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Percepção sobre a imigração estrangeira no Rio Grande do Sul: três momentos históricos

O tema da imigração estrangeira, por razões que vão de problemas estruturais como o envelhecimento e o baixo índice de crescimento das populações até o deslocamento de refugiados, está muito presente nos debates atuais. No Brasil e no Rio Grande do Sul em particular, a questão oscila do reconhecimento da sua conveniência e necessidade às manifestações de rechaço e, eventualmente, de clara xenofobia. Buscando escapar do imediatismo de certas análises, este artigo objetiva traçar um breve panorama histórico sobre a percepção demonstrada pela imprensa periódica, das vicissitudes da imigração estrangeira no Rio Grande do Sul, em três momentos distintos. No primeiro, no século XIX, salienta-se a visão negativa inicial que se tinha dos imigrantes alemães. No segundo, em meados do século XX, no contexto do pós Segunda Guerra, ressalta-se a “disputa” que o País estaria perdendo por não absorver a mão de obra liberada na Europa. Finalmente, destaca-se algo do momento atual, que envolve pontos como perspectivas demográficas futuras, força de trabalho específica e questões raciais. Essa trajetória permite perceber o quanto alguns aspectos, hoje indiscutíveis, foram controversos em determinados momentos e que se deve abordar a questão de uma perspectiva mais ampla.

Na então Província do Rio Grande do Sul, em 1831, o Correio da Liberdade, jornal de Porto Alegre, solicitava maior controle do poder público na Colônia de São Leopoldo, que já contava com expressivo número de alemães, pois a comunidade estaria sob a liderança de pessoas “cujas linguagens e costumes diferem muito dos nossos e dos quais um grande número é extraído de soldados mercenários acostumados à imoralidade e à rapina das Campanhas, e o resto de sujeitos vindos por convenção de países longínquos, onde é natural que se não escolhessem os mais virtuosos para serem exportados”.[1]

Evidenciava-se o cuidado com a contenção de uma população de difícil enquadramento ou assimilação. Oriundas de diversas nações, essas pessoas culturalmente distintas estavam, de certa forma, sob avaliação. O pronome possessivo — língua e costumes distintos dos nossos — indica um movimento de pertencimento e, simultaneamente, de homogeneização num momento inicial da formação da identidade nacional.

A preocupação quanto à efetiva integração dos estrangeiros era sentida e respondida pelos próprios imigrantes. O Colono Alemão, folha que tratava dos interesses dos colonos, sustentava que seus destinos estavam “intimamente ligados com os dos Rio-Grandenses, e ainda que a inaptidão dos Governos passados deixasse de reconhecer a utilidade que resultaria à Província em apertar quanto antes os laços desta união natural e saudável, o homem filantropo e verdadeiro amante de seu país não desespera de ver realizar-se a incorporação de um povo industrioso e pacífico no seio da grande Família Brasileira”.[2]

A despeito das resistências, o tempo passou, e o Brasil tornou-se uma nação recebedora de grandes contingentes de trabalhadores de outros países. Num segundo momento, em meados do século XX, ainda durante a Segunda Guerra, o Diário de Notícias de Porto Alegre publicou editorial intitulado Colonização e imigração, no qual manifestou preocupação com o processo de urbanização e com os vazios demográficos no Brasil, o que atrairia a cobiça de nações imperialistas.[3] Enquanto esse texto salientou mais a mobilidade interna, resultado da nova fase do desenvolvimento nacional, outro editorial do final do mesmo ano, Problemas de política imigratória, discorreu sobre a política imigratória a ser estabelecida após a guerra, reconhecendo a importância de contar com a mão de obra estrangeira.[4]

A visão geral, findo o conflito, oscilava entre a continuação dos apelos e o pessimismo quanto aos resultados. No mesmo jornal, um artigo, Deslocados para o Brasil, defendeu a agilização da política de imigração referente aos europeus expropriados pela guerra, pois o País estava perdendo, para nações como o Canadá e os Estados Unidos, uma possibilidade única de obter mão de obra relativamente qualificada.[5] Logo em seguida, em reportagem chamada Convergirá para a Argentina toda a imigração italiana, lamentou a falta de uma política mais efetiva do Governo brasileiro em relação aos imigrantes italianos, que seguiam em massa para a Argentina. O resultado dessa inação seria deixar o Brasil “ameaçado de perder uma valiosa e insubstituível contribuição de sangue”.[6] A queixa era recorrente, e o País, se não quisesse desperdiçar a ocasião, deveria oferecer “condições de trabalho que contenham compensações e garantias capazes de os fazerem apegar-se ao solo”.[7]

O Correio do Povo, por sua vez, expressava-se de forma semelhante, embora mais francamente quanto à questão racial. Defendia a conveniência de facilitar a imigração do holandês, “ótimo elemento racial e magnífico trabalhador da terra”, e afirmava, justificando-se, que essa medida não significaria “postergar o nativo ao se acolher o elemento estrangeiro. É, pelo contrário, contribuir para a melhoria da própria raça e cooperar no aproveitamento da terra para a maior riqueza da nação”.[8] Quase no meio do século, ainda surgia explícito o discurso de aperfeiçoamento da raça, com uma nota de eugenia que seria repetida logo depois. Em texto significativamente intitulado Oportunidades que se perdem, lamentou-se o fato de que o País não aproveitava “as excepcionais possibilidades imigratórias, que a guerra e os desajustamentos mundiais” proporcionavam, pois “a importação de elemento humano de primeira ordem” seria altamente vantajosa, “pelos fatores de ordem econômica e étnica que apresenta”.[9]

