Os rumos da política monetária dos EUA têm implicações financeiras e econômicas tão abrangentes que o futuro das taxas de juros norte-americanas é conhecido como “a questão de um trilhão de dólares” entre os analistas e especuladores financeiros. Ela ganha maior relevância — e se torna mais difícil de responder — quando se sabe que os caminhos percorridos após a crise de 2007-08 pelo Federal Reserve (Fed), o banco central do País, levaram a uma situação inédita de taxas de juros muito próximas a zero, situação comum aos demais países desenvolvidos. E, ainda menos convencional, isso ocorre em um contexto econômico global de crescimento relativamente baixo e com recorrentes pressões deflacionistas, acrescentando elementos que tornam imprevisível o timing da retomada da situação pré-crise, de taxas de juros reais positivas. Não se trata de mero acaso que as expressões “estagnação secular” e “novo normal” estejam tão em voga no jargão econômico criado após 2008, denotando a ideia de um ciclo longo, de baixo crescimento, no qual as políticas monetária e fiscal têm capacidade de amenizar, mas não de resolver, o baixo crescimento.
Os condicionantes da atuação do Fed, hoje, ultrapassam os limites dos EUA. Embora desde que o dólar se tornou efetivamente a moeda de reserva internacional inconteste, ou seja, a partir dos anos 50 e, ainda mais, a partir da liberalização financeira dos anos 70, as decisões de política monetária nos Estados Unidos afetem decisivamente os demais países, é na atual década, após a crise financeira de 2007-08, que o Fed assume que a situação financeira em outros países pode influenciar de forma importante suas decisões. O combate aos efeitos da crise financeira ampliou o papel do Fed na conformação de uma rede de bancos centrais pelo mundo todo, a partir de uma sucessão de acordos de ajuda mútua em caso de crises. Além disso, pode-se inferir que, tendo sua atuação posta em xeque no episódio da quebra do banco Lehman Brothers em 2008, que deflagrou uma crise no sistema financeiro internacional, o Fed tenha adotado elementos de cautela quanto aos efeitos inesperados de suas decisões.
Em um momento em que a solidez do sistema financeiro, sobretudo na Europa e no Japão, não está consolidada e em que diversos países apresentam taxas de juros nominais negativas, o Fed parece não desejar adotar a tradicional postura norte-americana de tomar suas decisões de forma relativamente independente e deixar que o mundo reaja de forma adaptativa. Embora seja reconhecido que uma elevação nas taxas de juros nos EUA fortaleceria ainda mais o dólar, com consequências para o crescimento que ultrapassam em muito as fronteiras dos Estados Unidos, não seria esse o elemento externo crucial na mira do Fed, mas sim aquilo que se sabe que irá ocorrer e cujos efeitos são desconhecidos (known unknowns), ou seja, as consequências sistêmicas radicalmente incertas sobre os mercados financeiros interconectados que uma elevação das taxas de juros poderia ocasionar a partir das mudanças nos preços dos ativos que certamente ocorreriam. Cabe aqui destacar que a manutenção de taxas de juros muito baixas por razoável período de tempo tem levado a mudanças no portfólio das carteiras de aplicações financeiras em direção a ativos de maior risco e formado novas bolhas — como nos mercados de ações e em alguns mercados de imóveis —, o que seria impactado em caso de uma rápida retomada de juros reais positivos pelos EUA, com consequências sistêmicas desconhecidas. Também a possiblidade de redução do ritmo de crescimento da economia mundial e dos efeitos aí encadeados parece ter sido levada em conta, ao menos no episódio do início de 2016 que apontava uma desaceleração do ritmo de crescimento chinês, o qual influiu nas decisões norte-americanas quanto à elevação dos juros. Ao que parece, prudentemente, o Fed não está disposto a correr o risco de ser apontado como partícipe de um novo episódio de crise com consequências mundiais e tem considerado também as consequências externas de sua atuação em suas decisões.
Entretanto, é sabido que a situação interna dos EUA ainda é o elemento principal na tomada de decisões pelo Fed. E, aqui, as informações disponíveis revelam um quadro contraditório capaz de afetar o ritmo da normalização das taxas de juros, em tela desde 2013. É necessário relembrar que o Fed, no combate aos efeitos da crise financeira, aumentou sua carteira de ativos de US$ 1 trilhão para US$ 4 trilhões entre 2007 e 2014, com adoção de sucessivas rodadas de aquisição de títulos públicos e privados, com o objetivo principal de dar liquidez a mercados específicos e reduzir as taxas de juros de mercado.
Essa política inédita de expansão monetária, replicada por outros bancos centrais de países desenvolvidos e, com especificidades e maior agressividade, pelo People’s Bank of China (PBOC), teve resultados controversos até o momento. Sendo uma política com objetivos primordialmente financeiros, essa, não por acaso, teve seus melhores resultados justamente nos mercados diretamente relacionados às finanças. Assim, foi inequivocamente bem-sucedida na tentativa de estabilizar a crise financeira e dar uma aparência de normalidade aos diversos mercados, apesar dos efeitos já mencionados sobre os portfólios de ativos. No entanto, foi incapaz de promover um ritmo crescente de avanço na atividade econômica, com um crescimento abaixo das expectativas de mercado na primeira metade de 2016. E, para piorar o quebra-cabeça envolvendo as decisões de política monetária pelo Fed, a inflação não atinge a meta proposta pela instituição de 2% ao ano, enquanto o desemprego se encontra em um nível relativamente baixo, flutuando em torno de 5%. Assim, os principais indicadores não fornecem, até o momento, uma clara direção quanto à conveniência e à funcionalidade de uma elevação dos juros no curto prazo.
