Os nexos econômicos entre o Mercosul e o Rio Grande do Sul

A localização meridional do Rio Grande do Sul, por muitos considerada “excêntrica”, devido à distância em relação aos grandes centros consumidores do País, ganha contornos de centralidade quando se trata do Mercosul. Afinal, a fronteira aberta com o Uruguai e a Argentina confere ao Estado uma posição privilegiada para o estabelecimento de conexões produtivas e comerciais entre os países do bloco e o Brasil. Inicialmente entendido como ameaça à economia gaúcha, dadas as similaridades produtivas com os países vizinhos — principalmente quanto à importância do agronegócio —, o Mercosul logo se constituiu em um atrativo para a realização de investimentos no Rio Grande do Sul. Da safra de investimentos realizados nesse contexto, destacam-se os feitos no setor automotivo, cuja divisão do trabalho no âmbito regional envolveu complementaridades e interdependência entre as produções realizadas no Brasil e na Argentina, e no setor de máquinas e equipamentos para a agricultura, cuja localização no Estado mostrou-se estratégica para o atendimento dos países vizinhos e da demanda crescente do centro-oeste brasileiro. O Mercosul representou, de início, uma oportunidade estratégica para a transformação da estrutura produtiva do Estado.

[…] a integração com os países do sul do continente começa a revelar-se capaz de alterar até mesmo as características maiores da economia gaúcha. Com efeito, o estado começa a abandonar a sua posição historicamente periférica (no contexto brasileiro) para assumir uma posição central, no âmbito da economia integrada. Refletindo e ao mesmo tempo materializando a mutação em curso começam a ser tomadas decisões de investimento concebidas e dimensionadas em função do Mercosul.[1]

Passados mais de 25 anos da sua criação, o Mercosul ainda importa estrategicamente para a economia gaúcha, embora as expectativas e as oportunidades quanto ao futuro do bloco se mostrem menos promissoras.

A economia gaúcha é mais aberta ao Mercosul do que a média nacional, seja devido às complementaridades produtivas construídas, seja em virtude da maior participação das importações, cuja porta de entrada é o Estado e cujo destino, muitas vezes, é o centro do País. Na média do período 1991-2014, as vendas para o Mercosul representaram 14,0% das exportações gaúchas e 11,2% das exportações brasileiras. Por outro lado, as importações do Mercosul representaram, na mesma base de comparação, 32,5% das compras externas gaúchas e 9,8% das brasileiras (Gráfico 1).

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Quando se comparam as exportações gaúchas para o Mercosul com as destinadas a outras regiões, também fica evidente a sua relevância para o Estado (Gráfico 2). Ao longo de praticamente todo o período 1991-2014, o Mercosul foi o terceiro maior destino das exportações gaúchas. A participação média do valor exportado só foi superada pela União Europeia (22,8%) e pelos Estados Unidos (19,9%). Contudo, a relevância de ambos na pauta exportadora do Rio Grande do Sul vem reduzindo-se significativamente nos últimos anos.

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Na divisão entre os sócios do bloco, na média do período 1991-2014, 62% do valor exportado voltou-se para a Argentina, 19% para o Paraguai e 18% para o Uruguai. De 1991 a 2009, o valor das exportações do Rio Grande do Sul para o Mercosul cresceu a uma taxa média anual de 15%, enquanto o total das vendas externas do Estado expandiu-se em 9%. No período mais recente, porém, vê-se uma mudança nessa dinâmica: as vendas do Estado para os países-membros retraíram-se 2% no período 2010-14, enquanto o total das exportações do Estado cresceu 4%. Essa mudança reflete, basicamente, a retração de 9% das vendas para a Argentina no período.

A relevância do Mercosul para a economia gaúcha, pelo menos no que tange ao comércio internacional, fica ainda mais evidente quando se desagrega a composição das exportações para o bloco. Analisando-se as exportações gaúchas em um período mais recente (2007-14) e por fator agregado, percebe-se que, enquanto a composição da pauta exportadora do Rio Grande do Sul para o mundo (Gráfico 3) apresenta predominância de produtos básicos (média de 52%), a composição das vendas para o Mercosul (Gráfico 4) tem, nos produtos manufaturados, o maior peso (92%), o que revela um padrão bem contrastante.

