A crise humanitária na Síria é um dos temas de maior destaque na agenda internacional, dado o imenso contingente de sírios que abandonaram seus lares em virtude da guerra civil que assola o País desde 2011. De maneira geral, afirma-se que a crise humanitária foi desencadeada pela repressão de Bashar al-Assad, o qual nunca se mostrou realmente disposto a dialogar com a oposição. Essa perspectiva, embora empiricamente verdadeira, não dá conta da extensão do fenômeno, que se apresenta mais multifacetado do que aparenta ser. Neste texto, procuraremos demonstrar que a construção dessa narrativa reducionista e maniqueísta por parte dos Estados Unidos e seus aliados na Europa e no Oriente Médio não apenas provou ser equivocada, como também contribuiu para deteriorar a situação humanitária ao conferir poder, tácita e concretamente, a organizações fundamentalistas. Ademais, é nosso objetivo evidenciar que os principais países ativos nesse conflito, que colaboraram para elevar o fluxo de expatriados, mostram-se refratários a acolher os refugiados de guerra.
A guerra civil na Síria é um desdobramento local de um fenômeno mais amplo no contexto regional, a Primavera Árabe, na qual governos autoritários tiveram de responder a manifestações populares nutridas por demandas tão abrangentes quanto complexas. De acordo com a visão mais difundida e propalada tanto pelo Governo norte-americano como em grandes agências de notícias, o Governo sírio, àquela altura, via-se pressionado por sua população, que exigia a democratização do País. Nessa perspectiva, a Síria estaria dividida entre as forças governistas opressoras e a oposição pró-democracia empenhada em armas por uma causa justa.
Nessa visão, era comum distinguir dois grandes grupos rivais no conflito. De um lado, as forças de repressão do ditador Assad, que buscavam reprimir qualquer manifestação contrária ao regime e manter a supremacia de sua família, que está no poder no País desde 1971. De outro, os chamados “lutadores pela liberdade”, capitaneados pelo Exército Sírio Livre (ESL), determinados a derrubar um governo despótico, o que colocava a opinião pública a seu favor. Assim, à medida que Assad intensificava a repressão para conter as pressões internas, prosperavam grupos dispostos a pegar em armas para depô-lo, com a justificativa de instaurar a democracia no País. De fato, logo se apurou que a avaliação a respeito de Assad tinha fundamento, pois seu governo não se furtou a recorrer às mais violentas práticas para reprimir a oposição, o que encetou um amplo movimento de deslocamento interno e externo da população síria.
Ao contrário do que poderia parecer, porém, a situação da Síria nunca pôde ser reduzida à dicotomia entre um regime autoritário e seus adversários democratas. Na verdade, o Exército Sírio Livre foi superestimado pelos analistas internacionais, tanto em dimensão quanto em empenho para defender a democracia. Esse movimento logo se mostrou muito menor do que o anunciado e prontamente ficou evidente que controlava esparsas e diminutas regiões. Além disso, viu-se que as organizações fundamentalistas como a Frente al-Nusra e o Estado Islâmico (Daesh) eram, de fato, os principais opositores a Assad, o que fragilizava a tese de que, se o Presidente sírio fosse deposto, instituições democráticas floresceriam de pronto. A despeito dessas questões, os Estados Unidos e seus aliados na Europa e no Oriente Médio — como França, Reino Unido, Turquia e Arábia Saudita — permaneceram fiéis à ideia de que era preciso destituir Assad para encerrar a guerra civil e iniciar um governo de coalizão.
A irredutível postura dos Estados Unidos mostrou-se determinante para a continuação do conflito na Síria, pois, na prática, deu “luz verde” para a ação da al-Nusra e do Daesh, que avançaram a passos largos. Isso porque, sob a máscara da defesa dos rebeldes moderados, fez-se “vista grossa” para os fundamentalistas que combatiam Assad, na expectativa de que sua vitória fortalecesse o ESL. Entretanto o resultado foi o inverso: o sucesso dos fundamentalistas esvaziou ainda mais as fileiras do ESL. Como muitos desses combatentes que trocaram de lado haviam sido treinados pelos Estados Unidos, o que se observou não foi um avanço dos grupos democráticos, mas o fortalecimento dos fundamentalistas, que ainda passaram a contar com armamentos norte-americanos. Dessa forma, aumentou o pessimismo entre os cidadãos sírios, que deixaram de esperar por um desfecho rápido para a guerra civil e passaram a fugir não apenas do Governo, mas da al-Nusra e do Daesh.
Vemos, portanto, que os países que tratam a queda de Assad como o objetivo prioritário para a Síria não apenas falharam em promover a democracia, mas robusteceram os movimentos fundamentalistas e intensificaram a pressão para que sírios tivessem de deixar seu país. Provavelmente, a situação teria sido ainda pior se o Conselho de Segurança das Nações Unidas tivesse aprovado a intervenção militar na Síria, conforme desejava o Presidente Barack Obama em 2013. Essa iniciativa teria sido trágica para a população do País, na medida em que a maioria de seus habitantes vive em regiões sob o domínio do Governo Assad. O propósito de Obama, em última instância, era bombardear as áreas mais populosas da Síria, o que provavelmente aumentaria o número de refugiados e contribuiria para a ampliação do território controlado pelo Daesh e pela al-Nusra e para o fortalecimento do apoio popular a esses grupos.
