Go East! A atualização da estratégia e das táticas na política externa dos EUA para a Ásia

No final de 2011, um artigo da revista Foreign Policy asseverava que os Estados Unidos estavam promovendo uma mudança de ênfase em sua política externa. Esse texto era assinado por ninguém menos do que a então Secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton. No subtítulo, lia-se que “o futuro da política vai ser decidido na Ásia e não no Afeganistão ou no Iraque”[1], e, assim, conclamava-se que os Estados Unidos assumissem um protagonismo na emergência da Ásia Oriental como centro econômico e, cada vez mais, geopolítico. Para isso, defendia-se que os Estados Unidos, em vez de simplesmente trazerem de volta suas tropas usadas nos dois países mencionados, deveriam realocá-las na região da Ásia-Pacífico, de forma a que o País conservasse sua condição de liderança e de garantidor da ordem global liberal.

É notável que o artigo, assim como outros discursos da Casa Branca e do Departamento de Estado norte-americano, se esforça para evitar uma retórica explícita de oposição à China, ao que indica, a principal novidade da estratégia norte-americana para a Ásia. A presença e a hegemonia militar e econômica dos Estados Unidos na região, como veremos, têm sido constantes ao longo das últimas décadas, e não exatamente uma novidade recente.

O pivô para a Ásia-Pacífico corresponde a uma estratégia de fazer frente à China, que, por sua vez, explica as novas táticas adotadas mesmo antes da publicação do artigo de Clinton. A mudança estratégica, que em alguns aspectos já se observa desde a década de 90, origina-se da reafirmação da supremacia regional dos EUA em um contexto de rápida ascensão chinesa. Para cumprir essa tarefa, não apenas se prevê a reconcentração de forças militares pela região, como também se propõem projetos quanto à regulação do comércio, a iniciativas diplomáticas e ao robustecimento das alianças militares com o Japão, com a Coreia do Sul e com países do Sudeste Asiático. Entretanto, a orientação geral da política exterior norte-americana permanece a mesma em relação às décadas passadas, isto é, de manter o País como a principal força promotora de regimes de comércio, fluxos econômicos, navegação e meio ambiente naquela região.

A presença atual dos Estados Unidos na Ásia não é novidade. Ainda em meados do século XIX, o País ganhou relevância no Pacífico, como evidenciam os episódios de emprego da marinha para impor tratados à China e ao Japão. No final do século, os EUA emergiam como uma grande força no Oceano Pacífico, com as conquistas dos territórios do Havaí e das Filipinas. Após a Segunda Guerra Mundial, a supremacia dos EUA consagrou-se com a derrota do Japão e com o enfraquecimento relativo da Grã-Bretanha e da França. Desde então, os Estados Unidos conservam a primazia na Ásia-Pacífico, graças à manutenção, nessa parte do mundo, de grande parcela de sua frota naval, ao cultivo de uma densa rede de aliados regionais e de bases militares ao longo de uma faixa que se inicia no Alasca, passando por Ilhas Aleutas, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Filipinas, até a Malásia, inclusive com o controle de fato do Estreito de Malaca, por onde passam importantes rotas marítimas globais. Essa presença maciça na Ásia-Pacífico, equiparável apenas à relevância da Europa Ocidental, foi uma constante na ação externa dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, no propósito de não apenas barrar um possível avanço militar da União Soviética e da República Popular da China, como também de instrumentalizar a dissuasão nuclear contra ambas as nações.

Além da presença militar, a política externa norte-americana estimulou explicitamente o empoderamento econômico de diversos países daquela região, e o Plano Colombo é exemplar[2]. Essa política pode ser entendida, seja por questões estratégicas, para o enfrentamento de ameaças comuns, seja por ambições econômicas, dada a crescente transnacionalização de conglomerados empresariais norte-americanos. O Japão logrou sua reconstrução econômica ainda no final da década de 50, graças, também, à preexistência de importantes grupos econômicos nacionais, entre outros fatores. Nas décadas seguintes, sucederam-se “ondas” de milagres econômicos, como a dos Tigres Asiáticos nos anos 70 e 80 (Coreia do Sul, Hong Kong, Singapura e Taiwan) e dos Novos Tigres nas décadas seguintes (Filipinas, Indonésia, Malásia, Tailândia e, mais recentemente, Vietnã).

No caso chinês, ainda em 1971, o País não apenas normalizava as relações com os Estados Unidos, como também revia seu posicionamento global, tornando-se um importante aliado na oposição à União Soviética. Isso permitiu o influxo de investimentos dos próprios Estados Unidos e principalmente do Japão, mesmo antes das reformas econômicas de Deng Xiaoping, no final da década. Desde então, o avanço econômico da China tem sido notável, pois confere pujança ao País nas economias regional e global. A dissolução da União Soviética em 1991 e a emergência de uma China economicamente forte e politicamente mais confiante passaram a ser, cada vez mais, alvo de preocupação nos EUA, ainda que segmentos econômicos nesse país mantivessem interesse na continuidade do progresso chinês. O resultado foi uma política externa norte-americana ambígua em relação à China nesse período: se, por um lado, os EUA dificultaram a adesão chinesa à Organização Mundial do Comércio e proibiram o comércio de armamentos por conta dos trágicos eventos de 1989[3], por outro não interromperam ou sequer diminuíram o volume dos fluxos econômicos entre os dois países.

