Nos últimos anos, o mundo vem testemunhando modificações significativas na distribuição da produção de inovações tecnológicas. Até pouco tempo atrás, o desenvolvimento das inovações mais importantes estava concentrado nos países da conhecida Tríade (EUA-Canadá, União Europeia (UE) e Japão). Entretanto, outros países vêm aparecendo no cenário mundial das inovações, e alguns dos principais estão no grupo do BRICS — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul —, com forte destaque para os chineses. A China tem realizado importantes esforços em termos de investimentos e de políticas de ciência e tecnologia (C&T), o que se pretende mostrar aqui, apontando possíveis lições para países como o Brasil, mas, também, apresentando os desafios próprios de um processo de mudança tecnológica em andamento que pode ter repercussões de alcance mundial.
Desde 1978, a China vem desenvolvendo uma série de reformas de grande impacto na área de C&T que tem melhorado tanto a educação superior como as atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) no País, principalmente através dos Planos Quinquenais do Governo Central. Contudo, essa estratégia de desenvolvimento científico e tecnológico sofreu uma mudança importante após 2008, no sentido de um maior domínio tecnológico do País. Com a eclosão, nesse ano, da crise financeira global, o invejável crescimento econômico da China, traduzido em altas e constantes taxas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), sofreu um revés que impactou negativamente sua economia, baseada numa industrialização centrada, basicamente, na adaptação e na imitação de tecnologias tradicionais dos países desenvolvidos. Pressionados por essa situação adversa, a resposta dos chineses foi a construção de infraestruturas próprias de inovação e a melhoria da competitividade das instituições de pesquisa do País. Assim, a inovação na China está tendo um papel cada vez mais proeminente em sua economia, e o caminho da inovação está sendo percorrido através de P&D e de parcerias internacionais promovidas pelas empresas chinesas.
Nesse contexto de mudanças profundas, a China apostou, e segue apostando, em duas iniciativas no campo das políticas de desenvolvimento da C&T: o Plano Quinquenal (2011-15) e o Plano Nacional (2006-20). O Plano Quinquenal aportou um montante de US$ 1,7 trilhão em vários setores estratégicos em termos tecnológicos, entre os quais energia renovável, biotecnologia, tecnologias eficientes e ecológicas, carros elétricos e nova geração de Tecnologia da Informação (TI). Já o Plano Nacional, de médio e longo prazos, visa enfrentar o que talvez seja o maior desafio chinês, que é melhorar a capacidade de inovação do seu setor de negócios (empresarial).
Apesar dos desafios, é evidente o ótimo desempenho da China em termos de investimentos em C&T no seu próprio território. Observa-se um espantoso crescimento das despesas em P&D, em que a China passou de um pouco mais de US$ 41 bilhões de investimentos no ano de 2000 para mais de US$ 344 bilhões em 2014, um acréscimo de oito vezes no período (Figura 1). Nesse quesito, ao observar os últimos anos, a China só fica atrás dos Estados Unidos e já ultrapassou o conjunto de gastos da União Europeia (28 países). Além disso, mantendo-se constantes as tendências de crescimento de investimentos da China e dos EUA, os chineses devem ultrapassar os norte-americanos por volta de 2019 (projeção da Organização Para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE)).1 Destacam-se, igualmente, a constância e a velocidade do crescimento dos investimentos da China em comparação aos dos outros países desenvolvidos e ao do conjunto da UE.
Ressalta-se também o percentual desse tipo de gasto em relação ao PIB do País, apesar de não ser o maior entre os países analisados (Figura 2). Efetivamente, essa relação tem aumentado de forma mais robusta na China, enquanto as outras nações pareceram hesitar, principalmente no quinquênio 2008-12. Os chineses alcançaram o percentual de 2% em 2013, continuando o aumento no ano seguinte, abaixo da média dos países da OCDE (composta pelo Japão, EUA, muitos europeus e outras nações desenvolvidas), porém superior à média da UE. Embora os chineses tenham uma relação P&D/PIB inferior à meta de 3% fixada para a UE (por meio da Estratégia de Lisboa, da Comissão Europeia, e do plano Europa 2020), não se deve descartar a possibilidade de eles alcançarem essa taxa nos próximos anos.
Apesar desse quadro geral positivo, é importante enfatizar o que os especialistas nos estudos de inovação e suas políticas não cansam de lembrar: que somente o aumento das despesas em P&D não garante uma maior geração de inovações, em especial as mais radicais. Por isso é primordial analisar, também, alguns atributos das políticas de C&T chinesas que mostram uma estratégia ao mesmo tempo ambiciosa e visionária no campo das inovações, bem como as dificuldades inerentes a esse processo. Em primeiro lugar, essas políticas têm como um dos seus principais marcos orientadores o enfrentamento dos mais sérios desafios sociais chineses por meio das inovações, como, por exemplo, a segurança alimentar, a saúde pública, o envelhecimento e a prevenção de desastres. Ademais, a China vem impulsionando processos de inovação inclusiva no seu território, que são inovações para e/ou (produzidas) por estratos da população de baixa renda. Aqui se podem ressaltar o Programa Spark para a promoção do desenvolvimento agropecuário e rural, através do acesso a novas tecnologias e o respectivo treinamento, e o Programa de C&T para o Bem-estar Público para o fomento à comercialização de tecnologias que possam beneficiar o desenvolvimento social, ambos dirigidos pelo Ministério da C&T. Tais políticas de inclusão podem ter um enorme impacto na economia e na sociedade chinesas, no sentido do surgimento de um grande contingente de consumidores e de profissionais cada vez mais qualificados (e interessados em inovar).
