As relações entre o Brasil e a China frente aos desafios impostos pelo ajuste fiscal

A inserção internacional do Brasil nos dois mandatos do Presidente Lula e, em menor medida, no primeiro mandato da Presidente Dilma Rousseff foi marcada pela diversificação de suas relações internacionais sem que isso pudesse comprometer sua relação com parceiros tradicionais como os norte-americanos, japoneses e europeus. No entanto, diferentemente do período em tela, o atual cenário de forte deterioração da economia nacional e de severo contingenciamento dos gastos públicos, nas esferas federal e estadual, impõe desafios à capacidade do País para estabelecer critérios de complementariedade no âmbito de suas relações com a China.

Enquanto os países centrais experimentaram os efeitos da severa crise econômica de 2008, a primeira década dos anos 2000 foi marcada pelo protagonismo dos países emergentes no cenário internacional. Dentro de um contexto de forte elevação dos preços de suas principais commodities exportáveis, os países emergentes buscaram, com razoável sucesso, implementar políticas econômicas capazes de gerar um certo dinamismo econômico doméstico. Nesse cenário, destacam-se Brasil, Rússia e China. O crescimento econômico dessas nações, ao lado de África do Sul e Índia, projetou-as internacionalmente de forma a garantir certo poder de articulação de seus interesses em fóruns internacionais como o próprio BRICS — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul —, o G20 financeiro, o G20 comercial, a Organização Mundial de Comércio (OMC), além das várias agências no âmbito da Organização das Nações Unidas, como a Conferência das Nações Unidas Sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) e a Organização das Nações Unidas Para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

Nesse processo, além de serem potências nucleares, China e Rússia dão um peso estratégico ao conjunto dos países emergentes na defesa de suas respectivas agendas no Conselho de Segurança da ONU, onde têm assento permanente e poder de veto, alçando-as à categoria de players da geopolítica global. Contudo, no campo econômico, a China destaca-se dos demais países, desenvolvidos e em desenvolvimento, pela pujança que se traduz em impressionantes superávits comerciais, níveis de crescimento econômico, reservas internacionais e volumes de investimentos mundo afora.

O Brasil retomou as relações diplomáticas com a República Popular da China (RPC) em 1974. Desde então, o país asiático aumentou sua participação até assumir a posição de principal destino das exportações brasileiras. Em 1985, as exportações brasileiras atingiram US$ 817,5 milhões. Uma década depois, o valor alcançava US$ 1,2 bilhão, e a pauta exportadora era composta majoritariamente por produtos manufaturados e semimanufaturados. A partir de então, os produtos básicos passaram a se consolidar como os principais itens na pauta exportadora brasileira para a China. Em 2005, o valor das exportações atingiu a soma de US$ 6,8 bilhões. A partir de 2009, a China passou a ser o principal parceiro comercial do Brasil, assumindo a posição que era dos Estados Unidos. Nesse ano, os chineses importaram US$ 21 bilhões. Em 2013, esse valor saltou para US$ 46 bilhões, conforme o Gráfico 1. Desde então, a China, isoladamente, é o principal destino das exportações brasileiras, competindo com União Europeia, América Latina e Caribe.


No que tange aos investimentos diretos, os dados do Banco Central do Brasil mostram que, entre os anos de 2010 e 2014, a distribuição de estoque de investimento direto no Brasil (participação no capital) apresentou o valor médio acumulado no período de US$ 577,9 bilhões. Desse total, tem-se o seguinte percentual médio acumulado entre os principais países investidores: Estados Unidos (20%), Espanha (12%), Bélgica (8%), Reino Unido (7%), França (6%), Países Baixos (5%), Japão (5%), Alemanha (4%), Itália (3%), Suíça (3%) e China (2%)1. Ainda que, nessa área, o Brasil dependa das agendas decisórias dos Estados Unidos, da Europa e do Japão, as relações bilaterais entre Brasil e China, que se estreitaram dentro dessa dinâmica recente de construção de projetos de desenvolvimento nacional, consolidaram o parceiro asiático como uma alternativa pragmática e estratégica na captação de recursos externos para investimentos no Brasil.

A recente onda de investimentos chineses no Brasil chama atenção. De acordo com os dados do American Enterprise Institute e da Heritage Foundation2, os chineses aportaram US$ 51,7 bilhões em investimentos no Brasil, no período 2005-16. Os investimentos abrangeram os setores: imóveis, energia, agricultura, químicos, tecnologia, metais, transporte e financeiro. De acordo com os dados da Figura 1, o setor de energia foi o que mais atraiu investimentos. Nesse segmento, as empresas chinesas aportaram um total de US$ 38,15 bilhões no período. Logo depois, têm-se os setores de mineração (US$ 4,39 bilhões), financeiro (US$ 2,11 bilhões), agricultura (US$ 1,93 bilhão), transporte (US$ 1,81 bilhão), imobiliário (US$ 1,36 bilhão), químicos (US$ 1,5 bilhão) e tecnologia (US$ 450 milhões).

O Gráfico 2 mostra o aporte dos investimentos chineses no Brasil, ao longo do período 2005-16. Nota-se que 2010 foi o ano em que as cifras alcançaram os maiores valores, US$ 13,89 bilhões. Nesse ano, o setor de energia foi o que mais recebeu investimentos, US$ 11,82 bilhões. Em 2012, a redução desses investimentos atingiu US$ 3,05 bilhões. A partir desse ponto, os investimentos retomaram a tendência de alta e atingiram US$ 12,1 bilhões em 2016. Novamente, o setor de energia recebeu a maior parte dos investimentos, totalizando US$ 10,3 bilhões.

