As eleições argentinas e seu significado para o Mercosul

A dinâmica dos processos de integração depende, por definição, do acordo das forças políticas hegemônicas em cada país acerca dos seus objetivos nacionais. No caso do Mercosul, a eleição realizada em 25 de outubro, na Argentina, tem um peso significativo sobre as perspectivas da integração regional. No momento da publicação deste artigo, o resultado das eleições já estará definido. Trata-se, portanto, menos de avaliar o processo eleitoral, mas de analisar os seus impactos sobre o futuro do Mercosul. É evidente que a eleição argentina é apenas um entre outros fatores que incidem sobre a evolução do bloco. Tanto os processos políticos internos nos demais países como a própria dinâmica internacional são também fatores decisivos. No entanto, os resultados na Argentina, segundo país mais importante do bloco, seguramente terão um peso significativo.

Disputaram essa eleição dois projetos principais: o de continuidade do peronismo kirchnerista, materializado na candidatura do Governador da província de Buenos Aires, Daniel Scioli, da Frente para a Vitória (FPV), e o da oposição, de matiz liberal, de Mauricio Macri, Prefeito de Buenos Aires, da Proposta Republicana (PRO). Scioli concorreu com uma plataforma de centro-esquerda, nacionalista, de continuidade do projeto do governo atual, caracterizado por muitos analistas como populista. Já Macri aglutinava um conjunto de forças políticas do centro à direita, de matiz liberal, pró-mercado. O candidato da oposição representava uma aposta de mudança radical na política argentina, voltada para a busca de uma recomposição das relações do País com os investidores externos e a revisão da estratégia desenvolvimentista implementada nos últimos anos.

Scioli, por outro lado, foi nitidamente o candidato da continuidade, ainda que suas relações com o oficialismo tenham sido sempre um tanto conflituosas. O Governador da província de Buenos Aires foi vice-presidente na primeira gestão de Néstor Kirchner (2003-06) e tinha pretensões à presidência. Perdeu espaço para Cristina e, desde então, adotou uma postura de relativo distanciamento, a ponto de estabelecer uma relação cordial com os arqui-inimigos da presidenta, como o grupo midiático Clarín. Ainda que tenha se mantido sempre na FPV, buscava demarcar diferenças com Cristina. No entanto, a convergência entre a recuperação da popularidade do Governo com o fato de ser Scioli o candidato eleitoralmente mais viável fez com que os dois polos dessa complexa relação se reaproximassem, um movimento que foi consolidado com a indicação do kirchnerista Carlos Zanini para vice-presidente na chapa de Scioli.

Em relação à integração, as posições dos dois principais concorrentes apresentavam uma distinção nítida. O candidato da situação incorporava, de forma explícita no seu discurso, uma postura integracionista, com foco na América Latina e nas relações Sul-Sul. Nesse contexto, o Brasil é um aliado estratégico, e a prioridade da Argentina deve ser “[…] fortalecer e ampliar o Mercosul, consolidar a Unasul e dotar de maior dinamismo a Celac”.[1] Já Macri defendia que a Argentina precisava “reinserir-se no mundo” e abandonar o “eixo bolivariano”.[2] Para Rogelio Frigerio, um dos seus principais colaboradores, “[…] é preciso revisar o Mercosul e começar a olhar mais para o Pacífico”.[3] O candidato manifestava explicitamente seu ceticismo em relação ao bloco, afirmando que ele é hoje “[…] quase uma ficção, cheio de travas, vítima de um retrocesso em relação ao que se conquistou na década passada”.[4] Uma leitura superficial do posicionamento dos candidatos aponta, portanto, uma visão simplista: no caso de vitória de Macri, a ruptura com o Mercosul; no caso de vitória de Scioli, um aprofundamento da integração.

No entanto, a realidade quase sempre é mais complexa, especialmente no que tange à relação da Argentina com seus vizinhos. De um lado, é inevitável constatar que o discurso integracionista de Cristina Kirchner em seus dois mandatos nem sempre foi acompanhado de ações concretas. Pelo contrário, a frequente imposição de barreiras em relação às exportações brasileiras e as objeções argentinas que têm bloqueado o acordo Mercosul-União Europeia mostram que, na vida real, atitudes desse tipo por parte da Argentina têm mais atrapalhado do que auxiliado o aprofundamento da integração. As contradições internas da política e da economia argentina têm imposto uma dinâmica na qual os interesses nacionais argentinos tendem a criar obstáculos ao aprofundamento da integração.

