o gás e o óleo de xisto, que ampliam ainda mais as perspectivas de aumento da oferta de energia no curto prazo.

Destarte, importa destacar que não são apenas variáveis como a demanda e a oferta ou a competição interempresarial que importam para compreender o setor petrolífero. O petróleo é uma variável que está diretamente relacionada à competição interestatal internacional. Isso porque o controle sobre grandes reservas petrolíferas e sobre a infraestrutura de escoamento, refino e distribuição de petróleo e derivados, além de representar uma importante fonte de riqueza, consiste em poder e influência para as grandes potências mundiais. Em grande medida, a manutenção das estruturas que controlam o mercado petrolífero mundial está diretamente atrelada à influência político-militar que os Estados Unidos ainda possuem, desde a influência sobre importantes países e regiões petroexportadores, passando pela influência nos processos decisórios que envolvem investimentos na prospecção petrolífera, até mesmo pelo controle da reinversão dos petrodólares, dado que a cotação e a venda do petróleo continua sendo realizada em dólar. É justamente o conjunto das principais capacidades estratégicas dos Estados Unidos — de apoio aos seus aliados, de projeção de forças militares e de definição de conflitos — que permite ao País controlar grande parte do setor petrolífero e do sistema monetário global. Ou seja, em última instância, o poder político-militar continua sendo o principal pilar para o que resta da hegemonia estadunidense.

Panorama: A Petrobras apresenta um marco regulatório em que se congregam diferentes estratégias de atuação econômica: é uma companhia de capital aberto, mas o Estado brasileiro detém o controle acionário (50%+1). Quais as principais vantagens e as desvantagens dessa fórmula jurídica no setor?

A Petrobras nasceu em 1953 já como uma empresa S.A. de capital parcialmente aberto, mas com 90% das suas ações sob controle estatal. A ideia de manter o Estado como acionista majoritário sempre esteve ligada à busca por mais soberania e autonomia nacional na exploração de recursos naturais estratégicos como o petróleo, especialmente diante da necessidade de fazer frente às pressões e aos interesses das grandes corporações petrolíferas euro-americanas. Entre os anos 50 e 80, essa fórmula foi determinante para o esforço da Petrobras junto à estratégia de segurança energética nacional, construída para dar sustentação logística à grande estratégia brasileira, então calcada na industrialização e no desenvolvimento nacional. Nesse processo, a Petrobras foi central para que o País pudesse nacionalizar os processos decisórios referentes ao setor energético e petrolífero, ampliando a capacidade de planejamento e de controle nacional sobre a exploração das nossas próprias riquezas petrolíferas. Ao longo desse processo, ocorreu uma lenta redução no percentual da participação do controle estatal das ações da empresa, mas manteve-se o Estado como acionista majoritário. A Petrobras vinha cumprindo sua missão histórica, reduzindo significativamente a insegurança energética do País, diminuindo sua dependência de petróleo importado e tornando o Brasil praticamente autossuficiente no refino de derivados.

Contudo, nos anos 90, como parte de uma mudança extrema na política nacional, o País abandonou a grande estratégia vigente até então, que buscava uma inserção internacional mais autônoma através do desenvolvimento nacional. Naquele contexto, a Petrobras foi desmembrada, e, sem qualquer visão estratégica, as refinarias sob controle estatal foram vendidas separadamente, ao invés de transformadas em uma grande e única especializada no ramo da petroquímica. A Petrobras acabou sofrendo sérias restrições à expansão dos seus investimentos e, por fim, acabaria sendo parcialmente privatizada, tendo suas ações vendidas em um péssimo momento e bem abaixo do valor de mercado real. O resultado foi a redução do controle estatal nacional sobre suas ações para apenas 32% do total de ações da Petrobras, frente a uma participação estrangeira que chegou a mais de 30%.

Nesse sentido, a entrega do setor energético aos interesses estrangeiros não se restringiu à Petrobras, mas atingiu todo o setor energético nacional, com a venda, para grupos estrangeiros, de infraestruturas estratégicas de geração e distribuição de energia. Dentre os resultados da entrega desses setores estratégicos a grupos estrangeiros e nacionais que não tinham nenhum compromisso com o desenvolvimento nacional e buscavam apenas lucro de curto prazo, o País perdeu a capacidade de planejamento de longo prazo, tão fundamental nessa área, na medida em que abriu mão da capacidade de tomada de decisões soberanas na área energética para entregá-la às forças supostamente mais “eficientes” do mercado. O resultado mais visível desse processo foi que o Brasil sofreu a maior crise energética da sua história, que levou ao racionamento compulsório de energia em 2001, que ficou conhecido apenas como “apagão”. Os prejuízos daquele processo são, até hoje, objeto de debate, mas considerando os impactos então produzidos no PIB industrial, no encolhimento do PIB e no aumento do desemprego, podemos dizer que os prejuízos foram virtualmente incalculáveis.

A partir de 2003, observamos uma lenta retomada do planejamento energético, basilar para a reconstrução de uma estratégia de desenvolvimento nacional. A retomada dos investimentos no setor energético, tanto por meio da retomada da construção de pequenas e de grandes usinas hidrelétricas, como dos investimentos da Petrobras, foi determinante para impulsionar o ciclo de crescimento econômico da década que se seguiu. O crescimento dos investimentos da Petrobras permitiu que essa se tornasse uma das gigantes internacionais do setor petrolífero (chegou a se posicionar como a quarta maior empresa do mundo em 2010), com investimentos em dezenas de países, além da retomada dos investimentos no Brasil, que viabilizaram a descoberta das gigantescas reservas de petróleo do Pré-Sal.

Para se ter uma ideia da importância desse processo, é interessante destacar que a reconstrução da capacidade de planejamento e de tomada de decisões no campo energético permitiu, por exemplo, assegurar um elevado índice de autossuficiência petrolífera. Viabilizou, ainda, que a Petrobras voltasse a utilizar seu poder de compra para reativar a indústria naval nacional, o que foi alcançado em menos de uma década após a retomada de uma estratégia de desenvolvimento minimamente planejada. Ainda no campo energético, a adoção de políticas de conteúdo nacional em outros setores, como o de energia eólica, também se mostrou bastante positiva, impulsionando o desenvolvimento do setor de máquinas e equipamentos, como os aerogeradores.

Por fim, é interessante destacar que, a partir de 2010, a realização da capitalização da Petrobras permitiu aumentar novamente a participação estatal no controle acionário da empresa (para 46,9%), além de assegurar a manutenção dos investimentos necessários para viabilizar a exploração do Pré-Sal, que atualmente responde por mais de um milhão de barris de petróleo extraídos por dia. No mesmo contexto, a Nova Lei do Petróleo viabilizou superar os limites do sistema de concessões ao criar um sistema híbrido no Brasil, que permite que se mantenham leilões com o sistema de concessões nas áreas de alto risco, mas se utilize o sistema de partilha, que é muito mais vantajoso para o Brasil, em áreas de baixo risco como o Pré-Sal. Esse sistema de partilha, ao assegurar 30% e o controle dos blocos para a Petrobras, na prática representa a capacidade de controlar a exploração das riquezas petrolíferas nacionais e, ainda, a perspectiva de consolidação da política de conteúdo nacional no longo prazo.

Panorama: Diante da manutenção dos preços do petróleo em um patamar baixo e das dificuldades financeiras enfrentadas pela Petrobras, é possível que esse modelo de negócios seja revisto em um futuro próximo, de forma a garantir maior participação de empresas privadas ou estrangeiras?

Dificilmente os preços continuarão tão baixos por muito tempo. O mais provável é que os preços atuais se recuperem progressivamente ao longo dos próximos dois ou três anos, como ocorreu nos últimos ciclos de queda significativa dos preços. Entretanto, a velocidade dessa recuperação dependerá de uma série de fatores, desde a velocidade da retomada do crescimento da economia mundial, principalmente dos países emergentes como os BRICS e, especificamente, do aumento do volume de petróleo consumido pela China e pelos Estados Unidos. Também influem nesse processo as perspectivas de mudanças na política exportadora dos países da Organização de Países Exportadores do Petróleo (OPEP) e, ainda, do agravamento ou da estabilização do conflito envolvendo a guerra “por procuração” entre Arábia Saudita e Irã na guerra civil na Síria e na porção ocidental do Iraque, envolvendo o Estado Islâmico.

Desse modo, os ciclos de queda nos preços do petróleo de 2009-10 e de 2014-16 acabaram impactando significativamente a capacidade de investimento da Petrobras diretamente, o que acaba sendo agravado em um contexto de redução dos gastos públicos e de grande instabilidade política. Nesse contexto, o enfraquecimento de políticas mais nacionalistas na área energética acaba favorecendo as pressões antinacionais locais e estrangeiras, que defendem a revisão do modelo de partilha e a volta do sistema de concessões para o Pré-Sal. Essas pressões já estão ocorrendo e fizeram parte das discussões envolvidas nas mudanças aprovadas pelo Senado no início deste ano, retirando a garantia de controle nacional na exploração dos blocos do Pré-Sal, previsto para ser realizado através da Petrobras.

Embora o atual governo seja interino, portanto temporário, é clara a tendência a realizar mudanças definitivas independentemente dos impactos negativos que possam ter. Infelizmente, tudo indica que continua válida uma velha terminologia que resume as grandes tendências em disputa no cenário político nacional em duas grandes forças político-ideológicas antagônicas: os “nacionalistas” e os “entreguistas”; e o governo interino parece fortemente inclinado à adoção de políticas entreguistas em setores estratégicos como o petróleo. Dentre os sintomas dessa posição, destacase justamente a defesa do atual governo em entregar os ativos mais lucrativos da Petrobras para processos acelerados de privatização, que podem provocar prejuízos de longo prazo incalculáveis à capacidade de planejamento energético do Brasil, ou seja, cujos efeitos são claramente contrários ao interesse nacional.

Panorama: Algumas regiões brasileiras, que até pouco tempo atrás eram economicamente menos desenvolvidas, conheceram um importante e relativamente rápido progresso diante da ativação dos investimentos da Petrobras ao longo dos anos 2000. No caso de Rio Grande, cidade localizada no sul do RS, as encomendas da estatal promoveram um forte impulso no setor de estaleiros, os quais, entre 2010 e 2014, contrataram quase sete mil funcionários. Diante da revisão dos investimentos da Petrobras, em sua opinião, quais os possíveis impactos para essa região?

A decisão da Petrobras de priorizar a aquisição de navios e de plataformas petrolíferas no País através do estabelecimento de uma política de “conteúdo nacional” foi a principal responsável pelo renascimento da indústria naval brasileira. Fala-se em renascimento, pois, durante a década neoliberal dos anos 90, nossa indústria naval, que era uma das cinco maiores do mundo nos anos 80, foi literalmente “varrida do mapa”. Em 2000, o que restava da indústria naval brasileira empregava apenas cerca de dois mil trabalhadores. Em 2003, o governo do Presidente Lula tomou a decisão de reverter esse quadro com a política de conteúdo local nacional nas compras de navios e de plataformas petrolíferas da Petrobras, criando para isso o Programa de Mobilização da Indústria do Petróleo e Gás Natural (Prominp). Embora o programa tenha tido dificuldades para elevar o percentual de conteúdo nacional de alta tecnologia, foi suficiente para reerguer das cinzas a indústria naval brasileira, que voltou a se situar entre as maiores do mundo, chegando a empregar mais de 80 mil trabalhadores em 2013 e 2014. Até aquele período, a Petrobras mantinha seus investimentos acelerados e o Brasil parecia não sofrer consequências significativas da crise econômica mundial. Não é mera coincidência que, em 2013, a Presidente Dilma atingiu recordes de popularidade que ultrapassaram a popularidade do Presidente Lula.

