Qualquer que seja a extensão ou a profundidade em um debate sobre acordos comerciais, mesmo no século XXI, a dualidade entre livre comércio e protecionismo ganha corpo. Enquanto os defensores do primeiro identificam potenciais ganhos e oportunidades para todos os envolvidos em um acordo dessa alçada, a partir da visão da noção de vantagens comparativas, baseados em modelos tradicionais de comércio internacional, outros advogam que uma liberalização comercial, além de modificar a composição do emprego, também altera o seu nível, bem como o de outras variáveis, como salários, renda e os próprios fluxos comerciais. Os avanços dos recentes acordos globais de comércio e investimento reanimaram o debate em questão. Todavia, o que está posto nesses acordos ultrapassa essa falsa dicotomia, na medida em que se vai conhecendo o que está, de fato, sendo definido nessas negociações.
A Parceria Transpacífico[1] e a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento[2] remetem-se a mega-acordos comerciais regionais sob a liderança dos Estados Unidos, em detrimento de negociações multilaterais no âmbito da Organização Mundial do Comércio. O TPP resume-se a uma parceria entre 12 países da costa do Pacífico que respondem juntos por 25% das exportações mundiais, cerca de 40% do Produto Interno Bruto (PIB) global e por mais de 800 milhões de habitantes[3] e apresenta-se como uma prerrogativa norte-americana para aumentar a sua influência na Ásia em detrimento do avanço da China no continente. Isso é reforçado por conta de os EUA já possuírem acordos comerciais em vigor (baixas barreiras tarifárias) com alguns dos países envolvidos, embora tais barreiras ainda sejam elevadas entre os demais membros do TPP. Por seu turno, o TTIP trata de uma proposta ainda maior de acordo de comércio e de investimentos entre os EUA e a União Europeia, congregando 60% do PIB do planeta, um terço do comércio mundial de bens e mais de 40% do de serviços.
Em comum, esses dois mega-acordos extrapolam a barreira do comércio de bens e serviços, dando grande importância a questões como reduções de barreiras não tarifárias, mecanismos de resolução de litígios[4], direitos de propriedade intelectual, normas trabalhistas, manipulações cambiais, compras governamentais, meio ambiente, etc. Ou seja, esses mega-acordos inauguram um novo marco regulatório para o comércio internacional, dentro do aprofundamento da atual lógica da fragmentação produtiva e das cadeias globais de valor.
A partir das movimentações dessas parcerias, emerge a natural indagação a respeito dos seus potenciais efeitos (diretos e indiretos, positivos e negativos) sobre as nações (sejam elas membros das parecerias ou não). Todavia, uma investigação precisa e mais profunda é impossibilitada pela falta de acesso às cláusulas dos acordos, uma conduta que vem sendo bastante questionada. A despeito das preocupações legítimas que resultam do não conhecimento do efetivo texto dos acordos, o garantido é que existirão vencedores e perdedores, com os benefícios e os malefícios sendo distribuídos desigualmente em torno das economias mundiais, ao mesmo tempo em que emergem desafios e são criadas oportunidades para todos os países.
Sem dúvidas, os mega-acordos afetarão profundamente as relações de comércio e os fluxos de bens e serviços entre as economias nacionais. Em um primeiro momento, vislumbram-se potenciais efeitos tanto nas nações envolvidas nas negociações quanto nas que não participaram, podendo-se destacar: (a) a criação e/ou o desvio de comércio; (b) o aprofundamento e/ou o isolamento das cadeias globais de valor; (c) a erosão de acessos preferenciais de negociações bilaterais anteriores; e (d) os efeitos sobre renda e emprego ao redor do mundo.
No caso do Brasil, entende-se que a abertura comercial intrarregional dos países do TPP e do TTIP, bem como a convergência nos seus padrões regulatórios, afetará os seus fluxos comerciais em todos os grupos de produtos (básicos e industriais). Pelo quadro a seguir, percebe-se que os principais produtos exportados pelo País (47% do total) não têm tanta representatividade nos mercados em questão. Entretanto, as nações que compõem as parcerias são grandes exportadoras e importadoras de muitos desses produtos, o que pode ocasionar efeitos negativos indiretos nas exportações brasileiras. Ademais, nos outros 53%, as vendas externas de certos produtos são bastante dependentes dos mercados abrangidos pelas parcerias, ao mesmo tempo em que existem, nessas regiões, potenciais concorrentes ao Brasil e expectativa de crescimento do comércio intrarregional, o que poderia acarretar efeitos negativos diretos para as exportações do País.
