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O regime internacional de mudanças climáticas: a evolução, as contradições e a posição do Brasil

A atenuação de uma das principais causas das mudanças climáticas, o aumento das emissões de gases causadores do efeito estufa por ação antrópica, mantém-se como um dos principais debates globais. Em período recente, verificam-se importantes desdobramentos institucionais mundiais, em conformidade com uma das 17 Metas de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU).[1] A despeito do grande consenso entre cientistas e organizações sobre as causas e os possíveis transtornos das alterações climáticas, diversos fatores explicam as contradições políticas desse tema, entre os quais citamos: as configurações socioeconômicas díspares entre as sociedades, o recente desengajamento de alguns países ricos e altamente emissores de gases do efeito estufa (GEE), sobretudo dióxido de carbono (CO2), e a carência de instrumentos eficazes para identificar infrações e punir seus responsáveis.

Apesar de as discussões sobre a necessidade de preservação ambiental acompanharem a história da humanidade, apenas na década de 70 é que o tema passou a ser encarado de forma genuinamente global, com a realização da Conferência de Estocolmo (1972). A partir de então, a Organização Mundial Meteorológica, uma agência especializada do Sistema ONU, passou a ter uma relevância crescente, que culminou na criação do Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) em 1988, cujo mote é a pesquisa científica que fornece apoio para as negociações internacionais nesse tema.

Atualmente, existem três principais dispositivos que se dedicam a produzir normas e padrões para atenuar as emissões globais de GEE, a saber: a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, em inglês), o Protocolo de Kyoto e o Acordo de Paris. A UNFCCC foi um dos resultados da Conferência das Nações Unidas para o Ambiente e o Desenvolvimento, de 1992, designação oficial da Rio-92. Desde então, os países que aderiram ao instrumento realizam reuniões anuais, as Convenções das Partes (em inglês, COP), que são a principal instância decisória no âmbito do referido acordo e têm como objetivo principal fazer avançar as discussões mais substanciais sobre o tema. Em novembro de 2017, ocorrerá a COP-23 na cidade de Bonn (Alemanha).

Um dos fundamentos da UNFCCC é o das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, em que é reconhecido o papel central dos países mais industrializados nas elevadas emissões atuais e no passado e que, portanto, devem arcar com um ônus significativamente maior para a mitigação do problema. Foram criadas duas listas especiais de países (conhecidas como Anexo I e Anexo II), cada qual com atribuições específicas em relação aos que não estavam referenciados em nenhuma delas. O Anexo I refere-se aos “países industrializados”, incluindo os da Europa Central e Oriental com “economia de transição”. Esse conjunto deveria manter, no ano de 2000, os níveis de emissões registrados em 1990, além de realizar relatórios anuais sobre suas políticas à Convenção. Os países do Anexo II, por sua vez, cuja totalidade se insere no Anexo I, deveriam, também, alocar verbas para financiar projetos de combate às mudanças climáticas em países em desenvolvimento, além de facilitar a transferência de tecnologias para eles. Os países em desenvolvimento, ausentes de ambas as listas, comprometeram-se na divulgação de relatórios, mas com uma frequência menor e com metas mais genéricas em relação aos listados no Anexo I. O acordo concede, ainda, atenção especial às mazelas ecológicas em países de menor desenvolvimento[2].

Na 3.a COP, ocorrida em 1997, o segundo pilar desse regime foi alcançado — o Protocolo de Kyoto, no Japão (em vigor a partir de 2005), por meio do qual os países se comprometem a manter sua política de redução das emissões via metas vinculantes, mantendo-se o princípio das diferenciações entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. O primeiro período de redução de emissões iniciou-se apenas em 2008, com término em 2012, durante o qual foi prevista uma redução de 5% das emissões dos GEE, em comparação com os níveis de 1990. O segundo período, de oito anos, foi definido na COP18, de Doha (Catar), e abrange o início de 2013 até o final de 2020, com metas de 18% abaixo dos níveis de 1990. Além disso, o Protocolo previu três “mecanismos de flexibilidade”: o Comércio Internacional de Emissões[3], o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL)[4], do qual o Brasil foi um dos patrocinadores, e a Implementação Conjunta[5]. Diante desses instrumentos, as partes do Protocolo de Kyoto conseguiram alcançar, de forma relativamente confortável, as metas do primeiro período. Um dos principais motivos foi a brusca da redução dos níveis de emissão em quase todas as economias de transição da Europa Central e Oriental, dadas as suas persistentes dificuldades econômicas, especialmente na década de 90. A Rússia, que é um dos principais emissores globais, “conseguiu” reduzir, entre 1990 e 2009, quase 30%, enquanto a Ucrânia teve uma diminuição de mais de 60% no mesmo período.[6]

O terceiro e mais recente pilar desse regime é o Acordo de Paris, em vigor a partir de outubro de 2016, cuja grande meta é manter a temperatura média global, no máximo, até 2 graus acima da média pré-industrial. Uma das novidades foi a previsão de que todos os países, independentemente de seu estágio de desenvolvimento, elaborassem relatórios mais frequentes acerca de seus esforços e suas intenções de lidar com a questão, as chamadas “contribuições nacionalmente determinadas” (NDC, na sigla em inglês), suavizando-se o princípio da responsabilidade diferenciada contemplada tanto na Convenção-Quadro como no Protocolo de Kyoto.

Evidentemente, as configurações econômicas, demográficas e sociais discrepantes entre os países alimentam as divergências políticas entre eles e trazem enormes dificuldades para alcançar consensos. Quando a Convenção-Quadro foi redigida, no início da década de 90, já ocorriam importantes controvérsias sobre as responsabilidades dos países em desenvolvimento e dos desenvolvidos nas emissões de GEE. Para agravar a situação, desde então, alguns países em desenvolvimento, como a China, a Índia e alguns produtores de petróleo, viram suas emissões aumentarem consideravelmente. A China, a maior emissora de CO2 desde meados da primeira década do século XXI, registra, atualmente, quase o dobro das emissões dos EUA, que estão na segunda posição nesse quesito.

Entretanto, como defendem a China, a Índia e mesmo o Brasil, qualquer negociação sobre novos acordos ou metas deve ser sempre balizada em comparações per capita e com base no nível de desenvolvimento de cada país, dado que alguns apresentam mais recursos e flexibilidade para investir em tecnologias mais limpas. Quando levamos em consideração esses parâmetros, o quadro é bastante distinto em relação às emissões absolutas. Em geral, países que são grandes produtores de petróleo, apresentam maior renda per capita ou estão localizados em regiões temperadas tendem a apresentar índices mais elevados.

O Brasil, nesse contexto, tem-se posicionado historicamente como defensor da ideia de desenvolvimento sustentável e do princípio das responsabilidades diferenciadas entre os governos. Além do alinhamento geral com grandes países emergentes ao longo de todo o período, a diplomacia nacional trabalhou ativamente com os EUA na formulação e na implementação do MDL. Em 2015, no quadro da NDC do Acordo de Paris, o País propôs a redução das emissões de GEE “em 37% dos níveis de 2005, em 2025” e “43% abaixo dos níveis de 2005, em 2030”.[7] Entretanto, ainda pairam grandes dúvidas a respeito de que as metas estipuladas sejam alcançadas no período, diante da recente aceleração do desflorestamento na Amazônia (um dos principais responsáveis pela emissão de GEE no País), ao mesmo tempo em que importantes integrantes da cúpula de Michel Temer não escondem seu desconforto com os moldes da participação brasileira no Acordo de Paris.[8]

Essa teia de acordos, que apresenta enorme potencial de eficácia no combate às mazelas globais ecológicas, tem gerado e reproduzido importantes contradições que podem comprometer todo o esforço mundial de promover o desenvolvimento econômico em bases mais limpas do que no passado. Assim, a ausência de atualização periódica em relação às listas do Protocolo de Kyoto tem produzido casos flagrantes de oportunismo em relação a alguns países outrora “em desenvolvimento”. As monarquias do Golfo Pérsico, apesar de apresentarem elevadíssimos índices de renda per capita e colocarem-se entre os maiores poluidores em termos relativos, mantém-se livres das atribuições reservadas aos países do Anexo I. Não menos grave tem sido o desengajamento de países centrais desses regimes. Além do exemplo notório dos EUA, que já se haviam negado a aprovar o Protocolo de Kyoto e, mais recentemente, têm buscado a desvinculação do Acordo de Paris, outras potências têm seguido esses passos. O Canadá, alegando problemas econômicos, retirou-se do Protocolo de Kyoto em 2012, enquanto a Rússia decidiu não participar da segunda rodada de redução das emissões no âmbito desse instrumento e encontra forte oposição interna para ratificar o Acordo de Paris.