Entretanto, a crise econômica começou a afetar o Brasil mais diretamente a partir de 2015. A queda dos preços do petróleo, que chegou a US$ 30,00 o barril, afetou profundamente as expectativas de investimento do setor petrolífero no mundo todo, mas atingiu mais duramente a Petrobras, que começou a reduzir seus investimentos, afetando também a indústria naval.

Dentre os fatores que aprofundaram a crise econômica, destacam-se os escândalos de corrupção envolvendo diversos políticos da coalizão governamental e grandes empresas nacionais, incluindo a Petrobras e as maiores empreiteiras do País. A operação judicial sob a alcunha “Lava Jato” resultou na paralisação das principais empreiteiras do Brasil, assim como na de muitas das obras públicas em andamento, resultando em uma grave crise em todo o setor de construção civil do País, que,   por sua vez, acabou acirrando ainda mais a crise econômica e social. Naquele contexto, assistimos a uma forte rearticulação da oposição ao governo, com a participação de setores da, até então, base aliada governamental, e à instauração de uma grave crise política. Dentre os principais resultados, assistimos ao aprofundamento da crise econômica e à ruptura político-institucional que levou à substituição do governo eleito por um governo interino.

Nesse processo, a Petrobras viu-se obrigada a revisar seus planos de investimentos, especialmente considerando o cenário de instabilidade política e de crise econômica. O governo interino vem aprofundando ainda mais a política de cortes nos investimentos da Petrobras, prevendo cortes ainda mais significativos nos investimentos futuros. Somente neste ano, foi cancelada a construção de 11 novos navios de transporte de petróleo e derivados, diversos estaleiros abriram falência em todo o País, e a fabricação de algumas plataformas petrolíferas chegou a ser transferida para estaleiros estrangeiros. Em Rio Grande, mesmo plataformas que já estavam contratadas foram canceladas, e mais da metade dos empregos que a indústria naval gerava na cidade já desapareceram. Contudo, a retomada dos investimentos da Petrobras na aquisição de navios e de plataformas tanto vai depender do ritmo da retomada nos preços do petróleo (que pode demorar cerca de dois anos para se estabilizar), como também será influenciada pelo desfecho da atual crise política no País. Caso o desfecho seja favorável à empresa e à política de conteúdo local, tudo indica que a recuperação dos investimentos em navios e em plataformas deverá ocorrer nos próximos anos, ou seja, tende a ser mais lenta e gradual do que seria o ideal para a indústria naval.

O petróleo como recurso estratégico: do plano global ao local

O petróleo tem sido a fonte energética mais explorada no mundo desde meados do século XX, ao impulsionar a chamada “segunda revolução industrial” e tornar-se a mola propulsora para a expansão de indústrias e a produção de máquinas e de veículos e para as inovações tecnológicas no período. Na atualidade, o petróleo permanece central em quase todas as regiões do planeta e deverá manter essa posição durante as próximas décadas, ainda que muitas fontes alternativas, renováveis ou não, venham aumentado sua participação na matriz energética global.

Esta edição da Panorama Internacional contempla esse tema tão onipresente e relevante na cena global, com impactos bastante diversificados para cada localidade. Dada sua complexidade e abrangência, não pretendemos, em hipótese alguma, exaurir discussões ou mesmo dar respostas definitivas. Pelo contrário, essa complexidade habilita o desenvolvimento de pesquisas com viés multidisciplinar e com diferentes níveis de análise a lidar com esse tema, tão caro a gestores públicos, empresários do setor privado, pesquisadores, estudantes e demais interessados.

Ainda que o petróleo desperte interesse de forma ininterrupta há décadas, cabe explicitar algumas das motivações de colocá-lo em evidência neste momento. Em primeiro lugar, no âmbito nacional, a discussão a respeito do regime de exploração do petróleo em território brasileiro, muitas vezes, acaba assumindo recortes demasiado simplistas sobre qual a melhor forma de explorá-lo, seja pela via do controle do Estado, seja pela abertura do setor à iniciativa privada. Esse debate, que tem acompanhado a própria existência da estatal Petrobras desde a década de 50, é retomado nos momentos em que a referida empresa se encontra em situações adversas, sobretudo do ponto de vista financeiro, como na atualidade. Em segundo lugar, a queda no preço global do insumo, tendência observada desde meados de 2014, tem gerado impactos bastante contraditórios em diversas regiões do planeta. Por um lado, os efeitos dessa conjuntura não são homogêneos entre as regiões do mundo, tanto para as exportadoras como para as importadoras. No caso das primeiras, algumas delas conseguiram aumentar sua participação no mercado global, como a Arábia Saudita. Por outro lado, alguns importadores, no afã de reduzir custos e auferir um certo alívio em suas contas externas, podem ver-se menos propensos a investir em fontes alternativas e/ou autóctones e a aumentar sua vulnerabilidade externa em médio e longo prazos.

Os leitores perceberão um entendimento comum a todos os textos de que o tema em questão não pode ser reduzido a uma relação contábil do tipo custo-benefício em dado período. Nesse caso, a discussão deve partir do pressuposto de que o petróleo, enquanto se mantiver como importante insumo energético global, deve ser encarado como recurso estratégico, seja para prover a segurança energética de dado país, seja para ser um instrumento de poder na geopolítica global, seja para a obtenção de recursos que possam ser aplicados no desenvolvimento econômico, na redução das desigualdades sociais e regionais, no aprimoramento tecnológico, entre outras aplicações.

O leitor se deparará com uma disposição dos textos que apresenta uma lógica: do âmbito mais global para o local. Em nosso percurso, o ponto de partida será a análise de Ricardo F. Leães acerca dos recentes fluxos globais de petróleo e da estratégia de alguns dos atores mais sublinhados. O autor pondera que, para além de movimentos do lado da demanda do insumo, como o papel da diminuição do “apetite chinês”, tão enfatizado na visão convencional, temos de levar em conta a estrutura no lado da oferta. Dois movimentos podem ajudar a compreender as mudanças em curso nessa conjuntura: (a) a redução da vulnerabilidade energética dos Estados Unidos, que passaram a produzir mais petróleo em seu território e a adquiri-lo de fontes mais seguras, sobretudo do Canadá, e (b) a atuação da Arábia Saudita, que tem demonstrado interesse em manter os preços abaixo de US$ 50 o barril, possivelmente para prejudicar reais e potenciais concorrentes, principalmente a Rússia e o Irã. A permanência dessa conjuntura poderá ampliar a margem de manobra da Arábia Saudita e de outras monarquias do Golfo Pérsico, mas prejudicar boa parte dos exportadores globais e, inclusive, induzir importadores a aumentar sua dependência e a diminuir seu interesse em fontes alternativas.

