Entrevista: Acordo comercial entre Mercosul e União Europeia em debate

O acordo de livre-comércio entre o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a União Europeia (UE) é tema de discussões tanto na academia quanto no plano empresarial. Para estimular o debate, a Panorama Internacional convidou dois entrevistados para responderem a questões que ajudam a compreender o assunto. O consultor internacional de empresas Frederico Behrends avalia que, apesar dos entraves, o acordo pode ter um entendimento político até o fim deste ano, para ser implantado em 2018. Já o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Luiz Augusto Faria entende que o Brasil hoje tem a vantagem da preferência comercial com a América Latina, o que seria colocado em xeque, caso se concretizasse o acordo de livre-comércio com a UE.

Conheça abaixo os entrevistados desta edição:

Frederico L. Behrends é consultor internacional de empresas e possui mais de 40 anos de experiência em comércio exterior. Químico industrial formado pela Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é conselheiro e consultor do Conselho de Comércio Exterior (Concex) da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (FIERGS), coordenador do Grupo Temático de Negociações Internacionais (GTNI) da FIERGS e conselheiro de comércio exterior (Comex) da Federação do Comércio (Fecomércio). Foi professor de vários Cursos de Pós-Graduação em Comércio Exterior, em instituições como UFRGS, Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), Universidade de Caxias do Sul (UCS) e Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

Luiz Augusto Faria é Professor Associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais e nos cursos de graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais. Possui graduação em Ciências Econômicas e mestrado e doutorado em Economia pela UFRGS. Foi pesquisador da Fundação de Economia e Estatística (FEE) entre 1982 e 2014. Pesquisa Economia Política e Economia Internacional e atua principalmente nas análises de economia brasileira, integração econômica, globalização e relações exteriores do Brasil e do Mercado Comum do Sul (Mercosul).

Panorama: Em 2015, as grandes empresas foram responsáveis por 94,35% do valor exportado. Desse total, 244 delas exportaram US$ 145,64 bilhões. Como conciliar os interesses de um pequeno, mas importante, grupo de empresas exportadoras com os interesses das demais empresas nacionais que atuam especificamente no mercado doméstico brasileiro?

Frederico L. Behrends: Existe um mecanismo de consulta ao setor privado, no que diz respeito às negociações internacionais feitas pelo Governo brasileiro, chamado Coalizão Empresarial Brasileira (CEB). A CEB, cuja coordenação é da Confederação Nacional da Indústria, é composta por entidades de classes, como associações, federações e sindicatos patronais, que buscam influenciar as estratégias brasileiras de integração internacional, representando o interesse das empresas de sua base, incluindo também as pequenas e médias empresas. Conciliar o interesse de um universo tão heterogêneo de empresas certamente não é uma tarefa das mais fáceis. As dificuldades da harmonização das listas de ofertas é um desafio inerente a todos os países, especialmente àqueles que negociam como blocos. Entretanto, é preciso que se busque um entendimento que possa beneficiar as empresas brasileiras, independentemente do porte. Com relação às empresas brasileiras que atuam somente no mercado doméstico, um acordo dessa magnitude fará com que reflitam sobre sua estratégia de atuação, devido ao aumento acentuado de entrada de produtos europeus. Será primordial que essas empresas busquem parcerias, invistam em tecnologia para seus produtos e na melhoria nos processos de produção, para aumentar sua competitividade. Hoje as empresas brasileiras possuem uma espécie de “redoma” tarifária no Brasil, que as protege com alíquota média de importação de 11%.