É certo, no entanto, que o Fed, ao encerrar a política de facilitação monetária em 2013 e aumentar pela primeira vez sua meta de juros, em dezembro de 2015, para uma faixa entre 0,25% e 0,50%, tem promovido a ideia de uma normalização futura nas taxas de juros, o que tem sido capaz de trazer um equilíbrio instável aos mercados de ativos, funcional ao objetivo de ganhar tempo no sentido da busca de um consenso mínimo que reduza a dramaticidade dessa prometida normalização monetária. O ritmo tem sido lento, e essas expectativas, instáveis. O ano de 2016 se iniciou com expectativas de mercado de até três elevações de juros pelo Fed. Até setembro não ocorreu nenhuma, e as expectativas haviam-se modificado no sentido de que apenas um único aumento ocorreria no ano, em 0,25 ponto percentual, embora nem mesmo essa elevação possa ser considerada certa.
As expectativas majoritárias no mercado norte-americano até meados de 2016 sinalizavam taxas de juros em torno de 1,5% ao final de 2017 e 2,5% em 2018, antes de se estabilizarem em 3% em prazo mais longo.
Como já afirmado, nada garante que, tal qual no passado recente, essas previsões não possam ser revisadas. E, pior, considerando-se as seguidas idas e vindas da instituição, embora plenamente justificáveis dada a complexidade do cenário econômico atual, o mercado financeiro começa a apontar uma falha do Fed em orientar de modo crível as expectativas futuras. A pesquisa CNBC Fed Survey[1] realizada ao final de agosto de 2016, na qual 60% dos agentes de mercado afirmaram que falta ao banco central dos EUA um quadro de análise claro quanto à orientação de suas decisões, demonstra essa crescente desconfiança. Ao mesmo tempo, a baixa taxa de juros tem levado tanto os bancos comerciais quanto as seguradoras e os fundos de pensão a demandarem uma revisão premente da política monetária nos EUA, dado o impacto dos juros reais negativos sobre sua rentabilidade. Ou seja, o Fed vem sendo pressionado pelo mercado a afirmar mais claramente aquilo que é determinante para suas decisões, abandonando a conveniente dubiedade prevalente entre 2014 e 2016.
Na ponta produtiva, é reconhecido desde os anos 50, quiçá desde os anos 30, que apenas condições favoráveis do lado da oferta são incapazes de alavancar novos investimentos, caso a oportunidade para tal não esteja claramente afirmada também pelo lado da demanda. Como mostra o economista Phillip Arestis, a efetividade das políticas de facilitação monetária para o crescimento econômico depende do que os agentes afetados (detentores de títulos e bancos) pretendem fazer com as somas adicionais de recursos e, ao mesmo tempo, do modo como os mercados financeiros e as empresas reagem em suas expectativas de gasto, especialmente quanto à inflação futura. Ora, ao mesmo tempo em que frações dessa riqueza são destinadas aos mercados de risco, a despeito das baixas taxas oferecidas, os mercados de dívidas governamentais batem recordes de demanda, exacerbando as contradições quanto ao destino desse excedente monetário e reforçando a proeminência da preferência pela liquidez.
Ademais, o contexto da economia mundial não ajuda em nada a conformar condições mais favoráveis para que as decisões acima expostas se resolvam positivamente. A realidade é que o comércio internacional e a produção industrial mundial têm crescido a taxas em ritmo lento, ao mesmo tempo em que prossegue o deslocamento do dinamismo capitalista em direção à Ásia. Isso aumenta as dúvidas sobre a capacidade de condições favoráveis de endividamento em trazer efeitos duradouros sobre os investimentos produtivos nos EUA. Em contraposição, a capacidade de geração de empregos de sua economia se reafirmou após 2010. Entretanto, esses empregos reproduzem em sua característica o padrão do ciclo de crescimento anterior (2002-07), ou seja, estão ligados ao crescimento do setor de serviços, à recuperação da renda e da capacidade de endividamento das famílias e aos efeitos das novas bolhas financeiras na geração de uma sensação de normalidade. A propalada retomada do investimento industrial em território norte-americano segue, até o momento, ligada principalmente à indústria de extração de petróleo, também abalada em sua capacidade de expansão pela queda nos preços dessa commodity após 2015.
Em suma, a estabilização precária dos mercados financeiros soma-se a uma frágil retomada da atividade produtiva, em condições internacionais adversas. De momento, a única certeza que esse conjunto de variáveis nos impõe é que o horizonte do retorno das taxas de juros reais positivas de forma consistente nos Estados Unidos ainda deve ser bastante lento.
[1] LIESMAN, S. Fed doesn’t have real plan to make policy: CNBC survey respondents. CNBC, 24 Aug. 2016. Disponível em: