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Brasil e os mega-acordos comerciais: princípios, história e desafios

O princípio basilar do comércio internacional é o da não discriminação. No âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), a não discriminação dá origem a outros dois importantes pilares, o tratamento nacional e a cláusula de nação mais favorecida. A cláusula de nação mais favorecida estabelece que qualquer vantagem comercial oferecida a qualquer país, membro ou não da OMC, seja igualmente oferecida às demais nações dessa organização. Já o princípio de tratamento nacional assegura que o produto importado deve receber o mesmo tratamento dado aos produtos nacionais. Com base nesses princípios, que buscam evitar a discriminação na origem e entre produtos, a OMC visa fomentar a liberalização do comércio em nível mundial. Adicionalmente, a OMC oferece aos seus membros um conjunto de medidas de defesa comercial contra o dumping (medidas antidumping), contra o subsídio (medidas compensatórias) e contra os surtos de importações (salvaguardas).

No entanto, as complexidades e assimetrias do comércio internacional que dificultam o processo de liberalização comercial levaram a Rodada de Tóquio, de 1979, da Organização a instituir a cláusula de habilitação. Essa cláusula visa à criação de um arcabouço normativo, paralelo às negociações multilaterais, para fomentar o avanço gradual do livre comércio por meio de sistemas de preferências comercias: o Sistema Geral de Preferências (SGP) e o Sistema Geral de Preferencias Comerciais (SGPC).

Tanto o SGP quanto o SGPC são regidos pela Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, em inglês). Enquanto o SGP trata de concessões tarifárias unilaterais dos países desenvolvidos aos países em desenvolvimento sem a necessidade de estendê-las aos demais países membros da OMC, o SGPC regula as concessões tarifárias entre os países em desenvolvimento. Dessa forma, tanto o SGP quanto o SGPC consolidaram-se como uma exceção ao princípio basilar da não discriminação.

No que tange à dimensão histórica recente dos acordos comerciais, é possível identificar três grandes ondas de regionalismo comercial.[1] A primeira onda de regionalismo comercial foi marcada pelo início do processo de unificação da Europa por meio da criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), em 1951, seguida da formação da Comunidade Econômica Europeia (CEE) em 1957. Tais experimentos tiveram influência, por exemplo, na criação de Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC) em 1960.

Durante a segunda onda, mais países aderiram à CEE, que, em 1993, com a assinatura do Tratado de Maastricht, passou a se denominar Comunidade Europeia (CE). O avanço da CE em direção aos países da Europa Oriental (satélites da antiga União Soviética) levou os Estados Unidos a abandonarem seu tradicional apreço pelas negociações multilaterais no âmbito do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, em inglês), da OMC, e a firmar um acordo bilateral com o Canadá (1988), que, em seguida, foi estendido ao México, em 1990, consumando, assim, a criação do North American Free Trade Agreement (NAFTA). Nesse mesmo período, tem-se, na América do Sul, a criação do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e da Comunidade Andina; na África e na Ásia, muitos outros acordos análogos foram firmados.

Por fim, o terceiro momento tem sido caracterizado pela influência dos Estados Unidos e da União Europeia. No entanto, a peculiaridade desse momento mais atual recai justamente sobre a participação dos países asiáticos, tradicionais apoiadores das negociações comerciais multilaterais no âmbito da OMC. Além da crise financeira de 1997 e do fracasso das negociações da OMC de 1999 em Seattle (EUA), a proliferação de acordos regionais na Ásia deveu-se, também, ao intenso processo de integração produtiva ocorrido na região, nos últimos anos.

Os acordos multilaterais da OMC caracterizam-se pela sua amplitude, por seus efeitos vinculantes e por incorporarem temas complexos, como o setor de serviços, os investimentos estrangeiros e a propriedade intelectual. Essa abrangência se deve ao rearranjo do sistema produtivo global nas últimas décadas, que demanda um comércio cada vez mais aberto e menos discriminatório.

No que diz respeito ao acesso aos mercados, os Acordos Preferenciais de Comércio (APCs) visam à redução e ou à eliminação das tarifas de importação, assim como à eliminação das barreiras não tarifárias. Já a regulação do comércio internacional trata da incorporação de regras do comércio internacional estabelecidas no âmbito da OMC (OMC-in), do aprofundamento dessas mesmas regras (OMC-plus) e da incorporação de regras ainda não contempladas pela OMC (OMC-extra). Desse modo, é possível perceber a dimensão regulatória dos APCs como condição necessária ou mesmo como uma estratégia deliberada para a inserção dos países na cadeia de produção global.[2]

Dentro desse contexto, o World Trade Report 2011, da OMC, destaca que os Acordos Regionais de Comércio que envolvem dois ou mais países de distintas regiões geográficas passaram a ser denominados Acordos Preferenciais de Comércio. Isso se deve ao fato de que os sistemas de preferências unilaterais (SGP e SGPC), assim como os demais acordos sem reciprocidade, se enquadram no conceito de Acordos Preferenciais de Comércio. Em fevereiro de 2016, a OMC registrou 284 acordos de comércio de bens e serviços envolvendo países de distintas regiões do mundo.

Por fim, é forçoso ressaltar que os APCs são acordos que ocorrem, também, no âmbito jurídico da OMC, contrariando, assim, o argumento sobre o eventual enfraquecimento da Organização. Os APCs, na verdade, destacam-se como uma estratégia de liberalização do comércio mundial que ocorre em paralelo à negociação multilateral da Rodada de Doha. Dessa forma, a OMC passa a oferecer dois canais de negociação para liberalização do comércio internacional: um, multilateral, que concede maior poder de barganha aos países em desenvolvimento (Rodada Doha); e outro, plurilateral, que concede maior poder de barganha aos países desenvolvidos.

Tem-se, então, que o atual cenário do comércio internacional impõe um sério desafio ao Brasil, na medida em que a negociação multilateral no âmbito da OMC, estratégia tradicional da diplomacia brasileira, vem sendo abandonada por algumas das principais potências comercias do mundo: Estados Unidos, União Europeia e Japão. Em 2013, o Presidente Barack Obama defendeu a criação da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (PTCI)[3] envolvendo os Estados Unidos e a União Europeia. No ano passado, Estados Unidos, Canadá, México, Chile, Peru, Japão, Vietnã, Brunei, Cingapura, Malásia, Austrália e Nova Zelândia firmaram o Tratado Transpacífico[4].

É importante lembrar que mesmo a negociação entre atores do mesmo porte de desenvolvimento econômico e social, como os Estados Unidos e a União Europeia, em torno do TTIP tem-se mostrado bastante complexa. No tocante ao TPP, as condições são assimétricas. Observam-se duas grandes potências comerciais (NAFTA e Japão) negociando um mega-acordo com países que possuem mercados domésticos reduzidos, com escassas alternativas do ponto de vista de suas políticas de crescimento econômico, senão a produção para o mercado externo — situação essa diametralmente oposta à do Brasil, que conta com um vasto e cobiçado mercado interno.

No que diz respeito ao Brasil, sua eventual adesão aos mega-acordos comerciais traz ao debate a discussão sobre: a flexibilização de suas leis trabalhistas; o impacto da concorrência internacional sobre os diversos segmentos industriais do Brasil; e a perda de mercado para os manufaturados brasileiros na América Latina, especialmente na América do Sul, etc. Adicionalmente, a questão cambial é uma variável central em todo esse processo e pouco discutida. Qual seria o impacto de um acordo dessa magnitude em um contexto de sobrevalorização do real para o conjunto da economia nacional?

Nesse sentido, a questão que se impõe é saber se o País está em condições para se inserir no comércio internacional via adesão aos mega-acordos comerciais. Questiona-se, também, a coesão do empresariado nacional em torno de uma política nacional para a inserção comercial do Brasil, que tradicionalmente contempla, por exemplo, subsídios federais, abertamente combatidos no comércio internacional.

Percebe-se, dessa forma, que a adesão do Brasil aos mais variados tipos de acordos comerciais passa, entre outras discussões, pela reavaliação de suas prioridades domésticas e externas. No âmbito doméstico, ressalta-se o impacto desses acordos sobre as contas externas do País, sobre o desgaste político junto a diferentes grupos empresariais com interesses conflitantes na execução da política exterior do País e sobre os interesses de trabalhadores e consumidores. No âmbito internacional, o Brasil busca uma solução conciliatória junto à Argentina no sentido de se chegar a um acordo comercial com a União Europeia sem comprometer seus objetivos junto ao Mercosul e à América do Sul, área de influência estratégica no âmbito de sua política externa.

Países com os quais o Brasil mantém Acordos Preferenciais de Comércio

PAÍSES INSTRUMENTOS SITUAÇÃO
Chile, Bolívia, Guiana, Suriname (arroz), México (inclusive setor automotivo), Peru, Equador, Colômbia, Venezuela e Cuba Acordos de Complementação Econômica do Mercosul Em vigência
Índia e Israel Acordos Preferenciais de Comércio do Mercosul Em vigência
União Aduaneira Sul-Africana (SACU, em inglês) — África do Sul, Namíbia, Botsuana, Lesoto e Suazilândia; Palestina e Egito Acordos Preferenciais de Comércio do Mercosul Em vigência
União Europeia Acordos Preferenciais de Comércio do Mercosul Em negociação

FONTE: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Acordos dos quais o Brasil é parte. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2016.


[1]    ORGANIZACIÓN MUNDIAL DEL COMERCIO.  La OMC y los acuerdos comerciales preferenciales: de la coexistencia a la coherencia. Informe sobre el Comercio Mundial 2011, Ginebra, 2011. Disponível em: . Acesso em: 9 mar. 2016.

[2]   THORTENSEN, V.; FERRAZ, L. O isolamento do Brasil em relação aos acordos e mega-acordos comerciais. Boletim de Economia e Política Internacional, Brasília, n. 16, p. 5-17, jan./abr. 2014. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2016.

[3] Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP), em inglês.

[4] Trans-Pacific Partnership (TPP) , em inglês.