A Argentina sofreu duas grandes ondas de desindustrialização: a primeira, durante os anos da ditadura militar (1976-85), e a segunda, durante os anos 90, nos governos de Carlos Menem. Até 1976, as manufaturas correspondiam a mais de dois terços do total das exportações argentinas. A participação da manufatura no Produto Interno Bruto (PIB) do País caiu de 30,9% em 1989 para 17,1% em 1998. Por isso, a defesa da indústria nacional tende a ser uma prioridade do Governo, o que implica a adoção de medidas protecionistas. Além disso, o País vive sérios problemas cambiais desde o default do início dos anos 2000 e dos conflitos com os credores, o que também gera limites estruturais em sua balança comercial. Esses dois fatores fazem com que o Governo tenda a adotar medidas que são contraditórias ao seu discurso pró-integração.

Por outro lado, a proposta de Macri de ruptura com um projeto focado na região e na busca por uma maior abertura em relação ao resto do mundo tampouco implica uma renúncia à integração. Para a Argentina, o Mercosul segue sendo essencial. O bloco gerou um crescimento do comércio 12 vezes maior entre seus sócios desde a sua formação. Em 2013, a Argentina destinou 28% das suas exportações a seus sócios regionais e recebeu deles 28% de suas importações. Esse comércio registrou um alto coeficiente de comércio intraindustrial: mais de 50% do total de exportações de manufaturas da Argentina destinaram-se aos países do bloco.

Além disso, o alto grau de institucionalização do processo implica um custo para sua ruptura. O dirigente da Unión Cívica Radical (UCR), partido que apoia Macri, afirma que “[…] é muito difícil que qualquer governo faça retroceder os processos de integração”, “[…] a correlação de forças parlamentares não vai mudar muito e muitas decisões teriam que passar por ali”. [5] Isso dificulta alterações muito radicais nos termos do acordo. Além disso, o desenho institucional do Mercosul, gestado nos anos 90, não é incompatível com a agenda liberal de Macri.

Portanto, para os liberais, em que pese a busca de maior abertura para o resto do mundo, o Mercosul, no seu desenho atual (como um tratado de livre comércio, que é altamente vantajoso para a economia argentina), também é funcional. O custo de uma ruptura não justificaria o esforço político necessário. Ainda assim, a tendência, no caso de vitória do PRO, seria de um progressivo distanciamento da agenda do bloco, com poucos esforços reais no sentido de avanço da integração. Nesse sentido, no longo prazo, uma

vitória de Macri poderia, de fato, gerar uma dinâmica de enfraquecimento do Mercosul. A busca de saída do “eixo bolivariano” e de uma ampliação das relações com outros blocos e países foi parte importante do discurso da oposição.

Já no caso de vitória de Scioli, o ponto de partida tende a ser o mesmo: o bloco continuar como se encontra hoje — em ritmo lento e em meio a impasses muitas vezes causados pela própria Argentina. Disso pode resultar a continuidade da dinâmica atual. Contudo, se o ponto de partida é o mesmo, esse resultado também pode abrir espaço para uma nova evolução. Com uma vitória da situação, é possível que as declarações de vocação integracionista do peronismo, até agora mais retóricas do que reais, possam ir além do discurso. As ideias de complementação produtiva, de articulação de cadeias de valor em escala regional, assim como as iniciativas de integração na área da infraestrutura, representam uma abordagem potencialmente inovadora.

A continuidade de um governo da FPV pode, nesse caso, abrir espaço para uma nova dinâmica, uma estratégia de aprofundamento do Mercosul. Em seu programa, Scioli defende o equacionamento das disputas comerciais intrabloco, um maior impulso político da integração produtiva, o reposicionamento da estratégia de inserção internacional do bloco, a agregação de valor e conteúdo tecnológico a setores estratégicos e o investimento em projetos de infraestrutura e integração energética.[6] Nesse caso, o resultado eleitoral pode gerar avanços importantes no processo de integração da região.

[1] A União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) são dois projetos integracionistas surgidos a partir de uma articulação de países que aspiram a um maior protagonismo no hemisfério, fora da órbita dos Estados Unidos.

GENTILI, P. Scioli y Macri ante el Mercosur. Página 12, Buenos Aires, 14 jul. 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015.

[2] GENTILI, P. Scioli y Macri ante el Mercosur. Página 12, Buenos Aires, 14 jul. 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015.

[3] PARTIDO de Macri apuesta a revisar el Mercosur. Montevideo Portal, Montevideo, 10 nov. 2014. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2015.

[4] MACRI: “Hay que recuperar el Mercosur”. Buenos Aires Ciudad, Buenos Aires, 27 mayo 2013. Disponível em: .  Acesso em: 12 set. 2015.

[5]MOREAU: Macri no fortalecería la relación com el Mercosur. BAE Negocios, Buenos Aires, 18 dez. 2014. Disponível em: < http://www.diariobae.com/notas/48421-moreau-macri-fortaleceria-la-relacion-con-el-mercosur.html>. Acesso em: 14 set. 2015.

[6]DESARROLLO ARGENTINO (DAR). El-Mercosur y los desafios de la regionalización. 2015. Disponível em: . Acesso em: 4 set. 2015.