Num cenário internacional marcado pelo aumento da instabilidade, um momento em que o processo da globalização da economia revela a intensidade de suas contradições, a China segue mantendo uma trajetória de relativa estabilidade. Segundo dados do Banco Mundial, desde a crise de 2008 a China seguiu crescendo em uma média de 8,3% ao ano, enquanto a economia mundial cresceu em média 2,2%. Ainda que o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) da China venha caindo de um patamar próximo dos 10% nos anos imediatamente pós 2008 para cerca de 7%, seu crescimento segue sendo quase três vezes maior do que o mundial (6,9% contra 2,4% em 2015)1. Enquanto no Ocidente alguns analistas chegaram a cunhar o termo “the new normal” (“o novo normal”) para descrever os padrões de crescimento medíocres e incapazes de garantir a coesão social mesmo nos países centrais, a China, mesmo com um ritmo mais lento de crescimento, continua sendo capaz de garantir uma maior estabilidade econômica, social e política.
Essa resiliência da economia chinesa em um contexto mundial de dificuldades não pode ser adequadamente explicada a partir apenas de variáveis macroeconômicas. Especialmente no caso da China, a dimensão política é especialmente decisiva. Nesse sentido, compreender a dinâmica da economia chinesa depende de entender as características específicas do modelo chinês, em especial a relação que se estabelece no País entre a política e a economia, pois muito dessa capacidade de adaptação e crescimento se relaciona com um modelo político de gestão da economia. Trata-se de um modelo que, ao mesmo tempo em que concede um grande espaço para a iniciativa privada, favorece a competição entre as empresas, é receptivo ao investimento estrangeiro e combina essas características com uma forte intervenção estatal e um planejamento estratégico de longo prazo. Nesse sentido, a gestão econômica do País é diretamente orientada pelas prioridades políticas estabelecidas pelo Estado.
O que se assiste neste momento é um movimento deliberado de adaptação ao novo cenário internacional, com ações no sentido de reorientar o modelo de desenvolvimento chinês. Esse processo se iniciou no Plano Quinquenal 2011-15, que já reflete um reposicionamento do País num mundo em crise e se consolida nas resoluções da III Sessão Plenária do XVIII Comitê Central do Partido Comunista da China2. Nesse documento, os dirigentes chineses fazem um balanço do período e projetam uma estratégia para os próximos anos. Tendo em conta as particularidades do modelo chinês, as reflexões ali realizadas e as orientações elaboradas nesse processo fornecem as linhas mestras de compreensão da evolução da China no próximo período.
A compreensão do momento atual da República Popular da China precisa ter como ponto de partida as grandes transformações que se desencadearam com as reformas iniciadas por Deng Hsiao Ping no final dos anos 70 do século passado. Nesse momento, os dirigentes chineses romperam com a política de isolamento e iniciaram um processo de abertura econômica. A desestatização de empresas e a abertura controlada para o capital internacional geraram um setor empresarial dinâmico. A abundância de mão de obra barata garantiu a competitividade internacional dos produtos chineses, e o foco na produção de manufaturas para o mercado mundial tornou a China rapidamente um global player que hoje se constitui na segunda maior economia do mundo.
Do ponto de vista interno, essas políticas tiveram profundos impactos. A superação dos limites do modelo anterior gerou uma dinâmica de crescimento acelerado que transformou de forma muito rápida e intensa a sociedade chinesa. O influxo de capital externo e as novas regras de funcionamento das empresas locais geraram um processo de crescimento econômico contínuo que se estende por mais de trinta anos. Esse crescimento gerou, de um lado, um pujante setor empresarial que protagonizou o processo de transformação da China em uma potência econômica. De outro lado, o crescimento gerou oportunidades de trabalho que permitiram a milhões de trabalhadores do campo migrar para as cidades atrás de novas oportunidades. Nesse processo, gestou-se uma dinâmica que permitiu que a China fosse capaz de tirar 600 milhões de pessoas da pobreza e da miséria. Além disso, esse processo gerou também uma nova classe média de profissionais que constituem hoje um enorme mercado interno3.
Dessa maneira, combinando cautela, flexibilidade e criatividade nas ações de gestão da economia frente às oscilações conjunturais com uma firmeza na construção de uma estratégia de desenvolvimento nacional é que a China vai avançando no cenário turbulento da economia internacional. Cada inovação em termos de política de desenvolvimento é implementada de início de forma experimental em uma localidade ou região, testada e, se aprovada, adotada para o conjunto do País. Além disso, todas essas medidas são formuladas à luz de uma estratégia de longo prazo, estritamente planejada. Com uma atenção cuidadosa para a análise dos cenários que se abrem, associada a uma capacidade de adaptação às mudanças nas correlações de força e nas dinâmicas políticas e econômicas, locais, regionais e mundiais, os dirigentes chineses vêm demonstrando uma capacidade ímpar de enfrentar as turbulências da conjuntura. É essa postura que orienta as mudanças recentes que a China implementa para enfrentar o cenário internacional decorrente da crise financeira de 2008.
O centro dessa estratégia é uma transição de um modelo de crescimento baseado nas exportações para um crescimento baseado no mercado interno chinês. Os milhões de cidadãos que saíram da pobreza e o enorme contingente que constitui a nova classe média passam a ser a base para a sustentabilidade do crescimento. Esse redirecionamento da economia para o mercado interno se combina com um movimento de internacionalização das empresas chinesas e de projeção geopolítica do País. Hoje, para além de exportar mercadorias, a China exporta capitais — de um lado, com a compra de ativos nos países centrais, em especial na Europa, e, de outro, com uma presença crescente de companhias chinesas operando nos mercados da Ásia, África e América Latina.
O movimento de reposicionamento da China opera de maneira articulada no plano internacional e no plano interno. No âmbito internacional, um conjunto de iniciativas econômicas e geopolíticas opera no sentido de fortalecer a posição da China. Medidas para fortalecer a conversibilidade da moeda chinesa, a constituição do Banco do BRICS, as iniciativas estratégicas da nova “Rota da Seda” e todo um conjunto de ações voltadas para aprofundar a articulação da economia chinesa na Ásia Central, em parceria com a Rússia, a Índia, o Paquistão e outros países menores, dão sustentabilidade para a inserção internacional do País.4
Por outro lado, no plano político interno, a nova orientação tem como foco a coesão social. Três elementos são centrais nessa estratégia: (a) a valorização do mercado interno como vetor para o desenvolvimento; (b) o reforço à inovação e ao desenvolvimento tecnológico; e (c) o enfrentamento das contradições internas que interferem no desenvolvimento do País. Nos três casos, a gestão dos processos econômicos está intimamente ligada com as dimensões políticas que se constituem como pano de fundo do projeto de desenvolvimento chinês.
No caso do mercado interno, os dirigentes chineses têm claro que a melhoria das condições sociais e econômicas da população tende a ser o pilar de sustentação do crescimento da economia chinesa. No entanto, a ênfase governamental não se restringe ao aspecto econômico da elevação dos salários reais como instrumento de estímulo ao consumo. Os dirigentes chineses buscam uma melhoria global, que implica também no fortalecimento dos direitos sociais, com a ampliação de mecanismos de previdência, de direitos trabalhistas e de dispositivos institucionais de defesa do consumidor. Seu objetivo é “prestar maior atenção ao trabalho, ao emprego e aos ingressos dos habitantes, à seguridade social e à saúde do povo” (COMITÉ CENTRAL DEL PARTIDO COMUNISTA DE CHINA, p. 34). A compreensão por parte dos dirigentes chineses de que uma melhor distribuição de renda e a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos são importantes para a sustentabilidade do crescimento econômico é central no novo modelo. Nesse sentido, a China anda na contracorrente da tendência mundial que atua no sentido da flexibilização e/ou redução de direitos sociais. Ao contrário, os dirigentes chineses trabalham justamente na direção da formalização institucional de direitos como instrumento de inclusão social e dinamização da economia.
No âmbito tecnológico, a China passou de um período em que sua manufatura se baseava na cópia de produtos estrangeiros para um momento no qual as empresas chinesas passaram a disputar os mercados com base no desenvolvimento tecnológico. O Estado Chinês investe pesadamente na pesquisa, na expansão do ensino universitário, na formação de mão de obra qualificada e de um corpo técnico de cientistas e pesquisadores de ponta e de nível internacional. Assim, as empresas chinesas hoje já concorrem em pé de igualdade com empresas de alta tecnologia mundial. Esse processo resultou de grandes investimentos públicos do Estado chinês em ciência e tecnologia, voltados para a qualificação dos processos produtivos.
Por fim, o terceiro elemento desse reposicionamento chinês demonstra uma grande autoconsciência e capacidade crítica dos dirigentes do País. A percepção de que o processo vivido pelo País desde as reformas trouxe, além do crescimento econômico, problemas que precisam ser enfrentados, está na base de um esforço voltado para fortalecer a coesão social e garantir a estabilidade política. O enfrentamento das desigualdades sociais geradas no processo de desenvolvimento, o combate à corrupção e a luta contra a degradação ambiental provocada pelo crescimento acelerado são as prioridades políticas do momento.
Nesse âmbito, encontra-se a mais importante mudança de paradigmas operada pelos dirigentes chineses: a transição de um modelo que buscava o crescimento a qualquer custo para um modelo voltado para a sustentabilidade ambiental. A China é hoje um dos países do mundo que mais investem em políticas ambientais, incluindo explicitamente em suas diretrizes políticas o objetivo de construir uma “civilização ecológica socialista” (COMITÉ CENTRAL DEL PARTIDO COMUNISTA DE CHINA, p. 4). Todos esses movimentos têm, ao mesmo tempo, uma dimensão estritamente política, mas também uma dimensão econômica. A China busca garantir que o desenvolvimento da economia seja um instrumento para a construção de uma sociedade mais harmônica. Nesse modelo, o crescimento é um instrumento para o desenvolvimento social e não um fim em si. Com isso, a China cria condições para garantir a estabilidade e um crescimento sustentável.
É evidente que esse modelo não é isento de contradições. O crescimento dos conflitos trabalhistas na China reflete a inquietação dos trabalhadores industriais em relação aos seus salários e condições de trabalho. Andreas Bieler e Chun-yi Lee, da Universidade de Norfolk, recentemente analisaram as formas de resistência e de organização dos trabalhadores fabris na China5, mostrando o crescimento das mobilizações operárias no País. Da mesma forma, Ruckus e Bartholl (2014)6 fazem um extenso levantamento do crescimento dos conflitos trabalhistas na China. Ambos os estudos mostram que as relações de trabalho e as desigualdades sociais podem vir a se constituir em um componente de potencial instabilidade na situação política desse país, e é justamente a neutralização desses conflitos que informa os esforços dos dirigentes chineses no sentido de reorientar o modelo econômico do País. Construir uma estratégia que permita combinar crescimento econômico com estabilidade política e competitividade no mercado mundial é o objetivo central da estratégia política do governo chinês neste novo momento da conjuntura mundial.
1WORLD BANK OPEN DATA. 2016. Disponível em: < http://data.worldbank.org/ >. Acesso em: 29 nov. 2016.
2COMITÉ CENTRAL DEL PARTIDO COMUNISTA DE CHINA, 18.,[2013, Beijing]. Documentos de la III Sesión Plenaria del … Beijing: Ediciones en Lenguas Extranjeras, 2013.
3 POMAR, W. China: desfazendo mitos. São Paulo: Publisher Brasil, 2009.
4CINTRA, M. A. A.; SILVA FILHO, E. B., COSTA PINTO, E. (Org.). China em transformação: dimensões econômicas e sociopolíticas. Rio de Janeiro: IPEA, 2015.
5 BIELER, A.; LEE, C. Chinese labour in the global economy: an introduction, globalizations. 2016. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1080/14747731.2016.1207934>. Acesso em: 8 jan. 2017.
6 RUCKUS, R.; BARTHOLL, T. China, avanço do capital e revolta na nova fábrica do mundo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014.