Faz-se necessário destacar que, ao longo dos últimos 15 anos, o esforço empreendido na consolidação de parcerias estratégicas entre os dois países buscava a complementariedade de políticas nacionais dos países nas áreas do desenvolvimento econômico e das relações internacionais. Nesse sentido, ainda que, durante o Governo Dilma Rouseff, os constrangimentos políticos e econômicos de ordem doméstica tenham relegado a política externa brasileira a um plano secundário, os projetos de cooperação entre os dois países, no BRICS ou nos mais diversos fóruns internacionais, foram mantidos. Contudo, o agravamento da crise econômica e política no País, nos útlimos dois anos, lança dúvidas sobre o papel que a China passa a desempenhar no governo do Presidente Michel Temer.

O alinhamento do atual governo com a ortodoxia econômica consubstanciada em um severo ajuste fical que limita, por 20 anos, a capacidade do executivo federal de executar políticas de investimentos públicos em áreas estratégicas para o desenvolvimento nacional realça o papel coadjuvante que o Brasil deve assumir nessa nova fase de sua relação com o gigante asiático. O desmonte de políticas de conteúdo nacional, que viabilizaram, por exemplo, a emergência do polo naval de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, evidencia a desconstrução de elos de complementariedade que, até então, caracterizavam o protagonismo do Brasil na construção de suas relações bilaterais, principalmente as que se davam no âmbito da cooperação sul-sul.

Na seara estadual, o Rio Grande do Sul emula a atual dinâmica federal em suas relações com a China. Ainda que os investimentos externos diretos tenham um relevante impacto na geração de emprego e renda, são os projetos de complementariedade estratégica de longo prazo que têm potencial para produzir efeitos duradouros nas áreas de desenvolvimento econômico.

O ajuste fiscal adotado pelo Governo do Estado limita a capacidade do Estado do Rio Grande do Sul de estabelecer projetos de parceria estratégica de longo prazo com a China nas áreas do desenvolvimento econômico e também nas áreas da cultura, da educação, da ciência e da tecnologia. A extinção de fundações públicas de pesquisa restringe as possibilidades de se estreirarem ainda mais as relações do Rio Grande do Sul com com a China para além do enfoque puramente comercial. Da mesma forma que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) estabeleceu, em 2012, acordos de cooperação com o Chinese Academy of Agriculture Science (CAAS), acredita-se que acordos semelhantes envolvendo fundações de pesquisas do Estado e os diversos órgãos de pesquisa da China poderiam consolidar-se como interfaces para o desenvolvimento de interesses mútuos envolvendo chineses e gaúchos em suas respectivas áreas do conhecimento.

Em 2017, ainda no contexto de ajuste das contas públicas estaduais, a empresa chinesa da área de energia, State Grid, passou a ser controladora da CPFL Energia e responsável por dois terços da distribuição de energia no Estado do Rio Grande do Sul. A companhia do país asiático é proprietária da RGE e da RGE Sul. Vale lembrar que, em um contexto de ataque à qualidade prestada por serviços prestados por empresas estatais, a State Grid é uma empresa chinesa 100% estatal forte candidata a comprar a Companhhia Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul (CEEE), caso a estatal gaúcha venha a ser efetivamente privatizada como deseja o Governo do Estado. Além disso, ainda há o caso da possibilidade de privatização da Companhia Rio-Grandense de Mineração (CRM). O Estado do Rio Grande do Sul detém 86% das jazidas de carvão do País. Nesse caso, as empresas chinesas Zhejiang Electric Power Construction Co (ZEPCC), State Grid e China Three Gorges (CTG) apresentam-se como potenciais compradores da estatal gaúcha.

Percebe-se que, na atual conjuntura, tanto o Governo Federal quanto o do Estado enxergam os investimentos chineses como um alívio de curto prazo na busca de soluções para os seus respectivos desafios de ajuste nas contas públicas. A parceria com os chineses deveria ser percebida e instrumentalizada como uma estratégia de cooperação bilateral e sistêmica de longo prazo. Assim, deve-se frisar que as relações internacionais são pautadas, antes de tudo, pelos interesses nacionais, e a cooperação é o meio pelo qual os interesses dos países podem ser satisfatoriamente alcançados. Dessa forma, tem-se o entendimento de que, ao sobrepor a fragilidade das contas públicas a projetos amplos de cooperação com os chineses, corre-se o risco de restringir uma relação bilateral estratégica para o País a meros acordos de comércio e de investimento sem maiores contrapartidas chinesas para o desenvolvimento do Brasil. Dentro dessa dinâmica imediatista e subserviente, a China não terá incentivo a cooperar e tampouco constrangimento em maximizar as oportunidades de investimentos no Brasil e no Rio Grande do Sul — oportunidades que, no seu conjunto, se consolidarão como um verdadeiro negócio da China para os próprios os chineses.


1BANCO CENTRAL DO BRASIL. Censo de capitais estrangeiros no País: resultados anos-base: 2010 a 2014. 2016. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2017.

2THE AMERICAN ENTERPRISE INSTITUTE AND THE HERITAGE FOUNDATION.China Global Investment Tracker. 2017. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2017.