Luiz Augusto Faria: A concentração econômica é uma tendência natural do capitalismo, que só pode ser modificada por políticas específicas. A Europa as tem consolidado há décadas, como exemplificam a Política Agrícola Comum e a Política de Desenvolvimento Regional, os dois maiores orçamentos da União Europeia (UE). Nesses dois casos, há uma intenção de dirigir esforços para o desenvolvimento de pequenas empresas, seja por meio da agricultura familiar, seja pelos arranjos produtivos locais, com redes de colaboração entre pequenas firmas. No Mercosul, existe um espaço para o que aqui chamamos de PyMEs (pequenas e médias empresas), em que se procura concentrar políticas de promoção desses segmentos. Mas, para isso, é preciso iniciativa política. Por exemplo, o acordo automotivo foi muito favorável às grandes montadoras, que tiveram ganhos de escala e especialização, mas foi muito ruim para os fornecedores de componentes locais, em grande parte, tragados pelo avanço de fornecedores multinacionais. Impedir que isso se repita exige não apenas requisitos de conteúdo regional mas também crédito e outras formas de incentivo.

Panorama: A negociação de um acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia se estende por mais de duas décadas. Qual o principal entrave para a celebração desse acordo?

Frederico L. Behrends: O acordo passou por diversos obstáculos ao longo dessas últimas duas décadas. Iniciadas as tratativas, em 1999, as negociações do acordo ficaram paralisadas entre 2004 e 2010, quando houve o relançamento durante a cúpula Mercosul-UE. Desde 2010, importantes movimentos foram feitos, mas em uma velocidade bastante lenta, muito em razão da falta de interesse dos Governos brasileiro e argentino à época. O foco da política comercial brasileira, por exemplo, estava distante da negociação de acordos de livre-comércio, que, quando eram eventualmente celebrados, envolviam países com baixa relevância e potencial de intercâmbio. Além disso, houve também um receio da indústria de manufaturados em relação à possibilidade de entrada de produtos europeus de melhor qualidade. Por outro lado, os produtores agropecuários sempre vislumbraram, na conclusão do acordo, uma grande oportunidade de vender para os europeus — um mercado superior a 500 milhões de consumidores. Hoje, com a mudança na postura dos Governos do Brasil e da Argentina, que se aproximam mais de países com maior relevância econômica, e um maior interesse dos europeus, a partir da negativa dos EUA ao acordo Transatlântico, existe a possibilidade de o acordo ter um entendimento político até o fim deste ano, com a implementação sendo feita em 2018.

Luiz Augusto Faria: As negociações tiveram início na última década do século passado, em um ambiente político dominado pelas ideias do liberalismo comercial, uma crença que vê, no aumento dos fluxos de importações e exportações, um benefício para a sociedade per se. Desde então, muita coisa mudou. O Mercosul assumiu uma posição cética em relação ao livre mercado e adotou políticas de promoção do desenvolvimento regional. Além disso, houve a crise de 2008 e a estagnação econômica da Europa. Afora essas mudanças, desde o início, o foco das discussões está no acesso aos mercados de ambas as partes. Os europeus querem maior participação em serviços e produtos industriais, e nós enfrentamos a muralha do protecionismo da política agrícola da União Europeia. Há pouca margem de concessão, por isso, a dificuldade. Além disso, a importância do mercado europeu para a América do Sul é declinante desde o final do século XX. Nosso maior parceiro hoje é a Ásia, com a China à frente.

Panorama: A América Latina, em seu conjunto, é um dos principais destinos das exportações brasileiras de manufaturados e semimanufaturados. Adicionalmente, o consumo doméstico tem uma relevância consistente na formação do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Nesse sentido, em que medida um acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia beneficiaria o Brasil?

