De modo geral, países emergentes como o Brasil, a China e a Índia, que comercializam com todas as regiões do mundo, preferem manter suas negociações comerciais internacionais no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), onde o multilateralismo garante um tratamento mais igualitário aos países-membros em defesa de seus interesses. Assim sendo, no caso brasileiro, os poucos Acordos Preferenciais de Comercio (APCs) assinados pelo País têm um escopo muito restrito e concentram-se em negociações com países do entorno regional ou com países do Sul. O Brasil destaca-se como um país fechado, inclusive quando comparado com outros países de grande porte, por causa da baixa intensidade de seu comércio com o resto do mundo, da imposição de restrições e de diversas barreiras não tarifárias, notadamente certificações, e também pelo nível de suas tarifas, ainda relativamente elevadas e subordinadas a poderosos interesses econômicos.
Embora o País seja a sétima economia do mundo, seu comércio com o resto do mundo representava, em 2014, apenas 1,2% das exportações mundiais (25.ª posição) e 1,3% das importações (22.ª posição)[1]. No mesmo ano, a relação corrente de comércio/Produto Interno Bruto (PIB) atingiu 19,4%, enquanto, em países como China, Rússia, África do Sul, Chile, México, Coreia do Sul e Turquia, essa relação ficou acima de 50%. Os dados mais recentes da Organização Para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em trabalho conjunto com a Organização Mundial do Comércio[2], indicam que, em 2011, o conteúdo estrangeiro nas exportações brutas brasileiras atingiu 10,8%, enquanto a média de 61 países estudados, incluindo todos os membros da OCDE, foi de 28,5%.
A Rodada Doha de Desenvolvimento de negociações da OMC, iniciada em 2001, tem sido a principal aposta recente do Brasil no que diz respeito à sua inserção no comércio internacional, porém os avanços até o momento foram insatisfatórios. Durante anos, a União Europeia e os Estados Unidos tentaram impor, na OMC, seus interesses sobre aqueles dos países emergentes, mas suas tentativas foram infrutíferas. Por esse motivo, optaram por criar APCs que refletissem seus interesses e impusessem suas próprias regras, enfraquecendo, assim, a OMC e tudo o que ela representa em termos de multilateralismo. Consequentemente, dado que os países desenvolvidos não conseguiram cooptar os países em desenvolvimento a adotar as regras comerciais que levariam a uma integração mais profunda na OMC, observa-se, nos últimos anos, uma intensificação do ativismo no campo dos APCs.
Contudo, o que de fato pode afetar radicalmente o funcionamento do Sistema Multilateral de Comércio são os chamados mega-acordos comerciais. Duas negociações sobressaem-se: (a) o Trans-Pacific Partnership (TPP)[3], que reúne 12 países da Ásia e das Américas (Estados Unidos, Japão, Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Cingapura, Vietnã); e (b) o lançamento do Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP) entre os Estados Unidos e a União Europeia. Desse modo, e com o ingresso do Japão nas negociações do TPP, todos os países desenvolvidos estão incluídos em algum mega-acordo que ditará as regras do comércio internacional a serem seguidas por um grande número de países.
Os acordos entre países desenvolvidos podem também ser vistos como uma forma de lidar com a ascensão de grandes economias de renda média ou baixa, como a China e a Índia, desviando o comércio e investimentos a eles destinados em favor dos países participantes desses acordos. Essas negociações permitem não apenas tratar dos temas em discussão na Rodada Doha, mas também avançar em questões regulatórias que afetam o funcionamento das cadeias globais de valor (CGV), tais como questões trabalhistas ou certificações ambientais. A consolidação desses acordos limitará a capacidade do Brasil de se beneficiar das oportunidades que a fragmentação do processo produtivo pode brindar e poderá restringir ainda mais sua participação em cadeias produtivas globais. Isso porque os mega-acordos preferenciais de comércio que surgiram no século XXI diferem dos acordos preferenciais anteriores de várias formas. Anteriormente se buscava, em primeiro lugar, a redução tarifária; hoje, os Acordos Preferenciais de Comércio têm objetivos mais ambiciosos. Os países que fazem parte desses acordos representam uma parcela significativa do comércio internacional e pretendem estabelecer um novo sistema de regras mais profundas que aquelas em vigor na OMC, como, por exemplo, em serviços e em propriedade intelectual, e também mais abrangentes, envolvendo temas que ainda não foram incorporados, tais como meio ambiente, mudança climática, mão de obra, investimentos e concorrência.
A aposta dos países desenvolvidos e das transnacionais a eles associadas é que, através da integração profunda dessa nova geração de APCs, incluindo os mega-acordos, várias barreiras comerciais entre os países-membros sejam eliminadas, havendo harmonização regulatória ou, pelo menos, a aceitação de equivalência regulatória, ampliando-se, assim, a liberdade para o funcionamento das cadeias produtivas globais. Toda essa nova configuração poderá afetar negativamente os países não membros, não só comercialmente, mas também em termos de perspectivas de crescimento.