No plano latino-americano, Tomás Fiori procede a um exame comparativo dos regimes de propriedade do petróleo entre quatro países, dos quais três apresentam economias mais industrializadas (Argentina, Brasil e México), e o quarto (Venezuela) é um importante produtor global de petróleo. O autor procura demonstrar que o setor, pelo menos nos casos selecionados, não responde apenas a uma lógica de ampliar as receitas e reduzir os custos. É necessário, também, entender alguns aspectos de política e segurança internacional, como sensibilidade (que diz respeito à suscetibilidade de dado sistema a choques externos) e vulnerabilidade (que se refere à capacidade de resposta ou de adaptação a choques externos). Assim, os países, além de buscarem minimizar seus custos, procuram, também, reduzir sua vulnerabilidade externa, o que explica as diferentes possibilidades de equacionar a relação entre Estado e mercado, no que se refere ao controle da propriedade petrolífera.

No plano nacional, Cecília R. Hoff procura entender a relevância da Petrobras para a economia brasileira, apesar da crise econômica no País. A autora aponta alguns dados que atestam a relevância da empresa para o conjunto da economia nacional, não obstante as turbulências observadas no período recente. Além da questão do respeito ao tamanho, a empresa aumentou significativamente sua contribuição para a variável formação bruta de capital fixo após a crise de 2008. A autora resgata, também, um dado pertinente: a produção física da companhia tem aumentado, apesar das dificuldades financeiras e da crise econômica brasileira. Além disso, a estatal tem buscado amortecer a volatilidade dos preços no mercado internacional, o que certamente propicia que os preços domésticos não oscilem na mesma frequência, reduzindo o impacto na inflação. A crise nacional tem tido um papel, até o momento, de redimensionar, ou mesmo suspender, diversos projetos outrora relevantes, ao mesmo tempo em que se vê obrigada a concentrar esforços em algumas atividades consideradas essenciais, como a exploração do Pré-Sal.

Por fim, Cesar S. Conceição e Roberto P. da Rocha buscam apreender a política de investimento da Petrobras e o impacto no setor de estaleiros, na região de Rio Grande, no sul do Estado. Os autores trabalham com a hipótese de que determinadas políticas de governo, na primeira década do século XXI, mais especificamente, a reativação dos investimentos no setor petrolífero, desencadearam o desenvolvimento, no sul gaúcho, do setor de construção de embarcações e de equipamentos e componentes para navios, bem como de plataformas offshore para exploração e produção de petróleo em águas oceânicas. Os autores identificam alguns dos resultados dessa atividade no mercado de trabalho do setor de embarcações, na região, no início da década de 2010, mas também apontam uma reversão dessa tendência a partir de 2015. Nesse trabalho, que apresenta uma intertextualidade com o de Hoff, concluem que as crescentes dificuldades do fluxo de caixa da empresa, a partir de 2014, provocaram um retraimento em suas atividades e em seus investimentos, colocando em risco a continuidade do notável desenvolvimento do segmento naval rio-grandense nos últimos anos.

O entrevistado desta edição é Lucas K. de Oliveira, Professor Adjunto do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e pesquisador do Centro de Estudos Sobre o Governo (Cegov), que tem desenvolvido pesquisas no tema de segurança energética e de conflitos em regiões petrolíferas.

Boa leitura!

O discurso predominante sobre a guerra civil síria como fator agravante no problema dos refugiados

A crise humanitária na Síria é um dos temas de maior destaque na agenda internacional, dado o imenso contingente de sírios que abandonaram seus lares em virtude da guerra civil que assola o País desde 2011. De maneira geral, afirma-se que a crise humanitária foi desencadeada pela repressão de Bashar al-Assad, o qual nunca se mostrou realmente disposto a dialogar com a oposição. Essa perspectiva, embora empiricamente verdadeira, não dá conta da extensão do fenômeno, que se apresenta mais multifacetado do que aparenta ser. Neste texto, procuraremos demonstrar que a construção dessa narrativa reducionista e maniqueísta por parte dos Estados Unidos e seus aliados na Europa e no Oriente Médio não apenas provou ser equivocada, como também contribuiu para deteriorar a situação humanitária ao conferir poder, tácita e concretamente, a organizações fundamentalistas. Ademais, é nosso objetivo evidenciar que os principais países ativos nesse conflito, que colaboraram para elevar o fluxo de expatriados, mostram-se refratários a acolher os refugiados de guerra.

A guerra civil na Síria é um desdobramento local de um fenômeno mais amplo no contexto regional, a Primavera Árabe, na qual governos autoritários tiveram de responder a manifestações populares nutridas por demandas tão abrangentes quanto complexas. De acordo com a visão mais difundida e propalada tanto pelo Governo norte-americano como em grandes agências de notícias, o Governo sírio, àquela altura, via-se pressionado por sua população, que exigia a democratização do País. Nessa perspectiva, a Síria estaria dividida entre as forças governistas opressoras e a oposição pró-democracia empenhada em armas por uma causa justa.

Nessa visão, era comum distinguir dois grandes grupos rivais no conflito. De um lado, as forças de repressão do ditador Assad, que buscavam reprimir qualquer manifestação contrária ao regime e manter a supremacia de sua família, que está no poder no País desde 1971. De outro, os chamados “lutadores pela liberdade”, capitaneados pelo Exército Sírio Livre (ESL), determinados a derrubar um governo despótico, o que colocava a opinião pública a seu favor. Assim, à medida que Assad intensificava a repressão para conter as pressões internas, prosperavam grupos dispostos a pegar em armas para depô-lo, com a justificativa de instaurar a democracia no País. De fato, logo se apurou que a avaliação a respeito de Assad tinha fundamento, pois seu governo não se furtou a recorrer às mais violentas práticas para reprimir a oposição, o que encetou um amplo movimento de deslocamento interno e externo da população síria.

Ao contrário do que poderia parecer, porém, a situação da Síria nunca pôde ser reduzida à dicotomia entre um regime autoritário e seus adversários democratas. Na verdade, o Exército Sírio Livre foi superestimado pelos analistas internacionais, tanto em dimensão quanto em empenho para defender a democracia. Esse movimento logo se mostrou muito menor do que o anunciado e prontamente ficou evidente que controlava esparsas e diminutas regiões. Além disso, viu-se que as organizações fundamentalistas como a Frente al-Nusra e o Estado Islâmico (Daesh) eram, de fato, os principais opositores a Assad, o que fragilizava a tese de que, se o Presidente sírio fosse deposto, instituições democráticas floresceriam de pronto. A despeito dessas questões, os Estados Unidos e seus aliados na Europa e no Oriente Médio — como França, Reino Unido, Turquia e Arábia Saudita — permaneceram fiéis à ideia de que era preciso destituir Assad para encerrar a guerra civil e iniciar um governo de coalizão.

A irredutível postura dos Estados Unidos mostrou-se determinante para a continuação do conflito na Síria, pois, na prática, deu “luz verde” para a ação da al-Nusra e do Daesh, que avançaram a passos largos. Isso porque, sob a máscara da defesa dos rebeldes moderados, fez-se “vista grossa” para os fundamentalistas que combatiam Assad, na expectativa de que sua vitória fortalecesse o ESL. Entretanto o resultado foi o inverso: o sucesso dos fundamentalistas esvaziou ainda mais as fileiras do ESL. Como muitos desses combatentes que trocaram de lado haviam sido treinados pelos Estados Unidos, o que se observou não foi um avanço dos grupos democráticos, mas o fortalecimento dos fundamentalistas, que ainda passaram a contar com armamentos norte-americanos. Dessa forma, aumentou o pessimismo entre os cidadãos sírios, que deixaram de esperar por um desfecho rápido para a guerra civil e passaram a fugir não apenas do Governo, mas da al-Nusra e do Daesh.

Vemos, portanto, que os países que tratam a queda de Assad como o objetivo prioritário para a Síria não apenas falharam em promover a democracia, mas robusteceram os movimentos fundamentalistas e intensificaram a pressão para que sírios tivessem de deixar seu país. Provavelmente, a situação teria sido ainda pior se o Conselho de Segurança das Nações Unidas tivesse aprovado a intervenção militar na Síria, conforme desejava o Presidente Barack Obama em 2013. Essa iniciativa teria sido trágica para a população do País, na medida em que a maioria de seus habitantes vive em regiões sob o domínio do Governo Assad. O propósito de Obama, em última instância, era bombardear as áreas mais populosas da Síria, o que provavelmente aumentaria o número de refugiados e contribuiria para a ampliação do território controlado pelo Daesh e pela al-Nusra e para o fortalecimento do apoio popular a esses grupos.

De fato, uma das características centrais da crise síria é o elevado número de pessoas que abandonaram seus lares, ao redor de 11 milhões de pessoas até dezembro de 2015, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR)[1], o que representa quase a metade da população nacional no início do conflito, em 2011. A grande maioria desse contingente ainda permanecia no território sírio (6,6 milhões), ao passo que o número de refugiados em outros países se situava por volta de 4,3 milhões. Dos refugiados em outros países, quase 90% deslocaram-se para territórios vizinhos da Síria, com destaque para a Turquia (cerca de 2,2 milhões, ou praticamente a metade do total de refugiados no exterior), o Líbano (cerca de 1,2 milhão, configurando um acréscimo de quase 30% à população desse país), Jordânia (630.000), Iraque (250.000) e Egito (130.000). Uma parcela de pouco mais de 10% dos refugiados sírios no exterior buscou proteção na Europa, com destaque para a Sérvia (275 mil) e a Alemanha (185 mil).

Em relação à Alemanha, vê-se que sua postura no tocante aos refugiados tem sido dúbia e irresoluta. Em agosto de 2015, o Governo alemão anunciou que não mais aplicaria o Acordo de Dublin, segundo o qual os aspirantes a asilo na União Europeia (UE) devem permanecer no país por onde entraram. O acordo, na prática, é um peso para os Estados mais pobres do continente — a principal porta de chegada de refugiados — e possibilita aos países ricos deportar os imigrantes que alcançarem seu território. Contraditoriamente, porém, a Alemanha propôs, no âmbito da UE, um pacote de € 3 bilhões à Turquia, a fim de que contenha o fluxo de refugiados que entram na Europa. Nas entrelinhas, ventilava-se que uma conduta “favorável” da Turquia poderia acelerar seu processo de ingresso na UE. Para piorar, em novembro, a Alemanha comunicou que voltaria a “lançar mão” do Acordo de Dublin, enterrando as esperanças de que o País liderasse uma política de portas abertas para os refugiados sírios.

Figura 1: Situação humanitária na Síria em dezembro de 2015texto-2-figura-1-pt-BR

FONTE: UNITED NATIONS OFFICE FOR COORDINATION OF HUMANITARIAN AFFAIRS. 2015.
Disponível: em: . Acesso em: 30 dez. 2015.
NOTA: tradução dos autores.