Em segundo lugar, está a organização da uma geografia da inovação dentro da China. Já se podem contemplar, no território chinês, novos polos de inovação, alguns de nível mundial. Entre os principais, estão as cidades, e suas respectivas províncias, de Guangdong, Beijing e Shanghai, que concentram em torno de 73% das patentes do País. Esse fato deixa clara a questão da concentração chinesa da capacidade científica e tecnológica, que se torna um problema à luz de uma importante pesquisa de geógrafos econômicos da London School of Economics.2 O estudo mostra que a distribuição da inovação na China é comandada pelas forças das aglomerações (população, especialização produtiva e infraestrutura). No entanto, em vez de gerarem a difusão de tecnologias (que seria positivo), essas regiões mais desenvolvidas acabam provocando efeitos negativos no desenvolvimento de outras.
A terceira e última característica a destacar é a aposta da China no desenvolvimento de tecnologias na revolução “verde” (ou limpa) — grande mudança tecnológica que é prevista para as próximas décadas por alguns especialistas em estudos de inovação. A principal área de tecnologia “verde” favorecida pela China é a das energias renováveis (solar, eólica, etc.), o que é comprovado pelos altos investimentos nessa área, um dos maiores em nível mundial (Gráfico 1). Desde 2014, a China é o país que mais gasta em P&D para esse tipo de energias — somente em 2015, foram dispendidos mais de US$ 100 bilhões (quase 36% de todo o investimento mundial). Além do mais, outros importantes países no desenvolvimento dessas tecnologias — como Alemanha, Finlândia, França, Dinamarca e Noruega — vêm investindo também, porém em menor intensidade do que os chineses, enquanto os Estados Unidos e o Reino Unido vêm mostrando uma atitude hesitante nesses investimentos. Vale ressaltar que a China, para além dos investimentos, vem adotando uma visão semelhante à da Alemanha, que entende a transformação tecnológica “verde” não somente em termos tecnológicos, mas, também, como uma mudança na economia e na sociedade — produção e estilo de vida “verdes” —, orientação essa que estabelece a sustentabilidade (controle da poluição e do desperdício) como vantagem competitiva.
Entretanto, muito provavelmente a China não consiga realizar uma revolução tecnológica “verde” sozinha, sobretudo numa realidade mundial cada vez mais globalizada. E isso é preocupante num contexto de crise mundial, ainda persistente, em que os Estados Unidos continuam vacilantes em P&D para as tecnologias limpas, e a Zona do Euro está dirigindo sua atenção para as políticas de austeridade econômica e não para as soluções reais, como poderia ser o caminho das inovações nas tecnologias verdes. Aqui não se pode deixar de lado o Brasil, cuja importância fica evidente no Gráfico 1, que exibe os investimentos estratégicos em energias renováveis, e na sua participação no BRICS, em especial com a possibilidade da China como parceiro preferencial, o que depende dos próximos passos da política econômica e tecnológica brasileira.
Para finalizar, duas questões ficam no ar em relação ao papel da China numa provável revolução tecnológica em andamento. A primeira está relacionada ao problema da falta de um ambiente de negócios competitivo favorável às inovações, como apresentado anteriormente. Alguns especialistas apontam que um dos principais pilares desse problema está na ausência de capital de risco, e, consequentemente, o ambiente de negócios é pouco favorável para startups inovadoras (empresas emergentes em nichos específicos de mercado). Tal problemática tem sua origem no predomínio de empresas estatais pouco interessadas em inovar e, consequentemente, na ausência de competição entre empresas, o que impede o surgimento de um ambiente de pressão para inovar. Contudo essa análise está em parte equivocada, porque o papel do Estado é subestimado, como infelizmente é correntemente comum ver na área empresarial e na opinião pública em geral. Uma parcela importante de pesquisadores em inovações tem demostrado a importância do Estado como promotor, direto e indireto, das principais inovações no mundo, com especial destaque para o exemplo dos Estados Unidos, onde as grandes revoluções tecnológicas (como da microinformática) ocorreram na convergência do Estado com o setor privado, e não com o capital de risco privado como grande incentivador das inovações. Uma discussão bem fundamentada sobre esse tema encontra-se no livro intitulado O estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs. setor privado, da economista ítalo-americana Mariana Mazzucato, publicado no Brasil em 2014.
A possível solução para esse problema está na realização de mudanças nas instituições e nas organizações chinesas no sentido de torná-las mais flexíveis, o que inevitavelmente passa pelo caminho da descentralização, pelo qual o governo chinês ainda não mostrou sinais de seguir. Essa situação conduz à segunda questão, relacionada ao papel tecnológico da China no mundo. A história das mudanças tecnológicas no mundo tem mostrado que as revoluções tecnológicas, muito frequentemente, acontecem e são reforçadas por algum grau de inclusão social e econômica da população de suas respectivas regiões de influência (aumento do mercado consumidor, maior qualificação da mão de obra, etc.). Nesse sentido, a China tem dado mostras de seguir esse caminho por meio da promoção das inovações inclusivas, ou seja, aquelas inovações voltadas aos estratos da população de baixa renda e/ou desenvolvidas por esses mesmos estratos. Portanto, esse é mais um motivo para termos um olhar atento nesse país asiático que, em breve, assumirá a dianteira no tabuleiro tecnológico mundial.
1Conforme o último OECD Science, Technology and Industry Outlook 2014, relatório bianual da OCDE sobre as principais tendências nos campos da ciência, da tecnologia e da inovação no mundo.
2 CRESCENZI, R.; RODRÍGUEZ-POSE, A.; STORPER, M. The territorial dynamics of innovation in China and India. Journal of Economic Geography, v. 12, n. 5, p. 1055-1085, 2012.