Por outra parte, o Sistema Multilateral de Comércio está sendo tensionado com a imensidade de regras que afetam não apenas o comércio de bens e serviços, mas também os métodos de produção, os padrões laborais e o impacto sobre o meio ambiente e o clima. Como consequência, os países em desenvolvimento enfrentam uma multiplicação de barreiras novas a seus produtos. Assim, a diversidade de regulamentos, padrões e certificações pode-se transformar em barreiras ao comércio, mais significativas ainda que as velhas barreiras tarifárias.
A OMC está enfrentando grandes desafios diante da proliferação de APCs e do novo paradigma de produção de bens e serviços das cadeias globais de valor. Ambas as questões trazem preocupações sobre o Sistema Multilateral de Comércio, seu eventual esvaziamento e a necessidade de reformas. Por outra parte, países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, que pouco participam em CGVs, mas que desejam participar, deverão rever sua política comercial e aceitar mudanças na OMC.
Evidentemente, a localização geográfica dos países e o perfil de sua estrutura industrial podem restringir o ingresso de alguns países nesse padrão, já que as CGV se concentram na Ásia, na Europa e na América do Norte. Mas o Brasil tem condições suficientes para se aproveitar do novo padrão do comércio internacional, tais como: uma base tecnológica sólida, em comparação com outros países, e áreas de excelência; um estoque de capital estrangeiro muito significativo e uma distribuição setorial de investimentos estrangeiros bastante diversificada; proximidade cultural com a Europa e os Estados Unidos; possibilidade de desenvolver suas próprias cadeias de valor em âmbito regional; experiências bem-sucedidas na constituição de CGVs nas áreas de aeronáutica e de produtos alimentares.[4]
A não participação nesse novo surto de APCs tem várias consequências, como, por exemplo, que os exportadores brasileiros irão enfrentar tarifas mais elevadas que seus concorrentes nos mercados dos Estados Unidos e da União Europeia, já que várias economias latino-americanas — México, Peru, Chile, países centro-americanos, etc. — já assinaram APCs com esse país e essa região. Uma consequência previsível é a erosão das preferências obtidas pelo Brasil com esses e outros países da América do Sul e da América Central, pois eles estão cada vez mais ativos assinando APCs com países desenvolvidos e economias emergentes. Além disso, a falta de acesso preferencial a mercados do Norte dificulta a concorrência dos produtos brasileiros com as exportações de países como a China e a Índia, que, apesar de não terem acordos preferenciais assinados nesses mercados, possuem vantagens de escala e custos salariais mais baixos. Porém, mesmo querendo mudar a política comercial atual, um obstáculo que o Brasil enfrenta para avançar individualmente na direção de novos acordos comerciais é o compromisso assumido pelos Estados Partes do Mercosul no ano 2000 de negociar de forma conjunta acordos de natureza comercial com terceiros países ou blocos.
Como já foi assinalado por Thorstensen[5], em decorrência das mudanças ocorridas no quadro do comércio internacional, para os países não inseridos nos APCs de nova geração restam três opções: (a) acompanhar as negociações passivamente, mas, não tendo elaborado as regras, deverão aceitar aquilo que lhes é imposto; (b) aceitar a nova realidade e decidir participar como membros desses novos blocos enquanto ainda não estão totalmente consolidados, sem deixar de reconhecer o escasso espaço para negociar seus interesses; (c) continuar mantendo um número limitado de acordos e tentar impulsionar a OMC como a principal instituição reguladora do comércio internacional.
Por tudo isso, o Brasil encontra-se numa encruzilhada, pois se, por um lado, receia abrir o seu mercado para concorrentes externos, por outro, o ingresso em APCs relevantes pode ter a vantagem de ocasionar o aumento do conteúdo estrangeiro dos produtos exportados e relançar a sua competitividade, facilitando a sua inserção em CGVs. A participação brasileira no comércio internacional está muito aquém de uma economia do seu porte, e a erosão de suas preferências tarifárias diante de parceiros comerciais da região, principais compradores de seus manufaturados, vai ter como resultado uma maior redução da exportação dessa categoria, reforçando seu perfil primário-exportador. A estratégia atual de manter a preferência por negociações multilaterais, e as amarras do Mercosul, restringe sua atuação na arena do comércio internacional, e os custos e benefícios dela merecem ser examinados mais atentamente.
[1] WORLD TRADE ORGANIZATION. International Trade Statistics 2015. [2016]. Disponível em:
[2] ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Measuring trade in value added: an OECD-WTO joint initiative. 2015. Disponível em:
[3] Acordo assinado em fevereiro de 2016, mas ainda não ratificado pelos países e, portanto, ainda não em vigor.
[4] MARKWALD, R. Inserção do país na economia mundial: qual a singularidade do Brasil? Revista Brasileira de Comércio Exterior, Rio de Janeiro, n. 118, jan./mar. 2014. Disponível em:
[5] THORSTENSEN, V. WTO – Challenges for the next 20. Mural Internacional, v. 6, n. 1, jan./jun. 2015.