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O mesmo padrão pode ser visto quando as exportações gaúchas são classificadas por intensidade tecnológica. A pauta exportadora para o Mercosul apresenta maior peso de produtos de média-alta e média-baixa tecnologias, enquanto outros destinos relevantes das vendas externas do Rio Grande do Sul apresentam maior peso de produtos não industriais e de baixa tecnologia. As exportações de produtos de média-alta e média-baixa tecnologias representaram, em 2014, cerca de 80% das vendas para a Argentina e para o Uruguai. Por outro lado, para os países europeus, mais de 70% das exportações correspondiam a produtos de baixa tecnologia ou não industriais, percentual que superou 90% no caso da China. No caso dos Estados Unidos, a participação dos produtos de média-alta e média-baixa tecnologias foi de 42% no mesmo ano. Contudo, a sua participação na pauta exportadora do Estado vem reduzindo-se com bastante intensidade, conforme pode ser visto no Gráfico 2.

Assim, as exportações gaúchas para o Mercosul são majoritariamente compostas por produtos industrializados com algum grau de tecnologia. A importância de tais produtos revela-se na maior elasticidade-renda da demanda e no alto potencial de crescimento em longo prazo. Esses produtos também costumam ser menos sujeitos à deterioração dos termos de troca, menos suscetíveis a substitutos no mercado internacional e mais demandados por mercados mais dinâmicos. Nesse tocante, o Mercosul apresenta-se como uma exceção à estrutura da pauta de exportação do Rio Grande do Sul, bastante concentrada em produtos de baixo valor agregado. Assim, a proximidade da economia gaúcha à dos países-membros do Mercosul — e a própria existência do bloco — contribui para a diversificação e a qualidade das exportações do Estado, compensando as dificuldades competitivas associadas à exportação de manufaturas para outras regiões.

Quanto às exportações gaúchas por atividades da indústria de transformação (Tabela 1), verifica-se a grande representatividade, na composição das vendas para o Mercosul, de produtos químicos, máquinas e equipamentos e veículos automotores. O Mercosul também é um destino importante para os produtos de outras atividades com menor peso nas exportações gaúchas, como derivados de petróleo, têxteis, produtos metalúrgicos, borracha e plástico e equipamentos de informática e eletrônicos. As exceções — atividades importantes para as exportações do Estado nas quais o Mercosul não apresenta participação relevante — são os produtos alimentícios, os produtos do fumo e couros e calçados. Quanto à participação das exportações na produção, nota-se que os setores de químicos e de têxteis destinam grande parte da sua produção para o Mercosul. Nos demais, há maior participação do mercado brasileiro e das exportações para outros países e blocos.

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Conforme visto, os últimos anos foram marcados por dificuldades nas relações comerciais e produtivas do bloco, para as quais contribuíram, sobremaneira, os problemas econômicos enfrentados pela Argentina. Tais dificuldades não decorrem apenas da desaceleração do ritmo de crescimento e da inflação alta naquele país, que inevitavelmente impactam sua demanda por importações. Refletem, sobretudo, a escassez de divisas diante do acesso ainda precário do País aos fluxos de financiamento externo, uma herança da crise enfrentada desde o fim da conversibilidade, no início dos anos 2000.  Mais recentemente, o cenário de escassez de divisas na Argentina agravou-se, devido ao arrefecimento do preço da soja no mercado mundial. Em termos conjunturais, a crise do país vizinho tem afetado o desempenho das exportações gaúchas seja em função da desaceleração da demanda por importações, seja porque tem induzido, mesmo que temporariamente, a adoção de controles na concessão de licenças de importação e o estabelecimento de cotas.

Por outro lado, a Argentina também vem adotando medidas estruturais voltadas à superação da escassez de divisas no longo prazo. Essas envolvem a reedição da política de substituição de importações — já evidente no setor de máquinas agrícolas, haja vista a “[…] passagem do país vizinho de principal cliente externo a concorrente nos mercados sul-americanos e africanos”[2] — e o aumento das parcerias com a China, para o financiamento de projetos de infraestrutura, em troca de uma maior abertura do seu mercado de manufaturados. Como resultado, observa-se o aumento do market share chinês nas importações de manufaturados da Argentina e a maior propensão do Brasil em aderir a acordos bilaterais de comércio, movimentos que têm colocado os principais avanços econômicos da constituição do bloco em xeque. Considerando-se que uma parte relevante da indústria estabelecida no Rio Grande do Sul visa ocupar uma posição estratégica e central para o atendimento simultâneo dos mercados do Brasil e do Mercosul, as dificuldades do bloco resultam, também, na perda desse importante diferencial competitivo para a atração de in

[1]  CASTRO, A. B. Notas para uma estratégia. In: RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Coordenação e Planejamento (SEPLAG). Projeto RS 2010: realizando o futuro. Porto Alegre, 1998. p. 10.

[2] FEIX, R.; DE GASPERI, E. Argentina substitui importações de máquinas agrícolas. Carta de Conjuntura FEE, Porto Alegre, .v. 23, n. 12, p. 1, dez. 2014