Deisy Ventura é Professora de Direito Internacional e Livre-Docente do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), Professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e membro da Comissão Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Global e Sustentabilidade. É Doutora em Direito Internacional e Mestre em Direito Comunitário e Europeu pela Universidade de Paris 1, Panthéon-Sorbonne, graduada em Direito e Mestre em Integração Latino-americana pela Universidade Federal de Santa Maria. Coordena, no IRI, o projeto de extensão universitária Cosmópolis sobre políticas migratórias (parceria da USP com a Prefeitura Municipal de São Paulo).
Em entrevista ao Panorama, Deisy Ventura avalia as políticas migratórias de países desenvolvidos e em desenvolvimento e considera cada vez mais tênue a diferença entre migrantes e refugiados. No contexto global, a pesquisadora pondera que as migrações acabam sendo desejadas nas condições que atendam ao mercado de trabalho e não aos direitos dos migrantes. Deisy também critica o papel das potências internacionais na crise dos refugiados sírios e, para o Brasil, aponta a necessidade urgente de legislação adequada e coordenação entre unidades federativas e setores para que as migrações e o refúgio não gerem crises humanitárias ou políticas a cada fluxo pontual.
Panorama: Qual a sua visão geral sobre o tema das migrações internacionais no atual contexto geopolítico global?
O atual ciclo migratório, que teve início nos anos 80, é um processo lento e contínuo, vinculado ao aprofundamento das desigualdades econômicas entre os países e à mudança das formas de produção trazida pela globalização econômica, além de outros fatores pontuais específicos, principalmente os conflitos armados, a perseguição étnica ou religiosa e as catástrofes naturais.
Mireille Delmas-Marty refere-se à globalização como uma “fábrica de migrantes”, no sentido de que os trabalhadores deslocam-se em busca de emprego e vida digna. No entanto, os países desenvolvidos adotam políticas migratórias cada vez mais restritivas. Já os países em desenvolvimento, em geral, não adotam políticas restritivas de ingresso em seus territórios, mas não encorajam a regularização migratória e o acesso a direitos. Assim, o direito de migrar é o parente pobre dos direitos humanos. A Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os direitos dos trabalhadores migrantes e de suas famílias, de 1990, teve a adesão de cerca de 40 Estados, enquanto a maior parte dos tratados internacionais de direitos humanos é subscrita por bem mais de uma centena de Estados. No Brasil, por exemplo, essa convenção tramita há anos no Congresso Nacional, e a lei vigente ainda é o Estatuto do Estrangeiro, herdado da ditadura militar.
O não reconhecimento do direito de migrar parece ser uma grande contradição do ideário da globalização econômica que elenca, entre suas propaladas vantagens, uma inédita liberdade de circulação de pessoas, possibilitada pelo avanço extraordinário do setor de transporte. Contudo, creio que não se trata de uma contradição, mas sim de uma característica: a liberdade de circulação que de fato encontra pleno respaldo na contemporaneidade é a vinculada ao turismo e aos negócios, ou de pessoas com renda suficiente para que o seu livre estabelecimento em outro país não constitua um obstáculo. Assim, para que a globalização funcione, é preciso que esses fluxos dessas pessoas sejam encorajados. Aos Estados é reservada, porém, a prerrogativa de interrompê-los a qualquer momento, por variadas razões (econômicas, de segurança, de saúde pública etc.).
Quanto ao trabalhador migrante, não é que sua migração seja indesejada; ela pode ser desejada, mas nas condições que atendam ao mercado de trabalho, amiúde precárias, e enquanto tal necessidade existir. Quem é livre, na verdade, é o mercado, e não as pessoas. A cada vez que se consagram os direitos dos migrantes — tanto o direito de migrar como, uma vez instalados, o “direito a ter direitos” (a expressão é de Hannah Arendt, em seu extraordinário livro sobre as origens do totalitarismo) —, reduz-se a capacidade dos atores do mercado e dos Estados de desfazer-se dos contingentes indesejados. Isso explica que países com políticas migratórias altamente restritivas mantenham um vasto “mercado negro” em que trabalhadores em situação migratória irregular submetem-se a condições de trabalho igualmente irregulares, não raro desumanas ou análogas à escravidão.
Panorama: Ao se discutirem os fluxos migratórios internacionais (Norte-Norte; Norte-Sul e Sul-Sul), fatores socioeconômicos são comumente elencados para explicar tal fenômeno. No entanto, quando se trata de refugiados, o tema é tomado como uma crise humanitária. Você acredita que a questão migratória deva ser tratada de forma distinta?
A diferença clássica entre refúgio e migração concerne à vontade da pessoa: no caso do refúgio, ela não poderia ficar, enquanto a migração seria o desejo de partir. Enquanto o direito internacional dos refugiados é bastante consolidado na legislação dos Estados, o direito de migrar, como já afirmei, ainda é imberbe na maioria dos Estados. Todavia, essa diferença entre migrante e refugiado é cada vez mais tênue. Embora os conflitos armados correspondam plenamente à ideia da impossibilidade de ficar num território, o colapso da economia de alguns países, por exemplo, também pode facilmente levar uma pessoa a crer que em breve seus meios de subsistência desaparecerão. Considero que nem as migrações nem o refúgio devem ser abordados sob o prisma humanitário. Obviamente uma assistência deve ser prestada aos refugiados em seu deslocamento e em sua chegada ao país de destino, mas o único enfoque que pode responder de forma eficaz ao vertiginoso aumento dos deslocados forçados é a obtenção da paz nas regiões em conflito e a redução das desigualdades entre Estados. Não se pode atacar os efeitos sem atacar as causas — e atualmente, bem ao contrário, os países desenvolvidos têm contribuído sobremaneira tanto ao aprofundamento dos conflitos armados em suas zonas de interesse como ao aprofundamento das desigualdades econômicas.