Embora o aspecto étnico fosse destacado, o fundamento da questão ainda parecia ser de ordem econômica, em razão do aproveitamento de uma mão de obra já formada. Isso ocorreu em uma reportagem que elogiava o trabalho da Argentina na recepção dos imigrantes. Segundo o autor, além dos agricultores, aportariam no País pessoas de altas qualificações. Terminou questionando: “Enquanto isso, que se faz no Brasil?”.[10]

Observando a imprensa contemporânea, ao final desse sumaríssimo recorrido, é sintomático perceber semelhanças com argumentos de momentos anteriores. A edição brasileira do El País, de 08 de junho de 2015, por exemplo, trouxe uma reportagem cujo título é inequívoco: “Atrasado no contexto mundial, Brasil estuda agora como atrair imigrantes”[11]. No mesmo sentido, mas agregando os efeitos da crise, um texto da BBC Brasil, de 1.o de dezembro de 2015, aponta a queda da entrada de imigrantes no País, afirmando que os dados fariam parte de “uma pesquisa mais ampla encomendada pelo Ministério do Trabalho justamente para desenvolver políticas para atrair mais imigrantes ao Brasil — de olho sobretudo na entrada de mão de obra qualificada para impulsionar a economia”[12].

Essa visão sobre a imigração no Brasil, que parece repetir épocas passadas, não destoa, de maneira geral, do que se discute no Rio Grande do Sul. A pertinência da recepção da mão de obra estrangeira foi destaque na edição de 22 de junho de 2015 do Sul21, em que são traçados elogios à capacidade de trabalho, disciplina e condições de ocupação para os imigrantes. Haveria uma abertura do empresariado para essas pessoas, embora ainda persistissem preconceitos em relação às distinções culturais e religiosas de alguns grupos.[13] De fato, algumas manifestações de xenofobia, sobretudo contra imigrantes negros, foram registradas pela imprensa do Estado no decorrer do ano de 2015. Além disso, também se apresenta a visão difusa de competição por postos de trabalho, que os estrangeiros viriam a ocupar em detrimento dos trabalhadores locais.

Essa rápida mirada busca evidenciar a historicidade das visões sobre o fenômeno, pois aspectos relativos à receptividade popular aos imigrantes dependem das injunções de conjunturas específicas. A imigração, a posteriori reconhecida como fator de impulsão do desenvolvimento, eventualmente sofreu resistências para sua efetivação. A “seleção” justificada pelo argumento da melhoria da raça ecoa hoje em algumas manifestações hostis, especialmente contra imigrantes negros. Entretanto, os governos devem tratar do tema de forma mais racional, porque, numa percepção mais realista, também é saliente o repetido argumento da necessidade de facilitar a entrada, a permanência e a adaptação de estrangeiros no País e no Estado, em face dos exemplos de outras nações.

Talvez, na atualidade, quando o envelhecimento da população, particularmente sensível no Rio Grande do Sul, e a carência de profissionais de diversas áreas, especialmente em algumas regiões, tornam a questão mais aguda, o debate possa ser travado em outras bases. Isso passaria, certamente, pelo reconhecimento da contribuição histórica da imigração estrangeira na formação das sociedades brasileira e sul-rio-grandense, e, fundamentalmente, por uma mudança de postura que garantisse melhores condições de recepção com vistas à situação presente e futura.

[1]    CORREIO DA LIBERDADE. Porto Alegre: [S.n.], n. 23, 2 jun. 1831.

[2]    O COLONO ALEMÃO. Porto Alegre: [S.n.], n. 1, 3 fev. 1836.

[3]    COLONIZAÇÃO e imigração. Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 4, 27 fev. 1943.

[4]    PROBLEMAS de política imigratória. Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 4, 5 dez. 1943.

[5]    DESLOCADOS para o Brasil. Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 4, 8 jan. 1948.

[6]    CONVERGIRÁ para a Argentina toda a imigração italiana. Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 1, 5 fev. 1948.

[7]    DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Porto Alegre: [S.n.], 19 maio 1948.

[8]    CORREIO DO POVO. Porto Alegre: [S.n.], 5 maio 1948.

[9]    OPORTUNIDADES que se perdem. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 4, 11 ago. 1948.

[10]  CORREIO DO POVO. Porto Alegre: [S.n.], 9 jul. 1948.

[11]  MARTIN, M. Atrasado no contexto mundial, Brasil estuda agora como atrair imigrantes. El País, Madrid, 7 jun. 2015. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/05/29/politica/1432914508_370989.html.  Acesso em: 14 ago. 2015.

[12]  CARNEIRO, J. D. Cai entrada de imigrantes no Brasil, aponta pesquisa. BBC Brasil, [Rio de Janeiro], 1 dez. 2015. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151201_imigracao_brasil_jc. Acesso em: 7 dez. 2015.

[13]  CARNEIRO, J. D. Cai entrada de imigrantes no Brasil, aponta pesquisa. BBC Brasil, [Rio de Janeiro], 1 dez. 2015. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151201_imigracao_brasil_jc. Acesso em: 7 dez. 2015.