Frederico L. Behrends: Um dos principais fatores que tornou o mercado da América Latina tão importante e com tanto potencial, principalmente para o setor industrial brasileiro, é que, ao longo das últimas três décadas, foram negociadas as preferências tarifárias regionais com diversos países no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), além de importantes acordos de complementação econômica, como, por exemplo, os assinados entre o México, o Peru e o Chile. Atualmente, a União Europeia é a principal parceira comercial do Brasil, com um intercâmbio de produtos superior a US$ 64 bilhões, 1/5 do total. A participação das exportações de produtos industrializados para a União Europeia cresceu, em média, 3,6 pontos percentuais nos últimos dois anos. A conclusão do acordo de livre-comércio entre o Mercosul e o bloco europeu, além de ser uma boa oportunidade para a indústria de transformação buscar aprimorar sua competitividade, no que diz respeito tanto à tecnologia como também a processos e governança, traria um benefício muito grande aos setores agroindustrial e de máquinas e implementos agrícolas, uma indústria muito importante para o nosso Estado. Portanto, o impacto de um mega-acordo desse porte é bastante grande e é fundamental que tanto o Governo — a partir da realização de reformas estruturais e investimentos em infraestrutura — quanto as empresas preparem-se para a abertura de mercado que o País realizará nos próximos anos.

Luiz Augusto Faria: O Brasil exporta para a América Latina produtos industrializados de maior valor agregado e, para a Europa, produtos básicos. Não foi assim no passado recente, quando também exportávamos para a Europa e os EUA bens industrializados. Foi o uso da taxa de câmbio como instrumento contra a inflação que retirou competitividade da nossa indústria. Nas últimas duas ou três décadas, fomos perdendo mercado para os países asiáticos. Enquanto a taxa de câmbio for mantida no patamar valorizado dos últimos anos, não há muita perspectiva de ganharmos competividade no setor industrial e, muito menos, no de serviços. O que temos hoje é a vantagem da preferência comercial com nossos vizinhos, o que um acordo de livre-comércio, seja com a UE, seja com os EUA, poria em xeque. A perda de competitividade pelo câmbio apreciado já consumou um retrocesso muito grande na composição de nossos fluxos de comércio. Voltamos a trocar matérias-primas por produtos de maior conteúdo tecnológico. Além disso, mesmo no mercado sul-americano, Brasil e Argentina vêm sofrendo a concorrência asiática na oferta de produtos industrializados.

Panorama: Brasil e Argentina, principais economias da região e do Mercosul, adotam, atualmente, uma gestão econômica mais alinhada com a ortodoxia liberal. Contudo, a exemplo dos Estados Unidos, a Europa vive um processo político-econômico mais isolacionista, focado em temas domésticos. Essas diferenças de contextos prejudicam as negociações?

Frederico L. Behrends: Percebe-se, como rescaldo da crise econômica internacional ocorrida em 2008, o fortalecimento das críticas à globalização e ao projeto de integração iniciado há mais de 60 anos, levando a alterar o equilíbrio político em diversos países da União, a partir da crescente popularidade de partidos de extrema-direita. Entretanto, a Comissão Europeia, encarregada das negociações internacionais dentro do bloco, não parece ter alterado sua política comercial na busca por acesso a novos mercados e negociações tidas como estratégicas e relevantes. Além da negociação com o Mercosul, a União Europeia negociou acordos com outros parceiros de importante relevância econômica, como Coreia do Sul, Canadá, Chile, México, entre outros. Com a eleição de Donald Trump ao Governo dos EUA, além da sua decisão de paralisar o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP), acordos como o Transatlântico (entre EUA e União Europeia) também não avançaram, o que aumentou o interesse dos europeus em concluir o acordo com o Mercosul. O que causou certa apreensão por parte do Mercosul foi a disputada eleição na França entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen. Porém, com a vitória do candidato pró-União Europeia, as perspectivas de apoio permanecem. Na Alemanha, também haverá eleições este ano; no entanto, espera-se a manutenção do partido de Angela Merkel. Logo, há um interesse mútuo dos blocos em concluir o acordo o quanto antes, a despeito das questões sociopolíticas que atualmente afetam os países europeus, como, por exemplo, o Britain Exit (Brexit).

Luiz Augusto Faria: Esse é outro problema. As mudanças políticas recentes nos dois principais atores do Mercosul trazem de volta o ambiente dos anos 90. Uma visão ideológica, no mau sentido do termo, volta a predominar, propondo concessões unilaterais sem nenhum tipo de contrapartida. Felizmente, hoje temos a tarifa externa comum como anteparo, obrigando que a abertura do mercado regional seja negociada pelo conjunto dos países, o que impõe um necessário pragmatismo e garante um nível maior de proteção. Entretanto, o endividamento argentino e o desmonte da cadeia de petróleo e infraestrutura no Brasil são um sinal de que estamos comprometendo as possibilidades de um desenvolvimento futuro. Será um enorme desperdício não utilizarmos as imensas jazidas de hidrocarbonetos sul-americanas para impulsionar a industrialização e o desenvolvimento tecnológico. Além disso, a renda gerada por esse setor tem potencial de produzir excedentes para financiar políticas sociais, como previa a lei brasileira antes de ser modificada no quadro de desgoverno atual.

Panorama: É sabido que a economia gaúcha é extremamente interligada ao dinamismo do mercado nacional, que, por sua vez, tem uma forte relação de interdependência com a economia internacional. Seria, então, possível elencar os setores da economia gaúcha que se beneficiariam e os que perderiam, caso um acordo de livre-comércio seja efetivamente firmado entre os dois blocos comerciais?

Frederico L. Behrends: Produtos que possuem um alto diferencial competitivo tendem a ter maior sucesso na implementação de um acordo internacional, uma vez que, com tarifas zeradas, os custos serão reduzidos. Aqueles que tiverem baixo diferencial competitivo, por forte concorrência, por falta de agregação de valor ou por tecnologias ultrapassadas, certamente terão mais dificuldades. Sua vantagem será maior facilidade para transferência de tecnologias e importação de insumos. Por isso, é fundamental que as empresas analisem sua atuação, seus nichos de mercados e, principalmente, seus concorrentes, de modo a criarem alternativas que incrementem sua competitividade. Vale ressaltar também que o acordo contemplará convergência regulatória, que preverá a harmonização de normas para a produção de determinados produtos. Em linhas gerais, podemos destacar que a indústria calçadista será beneficiada, visto que a tarifa europeia para esse produto ainda é significativa e afeta a competitividade dos produtos gaúcho e brasileiro, apesar do atual bom desempenho das vendas desse setor para o mercado europeu. Com o acordo e, consequentemente, a tarifa sendo reduzida a zero, essa indústria possivelmente ganhará muita competitividade, já que o calçado gaúcho tem qualidade para o padrão de exigência europeu. Além do calçado, as indústrias do couro e do tabaco também podem ser apontadas como prováveis beneficiadas com o fechamento do acordo. Como regra geral, é previsto que o acordo trará ao Brasil ganhos maiores para a agricultura e o agronegócio. Como consequência, o Rio Grande do Sul, por ter uma forte base industrial atrelada ao campo, deve se beneficiar com o Acordo Mercosul-UE.

Luiz Augusto Faria: É difícil fazer uma previsão neste momento, pois as negociações são muito pontuais. Por exemplo, ainda no Governo Dilma, o Mercosul chegou a sinalizar uma concessão no setor de lácteos, em que a Europa tem um excedente de produção estrutural, hoje direcionada à sua ajuda à África. Como, no início dessa cadeia, temos a agricultura familiar dos criadores de gado leiteiro, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) fizeram pressão, e o tema foi deixado de lado. Nas condições políticas de hoje, esse setor não teria interlocução com os negociadores. Os defensores do livre mercado sempre argumentam com ganhos de competitividade e avanço tecnológico como resultado. Embora a Europa seja menos avessa à transferência de tecnologia que os EUA, vide acordos na área nuclear ou na indústria militar, esses resultados só são alcançados por meio de negociações intergovernamentais — muito longe do mercado e da concorrência. A experiência no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) mostra o quão difícil é o tema agrícola para a Europa. Vender soja para alimentar as vacas francesas e importar queijo ou manteiga não faz nenhum sentido.