Chama a atenção o fato de que, com a importante exceção da Turquia, diversos países com atuação destacada no conflito não estão entre os principais receptores dos refugiados de guerra, com destaque para os Estados Unidos, que abrigaram somente 2.234 refugiados sírios até dezembro de 2015.[2] A França recebeu 8.894 refugiados[3], enquanto a Rússia contabilizou em seu território, oficialmente, cerca de 2.000 cidadãos sírios nessa condição.[4] O Irã tem-se limitado a prestar assistência material, sem registrar incursões significativas de refugiados sírios em seu território. As monarquias do Golfo Pérsico, algumas das quais são apoiadoras fulcrais de diversos grupos rebeldes contrários a Assad, têm-se colocado de forma ainda mais refratária à recepção de refugiados. Líderes da Arábia Saudita, do Catar, do Kuwait e dos Emirados Árabes Unidos limitaram-se a estender o período de residência para cidadãos sírios já estabelecidos nesses países.[5] Esse fenômeno é grave não apenas em decorrência da participação dessas monarquias no conflito, mas porque são os países da região que reúnem as melhores condições financeiras para acolher os refugiados.

Passados quatro anos de guerra civil, o diagnóstico para a Síria e seus refugiados permanece adverso, na medida em que a maior parte do território do País continua sob o controle de fundamentalistas, ainda que as regiões mais densamente povoadas permaneçam sob o comando firme de Assad. Além disso, a inexistência de uma alternativa democrática viável ao governo de Assad agudiza os obstáculos à estabilidade na Síria, pois os Estados Unidos e seus aliados — ainda que não apresentem uma solução — insistem na mudança de regime naquele país, sem arcar com os custos envolvidos na recepção e na assistência em relação aos refugiados de guerra. Nessas circunstâncias, deparamo-nos com um impasse, visto que o Governo e os fundamentalistas são as forças políticas mais expressivas na Síria, de modo que é difícil combatê-los simultaneamente. De fato, assim como sucedeu no Iraque e na Líbia, a Síria mostra que o confronto com os governos locais não tem fomentado uma solução democrática, mas, sim, gerado um vácuo de poder que é rapidamente preenchido por fundamentalistas. Esse cenário é pernicioso para a população síria, que se vê com poucas possibilidades a não ser engrossar os contingentes de refugiados.


[1]   UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES. 2015 UNHCR country operations profile – Syrian Arab Republic. 2015. Disponível em: . Acesso em: 30 dez. 2015.

[2]   UNITED STATES OF AMERICA. Department of State. Myths and Facts: Resettling Syrian Refugees. 2015. Disponível em: . Acesso em: 30 dez. 2015.

[3]   UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES. Europe: Syrian Asylum Applications. 2015. Disponível em: . Acesso em: 30 dez. 2015.

[4]   Россия приютила 2 тысячи беженцев из Сирии. Газета.Ру. 2015. Disponível em: . Acesso em: 30 dez. 2015.

Em português: A Rússia abrigou 2.000 refugiados da Síria. Gazeta.ru.

[5]   MARTINEZ, M. Syrian refugees: which countries welcome them, which ones don’t. Disponível em: <http://edition.cnn.com/2015/09/09/world/welcome-syrian-refugees-countries/>. Acesso em: 30 dez. 2015.

Mercosul: muito além da integração econômica

Em 2016, o Mercado Comum do Sul (Mercosul) celebra 25 anos de existência, em meio a incertezas e críticas no Brasil e, inclusive, especulações sobre sua extinção. Como razões para essa visão pessimista, têm sido apontadas, em primeiro lugar, a ineficácia do bloco em promover a aproximação econômica entre os países; em segundo, a persistência de prejuízos para o Brasil; e, por fim, as dificuldades impostas pela sua estrutura na condução de negociações com outros países ou blocos.

Ainda que as críticas ao Mercosul sejam pertinentes, vale ressaltar que a integração deve ser analisada de forma mais ampla, considerando não apenas as questões comerciais. Apesar de altamente relevante, o comércio não é o único objeto da integração regional, a qual envolve, também, segurança, cultura e educação. Ademais, o bloco tem avançado a velocidades diferentes em cada setor, de forma semelhante a outros mecanismos de integração regional, inclusive a União Europeia (UE).

Em relação à primeira crítica, afirma-se que o bloco não tem sido exitoso em promover a integração entre as economias dos países-membros e salienta-se a recente diminuição proporcional de comércio entre eles. A principal razão parece ser a postura protecionista do Governo argentino. De fato, tanto para o caso do Brasil como para o do Rio Grande do Sul, os países do Mercosul reduziram significativamente sua participação nos últimos anos, devido ao excepcional desempenho das exportações para a China.

No entanto, é bastante forçoso afirmar que o Mercosul foi ineficaz ou tem perdido sua relevância, especialmente quando se abre a série histórica dos dados. Embora compartilhem uma fronteira de mais de 1.200km, Brasil e Argentina, até a década de 90, careciam de cooperação econômica relevante e duradoura. Durante décadas, os principais parceiros comerciais do Brasil foram os Estados Unidos e a Alemanha Ocidental. Ademais, a dinâmica das relações bilaterais sempre foi marcada por iniciativas de cooperação efêmeras e pela persistência da lógica de rivalidade entre brasileiros e argentinos.

Com base nos dados do gráfico, observa-se que o comércio bilateral entre Brasil e Argentina atingiu níveis históricos após a criação do Mercosul, em 1991, demostrando os efeitos comerciais da integração regional. Além disso, pode-se notar um momento de alta comercial no início dos anos 60, que foi subsequentemente descontinuado. A criação da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), iniciativa tripartite entre Brasil, Argentina e México, explica esse movimento. No entanto, com o desinteresse dos Governos na manutenção do projeto, o comércio regional retrocedeu a padrões anteriores, o que serve de alerta para quem visa à dissolução do Mercosul.

Participação da Argentina no comércio exterior brasileiro — 1953-2013

O Mercosul foi responsável pela consolidação dos esforços de aproximação multisetorial do Brasil com a Argentina, iniciados ainda no final da ditadura civil-militar brasileira. De fato, houve momentos de maior otimismo, como no início da década de 90, quando da formalização do bloco, e outras fases mais críticas, como na desvalorização do real, em 1999, que desapontou profundamente os demais membros e, pouco depois, quando a Argentina passou por uma grave crise econômica e social. A recente estagnação em termos de valor dos fluxos comerciais certamente causa apreensões, mas cabe ressaltar que a imposição de cotas de importações aos produtos brasileiros por parte do Governo argentino é uma medida de defesa comercial em acordo com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), no caso de surto de importações que comprometam determinado setor da economia ou seu balanço de pagamentos, se comprovados os nexos causais.

Para além do comércio, foram estabelecidos, de forma gradual, canais institucionais para a implementação de projetos de cooperação nas áreas de política, educação, cultura, segurança, entre outras. Além disso, a instituição da cláusula democrática, prevista no Protocolo de Ushuaia (1998), e, mais recentemente, a criação do Parlamento do Mercosul denotam o comprometimento político dos Governos com os valores e as instituições democráticas, além de aproximar os cidadãos de forma mais efetiva. Apesar de o prazo para a eleição de parlamentares via voto direto ter sido prorrogado para 2020, o Paraguai já realizou duas eleições (2008 e 2012).

Em relação ao tema dos custos, os “mercopessimistas” asseveram que o Brasil é o mais prejudicado no bloco. Entretanto, cabe observar que, em outros casos de formação de coalizões regionais, os Estados mais poderosos (seja em termos econômicos, seja em termos políticos ou militares) são os proponentes de iniciativas de integração regional, como no caso do condomínio franco-alemão na União Europeia, da Rússia na União Eurasiana, dos Estados Unidos no Acordo Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA) e da China nas negociações da Parceria Econômica Abrangente do Leste Asiático. Em todos esses casos, os Estados maiores concedem algumas vantagens mais tangíveis ou imediatas aos parceiros menores, de forma a ampliar a atratividade da participação no bloco em questão. Por exemplo, na Comunidade Europeia e no Mercosul, a sede dos mecanismos de integração é fora do território do Estado-motor: Bruxelas (Bélgica) e Montevidéu (Uruguai), respectivamente, cumprem essa função.

A concessão de vantagens ou concessões pontuais aos países menores em um processo de integração econômica é geralmente explicada pelo fato de as economias desses países, em muitos casos, carecerem do grau de competitividade das empresas dos países maiores, as quais normalmente operam em uma escala bem maior e conseguem explorar oportunidades mais rapidamente do que suas congêneres. Outro argumento bastante explorado por políticos e negociadores uruguaios e paraguaios é que seus países são mais suscetíveis a sofrer desvio de comércio com a imposição de tarifa externa comum. Segundo essa visão, os países menores tendem a ser mais prejudicados, por terem economias mais dependentes do comércio exterior.

Justamente por entrarem como sócios menores, os Estados mais frágeis sob o ponto de vista econômico, populacional ou territorial precisam contar com benefícios tangíveis e imediatos para fazer valer sua participação no projeto de integração regional. No caso do Mercosul, observa-se que os principais ganhos políticos só poderiam ser obtidos pelo Brasil, o único que pode se alçar à condição de player global. Se exitoso o processo de integração, as empresas brasileiras seriam as mais favorecidas, o Brasil seria uma potência global e seria seu o assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Logo, é de se esperar que o principal interessado no Mercosul tenha disposição para arcar com os seus custos, com vistas a suavizar as assimetrias regionais e promover o crescimento econômico intrabloco. Não é razoável imaginar que uruguaios, paraguaios, venezuelanos e argentinos queiram pertencer a um grupo vertebrado pelo Brasil sem obter vantagens materiais em contrapartida.

Um terceiro conjunto de críticas sustenta que o Mercosul tem dificultado a negociação de acordos comerciais com outros países ou blocos, em virtude da suposta baixa disposição de alguns membros em adensar as relações com outros países. Nessa perspectiva, o Brasil deveria abandonar seus compromissos regionais e conduzir sozinho as negociações com a União Europeia e com os Estados Unidos. Contudo, nesse caso, apresenta-se um dilema complexo, ainda que comum, nas relações internacionais. De fato, é possível concordar que um eventual acordo entre o Brasil e a União Europeia seja mais abrangente em termos de conteúdo, mas é também provável que seus termos sejam mais desiguais do que os de um acordo entre blocos. O poder de barganha tende a ser maior quando os seus atores preferem agir em conjunto a negociar separadamente, mas é também provável que o acordo final apresente um escopo temático mais limitado.

Dessa forma, os 25 anos do Mercosul devem ser avaliados concomitantemente sob a ótica política e econômica, observando suas sinergias. Analisar isoladamente suas dimensões é encará-lo como uma estratégia individualizada de cada membro em um jogo de soma zero. Ainda que a dimensão econômica do Mercosul acabe consolidando-se como termômetro do sucesso do bloco devido à facilidade de se mensurarem volumes e valores de seus fluxos comerciais, é imperativo ressaltar que todo acordo econômico é precedido de algum tipo de entendimento político, para mitigar as divergências inerentes ao processo de integração. Por esse motivo, a dimensão política da integração no Mercosul assume um papel relevante. À medida que suas instituições se consolidam como fóruns de integração e solução de conflitos nas mais variadas áreas de seus respectivos governos, criam-se oportunidades tanto para reduzir os custos como para aumentar os ganhos da integração entre seus países-membros.

Os países em desenvolvimento no radar comercial do RS: o caso das máquinas agrícolas

Ao se projetar a inserção econômica do Rio Grande do Sul, tende-se a destacar os principais destinos de exportação — Argentina, China e Estados Unidos, não necessariamente nessa ordem — e os principais itens exportados: complexo da soja, carnes (sobretudo suínos e frangos), químicos e tabaco. Ainda que seja desejável ampliar ou manter os fluxos econômicos do Estado para esses países e nesses setores, convém explorar as oportunidades oferecidas pelos mercados com considerável potencial de crescimento econômico para as próximas décadas. Trata-se dos países em desenvolvimento ou emergentes, sobretudo os localizados no sul da Ásia e na África Subsaariana.