Durante a campanha eleitoral em 2008, Barack H. Obama e seus correligionários enfatizavam a necessidade de os Estados Unidos “voltarem-se” ao continente asiático e criticavam a permanência de militares no Iraque e no Afeganistão. Após ele assumir a presidência em 2009, as relações diplomáticas com a China deterioraram-se diante de desentendimentos nas políticas comercial, monetária e de meio ambiente. Ademais, a disputa sobre o controle de territórios marítimos entre os países da região, inclusive entre a China e alguns dos aliados locais dos EUA, agravou-se no período.

Nesse contexto, o pivô Ásia-Pacífico engloba táticas em pelo menos três frentes. A primeira delas é militar e ocorre via ampliação do contingente estacionado no Japão e, em menor escala, na Austrália e na Tailândia. Há, também, um processo análogo quanto à Marinha, em que se prevê o aumento de 50% para 60% do potencial naval total dos EUA alocado na região.[4] Do ponto de vista qualitativo, chama a atenção o lançamento de uma doutrina de Batalha Ar-Mar, cujo desenho, de acordo com especialistas militares norte-americanos, é uma resposta ao desenvolvimento da doutrina do tipo “Negação de Acesso e Área” por países inclusive a China.

A segunda forma de atuação dá-se por mecanismos econômicos, cujo carro-chefe tem sido a Parceria Transpacífico (TPP, de sua abreviação em inglês). O TPP, que foi assinado no início de 2016 e aguarda ratificações, abrange questões que vão além da liberalização comercial, como regulação do trabalho, direitos de propriedade e outros temas, e envolve 11 países da bacia do Pacífico, com as notáveis exceções da China e da Rússia.[5] O terceiro método de promoção da influência tem sido a própria diplomacia, via ampliação e fortalecimento de alianças regionais, sobretudo a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean), com a qual se assinou um tratado de amizade. Além disso, cabe destacar a continuidade e, em alguns casos, o aprofundamento nas relações bilaterais com a Índia[6], a Coreia do Sul e o Japão, um processo que já era visível durante a administração Bush.

O pivô asiático é um processo em curso, interpretado como uma readaptação estratégica dos EUA diante da percepção de que a China questione a correlação de forças atual, mais favorável atualmente a Washington do que a Pequim. Embora a China tenha ganhado espaço no plano econômico e aumentado os dispêndios militares, mitigando o abismo em relação aos EUA, estes últimos permanecem na dianteira sob diversos prismas, como na competição militar (sobretudo marítima), na influência sobre atores regionais, no nível de desenvolvimento tecnológico e na capacidade de impor regras e regimes a outros países. Essa estratégia tem sido possível graças ao gradual desengajamento norte-americano no Oriente Médio, ainda que graves problemas na Europa, sobretudo na Ucrânia, possam distrair Washington. Ademais, essa nova conjuntura reserva a outras partes do mundo, especialmente à América do Sul e à África Subsaariana, um papel ainda mais secundário entre as prioridades estratégicas dos EUA.


[1]  CLINTON, H. America’s Pacific Century: the future of politics will be decided in Asia, not Afghanistan or Iraq, and the United States will be right at the center of the action. Foreign Affairs, Washington, DC, 11 Oct. 2011. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2016.

[2]  Por vezes apelidado de “Plano Marshall da Ásia”, em referência ao plano de reconstrução da Europa, o Plano Colombo é, na realidade, uma organização internacional, cujo propósito não era a reconstrução econômica, mas o desenvolvimento de países no Sul, no Sudeste e no Leste Asiático.

[3]  Nesse ano, registram-se protestos em várias cidades na China, respondidos com vigorosa força pelas autoridades nacionais, chegando a provocar um massacre na Praça Celestial, em Pequim.

[4]  SUTTER, R. G. et al. Balancing acts:  the U.S. rebalance and Asia-Pacific stability. Disponível em:. Acesso em 13 set. 2016.

[5]  Para uma visão mais aprofundada acerca do TPP e de outros mega-acordos comerciais, ver: VALDEZ, R. O Brasil e os mega-acordos comerciais. Panorama Internacional FEE, Porto Alegre, v. 1, n. 4, 2016. Disponível em: . Acesso em 14 set. 2016.

[6]  Em 2010, a Índia recebeu apoio explícito dos EUA para assumir um assento permanente em uma eventual reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas.