O Panorama Internacional FEE traz ao debate, em sua terceira edição, o tema das migrações internacionais. O fenômeno das migrações humanas tem sido recorrente no processo evolutivo das sociedades. Suas dimensões, suas causas e seus efeitos encontram-se na seara da política, da economia, da religião, do histórico das mudanças climáticas, etc. A complexidade da questão é de extrema relevância para o entendimento de outros fenômenos históricos, políticos, econômicos e sociais. Como entender, por exemplo, a formação dos Estados nacionais e de seus sistemas políticos e econômicos ao longo da história sem levar em consideração o papel dos fluxos migratórios no contexto de todos esses processos?
Dada a complexidade inerente à dinâmica própria dos movimentos migratórios, atribuir a esses fenômenos o rótulo de “crise” parece ser redundante na medida em que as migrações se configuram em um desafio cotidiano para os países. Dessa forma, tem-se a impressão de que o potencial de crise está inversamente relacionado à capacidade dos Estados de lidar com o influxo de estrangeiros em territórios nacionais. Por outro lado, tem-se a percepção de que as causas, muitas vezes, se relacionam com o fracasso dos Estados em proverem as condições para a permanência de seus cidadãos em sua terra natal. Assim, levando-se em consideração que as políticas públicas dos Estados estão cada vez mais condicionadas às expectativas positivas dos investidores internacionais em relação à gestão de suas contas públicas nacionais, a adoção de políticas migratórias pelos países tem o desafio, dentre muitos outros, de se enquadrar no escopo econômico há muito tempo designado à atração dos fluxos internacionais de capitais.
Nos dois extremos dessa problemática, país natal e país receptor, evidenciam-se subprodutos incontestáveis do sistema capitalista no qual a economia do planeta está inserida: os perdedores e os ganhadores. Nesse sentido, tem-se observado que a divisão internacional do trabalho, que há muito tempo cristalizou o papel de cada país dentro do sistema econômico global, vem sendo paulatinamente reconfigurada pela pulverização dos processos produtivos em escala mundial, naquilo que se convencionou chamar de cadeias globais de valor.
Os países centrais que já alcançaram elevados níveis de desenvolvimento econômico e social para suas populações, muitas vezes à custa da pilhagem e do colonialismo de povos da periferia global (Ásia, América Latina e África), buscam manter o bem-estar social “conquistado”. Já os países periféricos, detentores mundiais de matérias-primas estratégicas, seguem, inercialmente a passos lentos, e em condições totalmente distintas, o caminho traçado pelos campeões do capitalismo global com o intuito de também assegurar algum bem-estar econômico e social aos seus nacionais. Dessa forma, essa interdependência econômica acentua os graus de dependência e vulnerabilidade entre os países e consolida canais de transmissão que viabilizam, por exemplo, a construção de pontes migratórias Norte-Norte, Sul-Sul e Sul-Norte.
Ao tratar da temática migratória no contexto internacional, também é comum atribuir às guerras ou à emergência de conflitos étnico-religiosos um peso crucial para entender a intensidade e o direcionamento dos fluxos migratórios. Em outros casos, eventos climáticos extremos (terremotos, tsunamis, desertificação de áreas agricultáveis, secas prolongadas, etc.) são apontados como força motriz de grandes migrações. No entanto, essa temática demanda uma análise política que insira essas variáveis em uma abordagem sistêmica que dê conta das complexas disputas interestatais por recursos de poder no âmbito do sistema internacional. Adicionalmente, e de forma complementar, essa análise deve levar em consideração, também, as contradições do sistema capitalista que se potencializam à medida que o processo de globalização se intensifica.
No último ano, o desafio da União Europeia frente à explosão do número de imigrantes internacionais que chegaram às fronteiras de seus países-membros reacendeu a discussão sobre os fluxos migratórios internacionais. Em 2015, muitos dos imigrantes que fugiam dos conflitos na Síria e no continente africano buscaram asilo nos países europeus. O envolvimento direto dos Estados Unidos e das potências europeias em grande parte desses conflitos os colocou no centro do debate como atores-chave no equacionamento da crise dos refugiados.
No Brasil, essa discussão já vinha sendo feita pelas autoridades federais desde 2010, quando o País passou a receber o influxo de imigrantes haitianos que deixaram seu país após a ocorrência de um grande terremoto naquele mesmo ano. Com a eclosão da Guerra Civil na Síria em 2011, o Brasil também passou a receber refugiados sírios em território nacional.
Tanto no Brasil quanto na Europa, a discussão sobre os refugiados provocou debates sobre a responsabilidade dos países de acolherem ou não essas pessoas. No cerne das argumentações, estão os impactos do influxo migratório nos mercados de trabalho dos países receptores; a pressão desse influxo migratório sobre o sistema de bem-estar social dos Estados acolhedores; além de questões xenófobas, como o impacto cultural e religioso do estrangeiro sobre as sociedades locais.
No Rio Grande do Sul, estado da Federação com grande influência estrangeira na sua formação cultural, econômica e social (portugueses, escravos africanos, italianos e alemães), a questão migratória ganhou relevância pelo fato de o Estado ter-se tornado polo de atração de mão de obra haitiana que entra no Brasil pelo Estado do Acre. Além dos haitianos, é comum encontrar imigrantes africanos que buscam oportunidades de emprego e renda no Rio Grande do Sul.
Assim, considerando-se a complexidade e a contemporaneidade dessa temática nos âmbitos internacional, nacional e local, o Panorama Internacional FEE traz esse olhar sistêmico sobre o atual cenário das migrações internacionais e suas interações globais nos campos da economia e da geopolítica, assim como sobre o papel do Brasil diante desse desafio. Mais do que encontrar respostas e apontar soluções para essa questão, esta edição visa à problematização desse tópico, que pode ser analisado a partir das mais variadas perspectivas.
O pesquisador e economista Jaime Carrion Fialkow faz, no primeiro texto da publicação, uma leitura preliminar sobre os principais processos pertinentes à migração internacional nos dias atuais. Com base nos dados de agências das Nações Unidas que lidam com os fluxos migratórios internacionais, seu texto elenca as principais variáveis em cada um dos fluxos migratórios sugeridos em sua pesquisa. No segundo artigo, os pesquisadores em Relações Internacionais Ricardo Fagundes Leães e Bruno Mariotto Jubran analisam a variável central da atual crise dos refugiados na Europa: a guerra civil na Síria. Fugindo de abordagens dicotômicas que buscam identificar as forças do bem e do mal, os pesquisadores lançam luz sobre a complexa teia de conflitos de interesses geopolíticos que envolvem uma gama variada de atores internacionais na região do Oriente Médio. Já no terceiro trabalho desta edição, a economista e pesquisadora Iracema Keila Castelo Branco trata essa temática sob uma perspectiva nacional, investigando o impacto do recente fluxo migratório internacional dos últimos cinco anos sobre o mercado de trabalho no Brasil e no Rio Grande do Sul. No quarto e último artigo, o pesquisador e historiador Álvaro Antônio Klafke analisa, em três momentos históricos distintos, a percepção da imprensa sobre as discussões que envolvem os influxos migratórios no Rio Grande do Sul.
Por fim, o Panorama Internacional FEE entrevista a Professora Doutora do Curso de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo Deisy Ventura. A partir de seu vasto currículo de pesquisas em migrações humanas internacionais, Deisy Ventura expõe suas impressões sobre essa relevante temática internacional, analisando o posicionamento dos principais atores internacionais, assim como a postura do Brasil frente a esse desafio.