Apesar de o regime internacional de mudanças climáticas ter conhecido inegáveis avanços e contar com elementos cada vez mais eficazes de supervisão e de controle nas últimas décadas, nada assegura que o sistema continue na mesma direção. Diferentemente das décadas anteriores, quando o desinteresse pela questão era maior em países em desenvolvimento, em tempos recentes, temos verificado um aumento das críticas em países mais ricos. Nesse sentido, o caso dos EUA parece-nos menos como uma exceção e, cada vez mais, infelizmente, como uma regra. Ao mesmo tempo, países de industrialização mais tardia, como a China e a Índia, têm-se colocado como protagonistas no desenvolvimento de uma matriz energética mais limpa, dados os graves problemas ambientais a que suas populações têm-se submetido.


[1] UNITED NATIONS. Department of Economic and Social Affairs. Sustainable Development Goals. Disponível em: <https://sustainabledevelopment.un.org/?menu=1300>. Acesso em: 26 jul. 2017.

[2] Essa categoria é usada de forma abrangente no sistema ONU e é atualizada anualmente pela Assembleia Geral. Foi decidido, em 2016, que Angola, por exemplo, deixará de ser um país de menor desenvolvimento em 2021.

[3] Institui um sistema de créditos de carbono, cujas autoridades emissoras são, geralmente, governos (nacionais ou locais), que se baseia numa lógica de incentivos econômicos, para promover a redução de gases do efeito estufa. De forma geral, as empresas que pretendem aumentar suas emissões precisam comprar créditos de carbono do próprio governo ou de outras empresas detentoras desses créditos.

[4] Permite a determinada parte dos países do Anexo 1 investir em projetos de redução de carbono, em países em desenvolvimento.

[5] Permite que dado país do Anexo 1 invista em projetos de redução de emissão em outro país “B” dessa lista. Nesse caso, a redução será contabilizada a favor do primeiro; o segundo, por sua vez, auferirá o aporte de investimentos estrangeiros e a transferência de tecnologia.

[6] THE WORLD BANK. Total greenhouse gas emissions (kt of CO2 equivalent). 2017. Disponível em: <http://data.worldbank.org/indicator/EN.ATM.GHGT.KT.CE>. Acesso em: 27 jul. 2017.

[7] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Pretendida contribuição nacionalmente determinada para consecução do objetivo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre mudança do clima. [2015]. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_desenvsust/BRASIL-iNDC-portugues.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2017.

[8] GINARDI, G. Para Blairo Maggi, metas brasileiras para o clima são só ‘intenção’. Portal Estadão, 17 de novembro de 2016. Disponível em: <http://sustentabilidade.estadao.com.br/blogs/ambiente-se/para-blairo-maggi-metas-brasileiras-para-o-clima-sao-so-intencao/>. Acesso em: 31 jul. 2017.

As mudanças políticas na China contemporânea e seu impacto global

Num cenário internacional marcado pelo aumento da instabilidade, um momento em que o processo da globalização da economia revela a intensidade de suas contradições, a China segue mantendo uma trajetória de relativa estabilidade. Segundo dados do Banco Mundial, desde a crise de 2008 a China seguiu crescendo em uma média de 8,3% ao ano, enquanto a economia mundial cresceu em média 2,2%. Ainda que o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) da China venha caindo de um patamar próximo dos 10% nos anos imediatamente pós 2008 para cerca de 7%, seu crescimento segue sendo quase três vezes maior do que o mundial (6,9% contra 2,4% em 2015)1. Enquanto no Ocidente alguns analistas chegaram a cunhar o termo “the new normal” (“o novo normal”) para descrever os padrões de crescimento medíocres e incapazes de garantir a coesão social mesmo nos países centrais, a China, mesmo com um ritmo mais lento de crescimento, continua sendo capaz de garantir uma maior estabilidade econômica, social e política.

Essa resiliência da economia chinesa em um contexto mundial de dificuldades não pode ser adequadamente explicada a partir apenas de variáveis macroeconômicas. Especialmente no caso da China, a dimensão política é especialmente decisiva. Nesse sentido, compreender a dinâmica da economia chinesa depende de entender as características específicas do modelo chinês, em especial a relação que se estabelece no País entre a política e a economia, pois muito dessa capacidade de adaptação e crescimento se relaciona com um modelo político de gestão da economia. Trata-se de um modelo que, ao mesmo tempo em que concede um grande espaço para a iniciativa privada, favorece a competição entre as empresas, é receptivo ao investimento estrangeiro e combina essas características com uma forte intervenção estatal e um planejamento estratégico de longo prazo. Nesse sentido, a gestão econômica do País é diretamente orientada pelas prioridades políticas estabelecidas pelo Estado.

O que se assiste neste momento é um movimento deliberado de adaptação ao novo cenário internacional, com ações no sentido de reorientar o modelo de desenvolvimento chinês. Esse processo se iniciou no Plano Quinquenal 2011-15, que já reflete um reposicionamento do País num mundo em crise e se consolida nas resoluções da III Sessão Plenária do XVIII Comitê Central do Partido Comunista da China2. Nesse documento, os dirigentes chineses fazem um balanço do período e projetam uma estratégia para os próximos anos. Tendo em conta as particularidades do modelo chinês, as reflexões ali realizadas e as orientações elaboradas nesse processo fornecem as linhas mestras de compreensão da evolução da China no próximo período.

A compreensão do momento atual da República Popular da China precisa ter como ponto de partida as grandes transformações que se desencadearam com as reformas iniciadas por Deng Hsiao Ping no final dos anos 70 do século passado. Nesse momento, os dirigentes chineses romperam com a política de isolamento e iniciaram um processo de abertura econômica. A desestatização de empresas e a abertura controlada para o capital internacional geraram um setor empresarial dinâmico. A abundância de mão de obra barata garantiu a competitividade internacional dos produtos chineses, e o foco na produção de manufaturas para o mercado mundial tornou a China rapidamente um global player que hoje se constitui na segunda maior economia do mundo.

Do ponto de vista interno, essas políticas tiveram profundos impactos. A superação dos limites do modelo anterior gerou uma dinâmica de crescimento acelerado que transformou de forma muito rápida e intensa a sociedade chinesa. O influxo de capital externo e as novas regras de funcionamento das empresas locais geraram um processo de crescimento econômico contínuo que se estende por mais de trinta anos. Esse crescimento gerou, de um lado, um pujante setor empresarial que protagonizou o processo de transformação da China em uma potência econômica. De outro lado, o crescimento gerou oportunidades de trabalho que permitiram a milhões de trabalhadores do campo migrar para as cidades atrás de novas oportunidades. Nesse processo, gestou-se uma dinâmica que permitiu que a China fosse capaz de tirar 600 milhões de pessoas da pobreza e da miséria. Além disso, esse processo gerou também uma nova classe média de profissionais que constituem hoje um enorme mercado interno3.

Dessa maneira, combinando cautela, flexibilidade e criatividade nas ações de gestão da economia frente às oscilações conjunturais com uma firmeza na construção de uma estratégia de desenvolvimento nacional é que a China vai avançando no cenário turbulento da economia internacional. Cada inovação em termos de política de desenvolvimento é implementada de início de forma experimental em uma localidade ou região, testada e, se aprovada, adotada para o conjunto do País. Além disso, todas essas medidas são formuladas à luz de uma estratégia de longo prazo, estritamente planejada. Com uma atenção cuidadosa para a análise dos cenários que se abrem, associada a uma capacidade de adaptação às mudanças nas correlações de força e nas dinâmicas políticas e econômicas, locais, regionais e mundiais, os dirigentes chineses vêm demonstrando uma capacidade ímpar de enfrentar as turbulências da conjuntura. É essa postura que orienta as mudanças recentes que a China implementa para enfrentar o cenário internacional decorrente da crise financeira de 2008.

O centro dessa estratégia é uma transição de um modelo de crescimento baseado nas exportações para um crescimento baseado no mercado interno chinês. Os milhões de cidadãos que saíram da pobreza e o enorme contingente que constitui a nova classe média passam a ser a base para a sustentabilidade do crescimento. Esse redirecionamento da economia para o mercado interno se combina com um movimento de internacionalização das empresas chinesas e de projeção geopolítica do País. Hoje, para além de exportar mercadorias, a China exporta capitais — de um lado, com a compra de ativos nos países centrais, em especial na Europa, e, de outro, com uma presença crescente de companhias chinesas operando nos mercados da Ásia, África e América Latina.

O movimento de reposicionamento da China opera de maneira articulada no plano internacional e no plano interno. No âmbito internacional, um conjunto de iniciativas econômicas e geopolíticas opera no sentido de fortalecer a posição da China. Medidas para fortalecer a conversibilidade da moeda chinesa, a constituição do Banco do BRICS, as iniciativas estratégicas da nova “Rota da Seda” e todo um conjunto de ações voltadas para aprofundar a articulação da economia chinesa na Ásia Central, em parceria com a Rússia, a Índia, o Paquistão e outros países menores, dão sustentabilidade para a inserção internacional do País.4

Por outro lado, no plano político interno, a nova orientação tem como foco a coesão social. Três elementos são centrais nessa estratégia: (a) a valorização do mercado interno como vetor para o desenvolvimento; (b) o reforço à inovação e ao desenvolvimento tecnológico; e (c) o enfrentamento das contradições internas que interferem no desenvolvimento do País. Nos três casos, a gestão dos processos econômicos está intimamente ligada com as dimensões políticas que se constituem como pano de fundo do projeto de desenvolvimento chinês.

No caso do mercado interno, os dirigentes chineses têm claro que a melhoria das condições sociais e econômicas da população tende a ser o pilar de sustentação do crescimento da economia chinesa. No entanto, a ênfase governamental não se restringe ao aspecto econômico da elevação dos salários reais como instrumento de estímulo ao consumo. Os dirigentes chineses buscam uma melhoria global, que implica também no fortalecimento dos direitos sociais, com a ampliação de mecanismos de previdência, de direitos trabalhistas e de dispositivos institucionais de defesa do consumidor. Seu objetivo é “prestar maior atenção ao trabalho, ao emprego e aos ingressos dos habitantes, à seguridade social e à saúde do povo” (COMITÉ CENTRAL DEL PARTIDO COMUNISTA DE CHINA, p. 34). A compreensão por parte dos dirigentes chineses de que uma melhor distribuição de renda e a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos são importantes para a sustentabilidade do crescimento econômico é central no novo modelo. Nesse sentido, a China anda na contracorrente da tendência mundial que atua no sentido da flexibilização e/ou redução de direitos sociais. Ao contrário, os dirigentes chineses trabalham justamente na direção da formalização institucional de direitos como instrumento de inclusão social e dinamização da economia.

No âmbito tecnológico, a China passou de um período em que sua manufatura se baseava na cópia de produtos estrangeiros para um momento no qual as empresas chinesas passaram a disputar os mercados com base no desenvolvimento tecnológico. O Estado Chinês investe pesadamente na pesquisa, na expansão do ensino universitário, na formação de mão de obra qualificada e de um corpo técnico de cientistas e pesquisadores de ponta e de nível internacional. Assim, as empresas chinesas hoje já concorrem em pé de igualdade com empresas de alta tecnologia mundial. Esse processo resultou de grandes investimentos públicos do Estado chinês em ciência e tecnologia, voltados para a qualificação dos processos produtivos.

Por fim, o terceiro elemento desse reposicionamento chinês demonstra uma grande autoconsciência e capacidade crítica dos dirigentes do País. A percepção de que o processo vivido pelo País desde as reformas trouxe, além do crescimento econômico, problemas que precisam ser enfrentados, está na base de um esforço voltado para fortalecer a coesão social e garantir a estabilidade política. O enfrentamento das desigualdades sociais geradas no processo de desenvolvimento, o combate à corrupção e a luta contra a degradação ambiental provocada pelo crescimento acelerado são as prioridades políticas do momento.

Nesse âmbito, encontra-se a mais importante mudança de paradigmas operada pelos dirigentes chineses: a transição de um modelo que buscava o crescimento a qualquer custo para um modelo voltado para a sustentabilidade ambiental. A China é hoje um dos países do mundo que mais investem em políticas ambientais, incluindo explicitamente em suas diretrizes políticas o objetivo de construir uma “civilização ecológica socialista” (COMITÉ CENTRAL DEL PARTIDO COMUNISTA DE CHINA, p. 4). Todos esses movimentos têm, ao mesmo tempo, uma dimensão estritamente política, mas também uma dimensão econômica. A China busca garantir que o desenvolvimento da economia seja um instrumento para a construção de uma sociedade mais harmônica. Nesse modelo, o crescimento é um instrumento para o desenvolvimento social e não um fim em si. Com isso, a China cria condições para garantir a estabilidade e um crescimento sustentável.

É evidente que esse modelo não é isento de contradições. O crescimento dos conflitos trabalhistas na China reflete a inquietação dos trabalhadores industriais em relação aos seus salários e condições de trabalho. Andreas Bieler e Chun-yi Lee, da Universidade de Norfolk, recentemente analisaram as formas de resistência e de organização dos trabalhadores fabris na China5, mostrando o crescimento das mobilizações operárias no País. Da mesma forma, Ruckus e Bartholl (2014)6 fazem um extenso levantamento do crescimento dos conflitos trabalhistas na China. Ambos os estudos mostram que as relações de trabalho e as desigualdades sociais podem vir a se constituir em um componente de potencial instabilidade na situação política desse país, e é justamente a neutralização desses conflitos que informa os esforços dos dirigentes chineses no sentido de reorientar o modelo econômico do País. Construir uma estratégia que permita combinar crescimento econômico com estabilidade política e competitividade no mercado mundial é o objetivo central da estratégia política do governo chinês neste novo momento da conjuntura mundial.

1WORLD BANK OPEN DATA. 2016. Disponível em: < http://data.worldbank.org/ >. Acesso em: 29 nov. 2016.

2COMITÉ CENTRAL DEL PARTIDO COMUNISTA DE CHINA, 18.,[2013, Beijing]. Documentos de la III Sesión Plenaria del … Beijing: Ediciones en Lenguas Extranjeras, 2013.

3 POMAR, W. China: desfazendo mitos. São Paulo: Publisher Brasil, 2009.

4CINTRA, M. A. A.; SILVA FILHO, E. B., COSTA PINTO, E. (Org.). China em transformação: dimensões econômicas e sociopolíticas. Rio de Janeiro: IPEA, 2015.

5 BIELER, A.; LEE, C. Chinese labour in the global economy: an introduction, globalizations. 2016. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1080/14747731.2016.1207934>. Acesso em: 8 jan. 2017.

6 RUCKUS, R.; BARTHOLL, T. China, avanço do capital e revolta na nova fábrica do mundo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014.

Go East! A atualização da estratégia e das táticas na política externa dos EUA para a Ásia

No final de 2011, um artigo da revista Foreign Policy asseverava que os Estados Unidos estavam promovendo uma mudança de ênfase em sua política externa. Esse texto era assinado por ninguém menos do que a então Secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton. No subtítulo, lia-se que “o futuro da política vai ser decidido na Ásia e não no Afeganistão ou no Iraque”[1], e, assim, conclamava-se que os Estados Unidos assumissem um protagonismo na emergência da Ásia Oriental como centro econômico e, cada vez mais, geopolítico. Para isso, defendia-se que os Estados Unidos, em vez de simplesmente trazerem de volta suas tropas usadas nos dois países mencionados, deveriam realocá-las na região da Ásia-Pacífico, de forma a que o País conservasse sua condição de liderança e de garantidor da ordem global liberal.

É notável que o artigo, assim como outros discursos da Casa Branca e do Departamento de Estado norte-americano, se esforça para evitar uma retórica explícita de oposição à China, ao que indica, a principal novidade da estratégia norte-americana para a Ásia. A presença e a hegemonia militar e econômica dos Estados Unidos na região, como veremos, têm sido constantes ao longo das últimas décadas, e não exatamente uma novidade recente.

O pivô para a Ásia-Pacífico corresponde a uma estratégia de fazer frente à China, que, por sua vez, explica as novas táticas adotadas mesmo antes da publicação do artigo de Clinton. A mudança estratégica, que em alguns aspectos já se observa desde a década de 90, origina-se da reafirmação da supremacia regional dos EUA em um contexto de rápida ascensão chinesa. Para cumprir essa tarefa, não apenas se prevê a reconcentração de forças militares pela região, como também se propõem projetos quanto à regulação do comércio, a iniciativas diplomáticas e ao robustecimento das alianças militares com o Japão, com a Coreia do Sul e com países do Sudeste Asiático. Entretanto, a orientação geral da política exterior norte-americana permanece a mesma em relação às décadas passadas, isto é, de manter o País como a principal força promotora de regimes de comércio, fluxos econômicos, navegação e meio ambiente naquela região.

A presença atual dos Estados Unidos na Ásia não é novidade. Ainda em meados do século XIX, o País ganhou relevância no Pacífico, como evidenciam os episódios de emprego da marinha para impor tratados à China e ao Japão. No final do século, os EUA emergiam como uma grande força no Oceano Pacífico, com as conquistas dos territórios do Havaí e das Filipinas. Após a Segunda Guerra Mundial, a supremacia dos EUA consagrou-se com a derrota do Japão e com o enfraquecimento relativo da Grã-Bretanha e da França. Desde então, os Estados Unidos conservam a primazia na Ásia-Pacífico, graças à manutenção, nessa parte do mundo, de grande parcela de sua frota naval, ao cultivo de uma densa rede de aliados regionais e de bases militares ao longo de uma faixa que se inicia no Alasca, passando por Ilhas Aleutas, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Filipinas, até a Malásia, inclusive com o controle de fato do Estreito de Malaca, por onde passam importantes rotas marítimas globais. Essa presença maciça na Ásia-Pacífico, equiparável apenas à relevância da Europa Ocidental, foi uma constante na ação externa dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, no propósito de não apenas barrar um possível avanço militar da União Soviética e da República Popular da China, como também de instrumentalizar a dissuasão nuclear contra ambas as nações.

Além da presença militar, a política externa norte-americana estimulou explicitamente o empoderamento econômico de diversos países daquela região, e o Plano Colombo é exemplar[2]. Essa política pode ser entendida, seja por questões estratégicas, para o enfrentamento de ameaças comuns, seja por ambições econômicas, dada a crescente transnacionalização de conglomerados empresariais norte-americanos. O Japão logrou sua reconstrução econômica ainda no final da década de 50, graças, também, à preexistência de importantes grupos econômicos nacionais, entre outros fatores. Nas décadas seguintes, sucederam-se “ondas” de milagres econômicos, como a dos Tigres Asiáticos nos anos 70 e 80 (Coreia do Sul, Hong Kong, Singapura e Taiwan) e dos Novos Tigres nas décadas seguintes (Filipinas, Indonésia, Malásia, Tailândia e, mais recentemente, Vietnã).

No caso chinês, ainda em 1971, o País não apenas normalizava as relações com os Estados Unidos, como também revia seu posicionamento global, tornando-se um importante aliado na oposição à União Soviética. Isso permitiu o influxo de investimentos dos próprios Estados Unidos e principalmente do Japão, mesmo antes das reformas econômicas de Deng Xiaoping, no final da década. Desde então, o avanço econômico da China tem sido notável, pois confere pujança ao País nas economias regional e global. A dissolução da União Soviética em 1991 e a emergência de uma China economicamente forte e politicamente mais confiante passaram a ser, cada vez mais, alvo de preocupação nos EUA, ainda que segmentos econômicos nesse país mantivessem interesse na continuidade do progresso chinês. O resultado foi uma política externa norte-americana ambígua em relação à China nesse período: se, por um lado, os EUA dificultaram a adesão chinesa à Organização Mundial do Comércio e proibiram o comércio de armamentos por conta dos trágicos eventos de 1989[3], por outro não interromperam ou sequer diminuíram o volume dos fluxos econômicos entre os dois países.