De fato, uma das características centrais da crise síria é o elevado número de pessoas que abandonaram seus lares, ao redor de 11 milhões de pessoas até dezembro de 2015, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR)[1], o que representa quase a metade da população nacional no início do conflito, em 2011. A grande maioria desse contingente ainda permanecia no território sírio (6,6 milhões), ao passo que o número de refugiados em outros países se situava por volta de 4,3 milhões. Dos refugiados em outros países, quase 90% deslocaram-se para territórios vizinhos da Síria, com destaque para a Turquia (cerca de 2,2 milhões, ou praticamente a metade do total de refugiados no exterior), o Líbano (cerca de 1,2 milhão, configurando um acréscimo de quase 30% à população desse país), Jordânia (630.000), Iraque (250.000) e Egito (130.000). Uma parcela de pouco mais de 10% dos refugiados sírios no exterior buscou proteção na Europa, com destaque para a Sérvia (275 mil) e a Alemanha (185 mil).
Em relação à Alemanha, vê-se que sua postura no tocante aos refugiados tem sido dúbia e irresoluta. Em agosto de 2015, o Governo alemão anunciou que não mais aplicaria o Acordo de Dublin, segundo o qual os aspirantes a asilo na União Europeia (UE) devem permanecer no país por onde entraram. O acordo, na prática, é um peso para os Estados mais pobres do continente — a principal porta de chegada de refugiados — e possibilita aos países ricos deportar os imigrantes que alcançarem seu território. Contraditoriamente, porém, a Alemanha propôs, no âmbito da UE, um pacote de € 3 bilhões à Turquia, a fim de que contenha o fluxo de refugiados que entram na Europa. Nas entrelinhas, ventilava-se que uma conduta “favorável” da Turquia poderia acelerar seu processo de ingresso na UE. Para piorar, em novembro, a Alemanha comunicou que voltaria a “lançar mão” do Acordo de Dublin, enterrando as esperanças de que o País liderasse uma política de portas abertas para os refugiados sírios.
Figura 1: Situação humanitária na Síria em dezembro de 2015
FONTE: UNITED NATIONS OFFICE FOR COORDINATION OF HUMANITARIAN AFFAIRS. 2015.
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NOTA: tradução dos autores.
Chama a atenção o fato de que, com a importante exceção da Turquia, diversos países com atuação destacada no conflito não estão entre os principais receptores dos refugiados de guerra, com destaque para os Estados Unidos, que abrigaram somente 2.234 refugiados sírios até dezembro de 2015.[2] A França recebeu 8.894 refugiados[3], enquanto a Rússia contabilizou em seu território, oficialmente, cerca de 2.000 cidadãos sírios nessa condição.[4] O Irã tem-se limitado a prestar assistência material, sem registrar incursões significativas de refugiados sírios em seu território. As monarquias do Golfo Pérsico, algumas das quais são apoiadoras fulcrais de diversos grupos rebeldes contrários a Assad, têm-se colocado de forma ainda mais refratária à recepção de refugiados. Líderes da Arábia Saudita, do Catar, do Kuwait e dos Emirados Árabes Unidos limitaram-se a estender o período de residência para cidadãos sírios já estabelecidos nesses países.[5] Esse fenômeno é grave não apenas em decorrência da participação dessas monarquias no conflito, mas porque são os países da região que reúnem as melhores condições financeiras para acolher os refugiados.
Passados quatro anos de guerra civil, o diagnóstico para a Síria e seus refugiados permanece adverso, na medida em que a maior parte do território do País continua sob o controle de fundamentalistas, ainda que as regiões mais densamente povoadas permaneçam sob o comando firme de Assad. Além disso, a inexistência de uma alternativa democrática viável ao governo de Assad agudiza os obstáculos à estabilidade na Síria, pois os Estados Unidos e seus aliados — ainda que não apresentem uma solução — insistem na mudança de regime naquele país, sem arcar com os custos envolvidos na recepção e na assistência em relação aos refugiados de guerra. Nessas circunstâncias, deparamo-nos com um impasse, visto que o Governo e os fundamentalistas são as forças políticas mais expressivas na Síria, de modo que é difícil combatê-los simultaneamente. De fato, assim como sucedeu no Iraque e na Líbia, a Síria mostra que o confronto com os governos locais não tem fomentado uma solução democrática, mas, sim, gerado um vácuo de poder que é rapidamente preenchido por fundamentalistas. Esse cenário é pernicioso para a população síria, que se vê com poucas possibilidades a não ser engrossar os contingentes de refugiados.
[1] UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES. 2015 UNHCR country operations profile – Syrian Arab Republic. 2015. Disponível em:
[2] UNITED STATES OF AMERICA. Department of State. Myths and Facts: Resettling Syrian Refugees. 2015. Disponível em:
[3] UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES. Europe: Syrian Asylum Applications. 2015. Disponível em:
[4] Россия приютила 2 тысячи беженцев из Сирии. Газета.Ру. 2015. Disponível em:
Em português: A Rússia abrigou 2.000 refugiados da Síria. Gazeta.ru.
[5] MARTINEZ, M. Syrian refugees: which countries welcome them, which ones don’t. Disponível em: <http://edition.cnn.com/2015/09/09/world/welcome-syrian-refugees-countries/>. Acesso em: 30 dez. 2015.