Na atualidade, os países emergentes já compõem a maioria dos destinos, em termos de valor, das exportações gaúchas, seguindo a tendência do próprio Brasil, conforme se observa no Gráfico 1. Em 2014, segundo dados divulgados pela Fundação de Economia e Estatística (FEE), somando-se os quatro parceiros do Brasil nos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) com os países latino-americanos, obtém-se mais da metade de todas as exportações do Estado (as proporções são, respectivamente, 27,2% e 23,8%). Ao se acrescentarem outros países emergentes da África, da Ásia e do Oriente Médio, essa proporção certamente se amplia. Os países do núcleo desenvolvido — América do Norte (9,2%), Europa (16,8%) e Japão (1,22%) — permanecem relevantes, mas sua proporção reduziu-se nas últimas duas décadas.

Participação de países e grupos de países nas exportações gaúchas — 2003-14

É complicado caracterizar o comércio com os países emergentes de forma geral, uma vez que há diferenças em cada região geográfica analisada. Enquanto o comércio com os países do leste da Ásia (China, Coreia do Sul, Índia e Vietnã) tem apresentado uma pauta amplamente dominada pela soja e por seus derivados, no que tange à África e aos países vizinhos do Brasil, as exportações são mais diversificadas. No comércio com a Argentina, por exemplo, apesar das flutuações e das restrições recentes, destacam-se itens de médio e alto valor agregado, como máquinas agrícolas, automóveis, insumos industriais e produtos químicos. Com os países africanos e do Oriente Médio, destacam-se, além da soja, produtos de outros setores, como o caso de carnes em geral para Angola (cerca de US$ 108 milhões em 2014, ou quase 54% do total exportado para esse país), tabaco para Indonésia (47% da pauta para o País), e arroz para Cuba (45% da pauta), de acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC).

A análise do período recente, no entanto, não deve obscurecer o enorme potencial de intensificação da corrente comercial para parte considerável dos países emergentes. As expectativas de ampliação das fronteiras agrícolas na América Latina e na África, por exemplo, colocam, simultaneamente, oportunidades e desafios para a inserção do Rio Grande do Sul na economia global. Ao mesmo tempo em que os países latino-americanos e africanos competem diretamente na produção e na exportação, como na de soja e milho, a ampliação das atividades agrícolas nessas regiões pode ir ao encontro dos interesses do setor de máquinas e equipamentos do Estado, logrando, oportunamente, a assinatura de negócios significativos com alguns países daquela região. Essa questão é particularmente importante em um contexto de reprimarização da pauta exportadora observada no período recente.

Atualmente, os países africanos e latino-americanos compram 92% das exportações gaúchas de máquinas agrícolas, conforme pode ser observado no Gráfico 2. Esse dado torna-se ainda mais significativo quando se tem em mente que esse índice atingia 72% em 2005. Esse processo acompanha um movimento geral da política comercial brasileira na última década, que enfatizou a inserção econômica em mercados emergentes. No tocante às máquinas agrícolas, essa estratégia permite que o Rio Grande do Sul tenha demanda para os setores industriais que têm enfrentado muitos obstáculos para competir no mercado externo. Isso porque, por excelência, as economias da América Latina e da África, salvo poucas exceções, são marcadas pelo predomínio do setor agrícola, viabilizando a retomada da indústria na pauta de exportações gaúchas.

Composição do valor total das exportações de máquinas agrícolas do Rio Grande do Sul — 2003-14

Na África, Etiópia, Chade, Moçambique e Ruanda estão entre os 10 países que mais cresceram economicamente no século XXI. Esses, diferentemente de Angola e Nigéria, não são ricos em recursos minerais e avançaram em função de seu desenvolvimento agrícola. Dado seu estágio inicial de desenvolvimento, esses países carecem de máquinas para a expansão de sua produção agrícola, o que abre espaço para a economia gaúcha. De fato, em 2013, o Governo brasileiro assinou um acordo para financiar exportações de equipamentos agrícolas para a África através do Programa de Financiamento às Exportações (Proex). Essa medida insere-se no Programa Mais Alimentos Internacional, cujo intuito é fomentar o desenvolvimento da agricultura africana. Por fim, a linha de crédito que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) oferece para as exportações de produtos não agrícolas também pode ser aproveitada pela indústria gaúcha interessada em exportar para a África.

Ademais, entre os latino-americanos, realçamos Bolívia e Paraguai, cujo Produto Interno Bruto (PIB) vem expandindo-se a passos largos, com base, respectivamente, na ampliação da agricultura familiar e no progresso da cultura da soja. Esse fenômeno já é sentido pela indústria gaúcha, que tem vendido cada vez mais para produtores bolivianos e paraguaios. Neste último caso, frisa-se que a grande presença de brasileiros (muitos dos quais nascidos no Rio Grande do Sul) radicados no Paraguai possibilita o fortalecimento de laços entre a produção rural do País e o setor gaúcho de máquinas agrícolas. Além disso, também é digno de nota o aumento das exportações para a Venezuela, a despeito da aguda crise econômica que assola o País, movimento que muito provavelmente está relacionado ao ingresso de Caracas no Mercado Comum do Sul (Mercosul), uma demanda antiga de grupos industriais brasileiros. Uma exceção a essa regra é representada pela Argentina, cuja política comercial protecionista, intensificada a partir de 2009, provocou redução de pouco mais da metade das vendas entre 2007 e 2013.

A promoção econômica e comercial no plano externo, diferentemente do caso das relações políticas e diplomáticas, não é atribuição exclusiva da esfera federal. Estados e municípios podem – e devem – promover, no estrangeiro, os setores econômicos locais. De fato, na prática internacional, tem sido observada uma intensificação das atividades externas de autoridades subnacionais na economia global, funcionando, na maior parte das vezes, como um complemento aos esforços dos respectivos corpos diplomáticos oficiais, ou como elos entre os últimos e a comunidade empresarial. A construção de laços econômicos do Rio Grande do Sul com países e regiões que historicamente tiveram participação bastante limitada no radar comercial serve aos interesses da sociedade gaúcha e reforça a política externa brasileira voltada à diversificação de parcerias.