Em se tratando do Setor Primário, o TPP pode provocar desvios no comércio entre Brasil e Ásia, em favor de concorrentes como os EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, mais especificamente em setores de grãos, leite, carnes e açúcar. As vendas de produtos manufaturados também podem sofrer alguma adequação, na medida em que alguns mercados europeus e sobretudo o dos EUA são importantes destinos desses tipos de produtos brasileiros; no sentido inverso, a participação de países como México e, principalmente, Peru e Chile pode-se tornar porta de entrada para produtos industriais na América do Sul, tirando alguns mercados do Brasil. Já a concessão de cotas preferenciais por parte da União Europeia para os EUA também reduziria o acesso brasileiro aos mercados europeus.
Participação dos 10 principais produtos exportados pelo Brasil e principais mercados de origem e de destino — 2012-15 (%)
PRODUTO | PRODUTO/TOTAL BR | PRODUTO TPP/TOTAL BR | PRODUTO TTIP/
TOTAL BR |
PRINCIPAIS EXPORTADORES MUNDIAIS | PRINCIPAIS IMPORTADORES MUNDIAIS |
Minério de ferro |
11,5 |
1,4 |
2,1 |
Austrália (52%), Brasil (25%), África do Sul (6%) |
China (65%), Japão (12%), Coreia (6%) |
Soja |
9,4 |
0,4 | 1,3 | EUA (42%), Brasil (38%), Argentina (7%) |
China (64%), Alemanha (3%), Espanha (3%) |
Petróleo |
6,8 |
2,4 | 2,3 | Arábia Saudita (20%), Rússia (17%), Emirados Árabes (9%) |
EUA (19%), China (15%), Japão (9%) |
Açúcar |
4,6 |
0,5 | 0,3 | Brasil (40%), Tailândia (11%), França (5%) |
China (8%), EUA (8%), Indonésia (7%) |
Carne de frango |
3,0 |
0,6 | 0,1 | Brasil (26%), EUA (18%), Holanda (10%) |
Alemanha (8%), Hong Kong (7%), Reino Unido (7%) |
Farelo de soja |
2,9 | 0,1 | 1,9 | Argentina (37%), Brasil (23%), EUA (13%) |
Holanda (8%), Indonésia (7%), França (6%) |
Café |
2,4 |
0,8 | 1,8 | Brasil (19%), Vietnã (11%), Alemanha (9%) |
EUA (20%), Alemanha (14%), França (8%) |
Milho |
2,3 |
0,6 | 0,2 | EUA (29%), Brasil (17%), Argentina (15%) |
Japão (15%), Coreia do Sul (8%), México (8%) |
Celulose |
2,2 |
0,5 | 1,3 | Brasil (17%), Canadá (17%), EUA (16%) |
China (30%), EUA (10%), Alemanha (9%) |
Carne bovina |
1,9 |
0,0 | 0,1 | Brasil (21%), Austrália (18%), Índia (15%) |
Rússia (16%), EUA (15%), Hong Kong (9%) |
Subtotal |
47,0 |
7,3 | 11,4 | Austrália (29%), Brasil (25%), EUA (8%) |
China (42%), Japão (10%), Coreia (6%) |
TOTAL |
100,0 |
22,9 | 30,6 | China (16%), EUA (15%), Alemanha (9%) |
EUA (14%), China (11%), Alemanha (7%) |
FONTE DOS DADOS BRUTOS: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Aliceweb 2. 2016. Disponível em: < http://aliceweb.desenvolvimento.gov.br/ >. Acesso em: 8 mar. 2016.
UNITED NATIONS. United Nations Comtrade Database. [2016]. Disponível em: < http://comtrade.un.org/data/ >. Acesso em: 8 mar. 2016.
Alguns estudos já realizados estimaram os efeitos do TPP e do TTIP na economia brasileira. Simulações feitas por Thorstensen e Ferraz (2014)[5] indicam arrefecimento do fluxo comercial brasileiro com os países do TPP e do TTIP e da participação do País no comércio internacional como um todo, com retrações mais significativas quando se simulam reduções — além das barreiras tarifárias — de barreiras não tarifárias, o que será o caso desses mega-acordos. Como as barreiras tarifárias entre os países-membros já são relativamente reduzidas, as diminuições das não tarifárias trariam maiores efeitos negativos para o Brasil. A partir do TPP, os setores brasileiros mais prejudicados seriam os de produtos e preparados de carne, o de produtos animais e os de frutas, vegetais e café. Por outro lado, o setor mais beneficiado seria o de silvicultura. Efeitos deletérios ainda maiores nos fluxos comerciais brasileiros se observariam com o TTIP: no setor agrícola, as maiores perdas seriam sentidas, basicamente, nos mesmos setores do TPP; já em relação ao setor industrial, o segmento mais beneficiado seria o de produtos de madeira, enquanto os mais prejudicados seriam os de equipamentos de transporte, veículos e partes, couro e minerais não metálicos.
Outro estudo, desenvolvido por Fleischhaker et al. (2016)[6], simula que os mega-acordos teriam um efeito limitado sobre a taxa de crescimento do Brasil — por conta de ser uma economia relativamente fechada —, mas a sua estrutura de comércio seria significativamente comprometida. No geral, o País ficaria ainda mais isolado do comércio global e cada vez mais caracterizado como um exportador de commodities. Em relação ao TPP, espera-se um crescimento dos fluxos comerciais com a China, em um fortalecimento dos laços entre dois grandes países outsiders. No entanto, os ganhos em exportações para a China seriam contrabalanceados por perdas ainda maiores em exportações para os participantes do TPP, sobretudo para os EUA e o México. Já no que tange ao TTIP, mesmo com o relativo aumento das exportações de insumos minerais para a indústria automobilística europeia, isso viria como um custo para as exportações em outros mercados-chave para produtos brasileiros, com resultados globais negativos em termos de comércio e crescimento. O único setor que não sairia perdendo seria o de mineração, ao passo que nem mesmo outros setores baseados em commodities seriam beneficiados, por conta da presença de outras potências agrícolas como o Canadá e a Austrália, que teriam acesso preferencial a mercados importantes para esses produtos, como o Japão e a União Europeia. Ademais, os autores argumentam que o avanço dos mega-acordos poderia agravar o processo de desindustrialização da economia brasileira, com encolhimento do setor manufatureiro em quase todos os seus segmentos, liderado pela indústria automobilística.
Em tempos de maior interdependência das economias nacionais, menor crescimento do comércio mundial e acirramento da concorrência externa, a efetivação dos mega-acordos pode levantar ainda mais desafios a uma inserção de qualidade da economia brasileira na arena internacional e a uma maior integração nas cadeias de produção global, sobretudo em um período baixista no ciclo das commodities, com termos de troca desfavoráveis e rebalanceamento da economia chinesa. Nesse cenário sensível para o Brasil, mesmo com um grande mercado interno, vantagens em alguns segmentos agrícolas e minerais e demanda de países vizinhos estratégicos para as vendas de produtos manufaturados, seria desejável que o País adotasse uma estratégia para, pelo menos, reduzir o seu relativo isolamento do comércio internacional e das cadeias globais de produção. Enquanto o TPP e o TTIP parecem representar sérias ameaças aos interesses brasileiros, com potenciais efeitos na composição e na direção de seus fluxos comerciais, esses efeitos podem agravar, ainda mais, a situação brasileira, com o reforço à dependência de exportações de apenas algumas commodities.
[1] Trans-Pacific Partnership (TPP), em inglês.
[2] Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP), em inglês.
[3] Além dos Estados Unidos, outros membros do TPP são: Canadá, México, Peru, Chile, Japão, Malásia, Vietnã, Cingapura, Brunei, Austrália e Nova Zelândia.
[4] Nesse tocante, Stiglitz, em The secret corporate takeover, publicado na Project Syndicate, em 13 de maio de 2015, chama a atenção ao fato de os mega-acordos consistirem em acordos comerciais geridos, adaptados aos interesses corporativos dos EUA e da União Europeia, impondo alterações fundamentais aos modelos jurídicos, judiciários e regulamentares das nações envolvidas. Ao permitir que investidores estrangeiros processem países, abre-se a possibilidade de os últimos indenizarem os primeiros pela perda de lucros esperados até mesmo em casos em que os lucros são feitos a partir de danos públicos.
[5] THORSTENSEN, V.; FERRAZ, L. Brasil: entre acordos e mega-acordos comerciais. Revista Brasileira de Comércio Exterior, Rio de Janeiro, n. 120, jul./set., 2014.
[6] FLEISCHHAKER, C.; GEORGE, S.; FELBERMAYR, G.; AICHELE, R. A chain reaction? Effects of mega-trade agreements on Latin America. Gütersloh: Bertelsmann Stiftung, 2016.