Panorama: Como você avalia o papel das potências internacionais na crise dos refugiados sírios?
As potências internacionais têm desempenhado um papel vergonhoso, em flagrante descumprimento de sua própria legislação sobre refúgio. Infelizmente, a apropriação eleitoral do tema das migrações e do refúgio pela extrema direita tem levado governos de todos os matizes a tratar o atual fluxo de refugiados sírios como um problema a ser combatido por meio de controle de fronteira e legislação mais rígidos. Desafortunadamente, superamos atualmente o número de refugiados da Segunda Guerra Mundial, e as imagens que nos chegam da Europa revelam uma tragédia humanitária a céu aberto e em tempo real. Isso, no entanto, não tem levado as potências a rever suas políticas no Oriente Médio e, em especial, sua atitude diante da Síria. Os atentados de novembro em Paris contribuíram tanto para estigmatizar refugiados sírios como para que a França se envolvesse ainda mais nos combates em curso.
Panorama: E em relação à crise dos refugiados do Oriente Médio e da África, que intensificou a já complexa questão dos fluxos migratórios internacionais, qual a sua percepção?
Na minha opinião, os números ajudam muito nessa avaliação, embora muitas das estatísticas disponíveis mereçam críticas, sobretudo por sua incompletude. Não obstante, os números disponíveis permitem compreender que a ampla maioria dos refugiados se encontra nos países em desenvolvimento (segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, ACNUR, seriam 86%), grande parte deles instalada em campos de refugiados na Turquia, no Paquistão e no Líbano (onde se encontram 30% do total de refugiados), assim como Irã, Etiópia, Jordânia e Quênia. Em outras palavras, a Europa não é nem de longe a região mais atingida pelo fluxo contemporâneo de refugiados. Estima-se que hoje existam mais de 60 milhões de deslocados forçados, dos quais mais de 20 milhões deslocaram-se para um país diferente daquele em que residiam (ou seja, são refugiados), provenientes principalmente da Síria, do Afeganistão e da Somália. Já no que se refere às migrações, segundo a Organização das Nações Unidas, o percentual de 3,2% da população mundial mantém-se sem grandes alterações desde 1995, o que hoje representa cerca de 250 milhões de pessoas. Caso a legislação internacional sobre refúgio fosse obedecida, o fluxo atual de migrantes sírios não complicaria a questão migratória porque os países de destino seriam obrigados a integrar essas pessoas em suas sociedades até a cessação dos conflitos armados, eis que o refúgio, em princípio, é um estatuto jurídico transitório.
Panorama: O Brasil tem sido um polo receptor de fluxos migratórios de refugiados sírios e haitianos. Como você avalia os desafios e a postura do Brasil na gestão desse tema?
Gostaria, antes de mais nada, de atenuar essa afirmação. Em comparação a outros países, o Brasil tem recebido poucos refugiados sírios. Em julho de 2015, segundo o ACNUR, a Turquia, por exemplo, acolhia 1,8 milhão de refugiados sírios, enquanto 1,1 milhão encontrava-se no Líbano. Quanto aos migrantes haitianos, segundo a literatura especializada, existem três grandes polos migratórios: o Caribe, a América do Norte e a Europa. Preocupa-me a falsa ideia, muitas vezes propalada pelos meios de comunicação, de que o Brasil tem sofrido uma “onda” ou uma “invasão” de migrantes e refugiados. Estima-se que, no atual ciclo migratório, o Brasil tenha um número de emigrantes equivalente ou superior ao número de imigrantes que recebe.
Creio que o Brasil fez muitos progressos na gestão desse tema, mas ainda tem muito por avançar. Precisamos com urgência de uma legislação adequada e de uma coordenação entre unidades federativas e igualmente entre setores para que as migrações e o refúgio não gerem crises humanitárias ou políticas a cada fluxo pontual. A chegada dos haitianos no Acre e seu encaminhamento a São Paulo, por exemplo, foi uma verdadeira comédia de erros. A migração é um fenômeno altamente positivo para os países de acolhida, tanto do ponto de vista cultural como do econômico. Já o refúgio é uma obrigação ética de um Estado de Direito que mereça tal nome. Qualquer um de nós pode tornar-se um migrante ou refugiado, por vontade ou por necessidade. É essa consciência que falta tanto ao Estado como à sociedade brasileiros, não raro incapazes de superar os preconceitos que grassam em nosso território para ver nos migrantes negros e refugiados árabes as feições de nossos antepassados — principalmente africanos, asiáticos e europeus, em sua maioria pobres e desgarrados como os migrantes de hoje — que simplesmente construíram o Brasil.