Durante a campanha eleitoral em 2008, Barack H. Obama e seus correligionários enfatizavam a necessidade de os Estados Unidos “voltarem-se” ao continente asiático e criticavam a permanência de militares no Iraque e no Afeganistão. Após ele assumir a presidência em 2009, as relações diplomáticas com a China deterioraram-se diante de desentendimentos nas políticas comercial, monetária e de meio ambiente. Ademais, a disputa sobre o controle de territórios marítimos entre os países da região, inclusive entre a China e alguns dos aliados locais dos EUA, agravou-se no período.

Nesse contexto, o pivô Ásia-Pacífico engloba táticas em pelo menos três frentes. A primeira delas é militar e ocorre via ampliação do contingente estacionado no Japão e, em menor escala, na Austrália e na Tailândia. Há, também, um processo análogo quanto à Marinha, em que se prevê o aumento de 50% para 60% do potencial naval total dos EUA alocado na região.[4] Do ponto de vista qualitativo, chama a atenção o lançamento de uma doutrina de Batalha Ar-Mar, cujo desenho, de acordo com especialistas militares norte-americanos, é uma resposta ao desenvolvimento da doutrina do tipo “Negação de Acesso e Área” por países inclusive a China.

A segunda forma de atuação dá-se por mecanismos econômicos, cujo carro-chefe tem sido a Parceria Transpacífico (TPP, de sua abreviação em inglês). O TPP, que foi assinado no início de 2016 e aguarda ratificações, abrange questões que vão além da liberalização comercial, como regulação do trabalho, direitos de propriedade e outros temas, e envolve 11 países da bacia do Pacífico, com as notáveis exceções da China e da Rússia.[5] O terceiro método de promoção da influência tem sido a própria diplomacia, via ampliação e fortalecimento de alianças regionais, sobretudo a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean), com a qual se assinou um tratado de amizade. Além disso, cabe destacar a continuidade e, em alguns casos, o aprofundamento nas relações bilaterais com a Índia[6], a Coreia do Sul e o Japão, um processo que já era visível durante a administração Bush.

O pivô asiático é um processo em curso, interpretado como uma readaptação estratégica dos EUA diante da percepção de que a China questione a correlação de forças atual, mais favorável atualmente a Washington do que a Pequim. Embora a China tenha ganhado espaço no plano econômico e aumentado os dispêndios militares, mitigando o abismo em relação aos EUA, estes últimos permanecem na dianteira sob diversos prismas, como na competição militar (sobretudo marítima), na influência sobre atores regionais, no nível de desenvolvimento tecnológico e na capacidade de impor regras e regimes a outros países. Essa estratégia tem sido possível graças ao gradual desengajamento norte-americano no Oriente Médio, ainda que graves problemas na Europa, sobretudo na Ucrânia, possam distrair Washington. Ademais, essa nova conjuntura reserva a outras partes do mundo, especialmente à América do Sul e à África Subsaariana, um papel ainda mais secundário entre as prioridades estratégicas dos EUA.


[1]  CLINTON, H. America’s Pacific Century: the future of politics will be decided in Asia, not Afghanistan or Iraq, and the United States will be right at the center of the action. Foreign Affairs, Washington, DC, 11 Oct. 2011. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2016.

[2]  Por vezes apelidado de “Plano Marshall da Ásia”, em referência ao plano de reconstrução da Europa, o Plano Colombo é, na realidade, uma organização internacional, cujo propósito não era a reconstrução econômica, mas o desenvolvimento de países no Sul, no Sudeste e no Leste Asiático.

[3]  Nesse ano, registram-se protestos em várias cidades na China, respondidos com vigorosa força pelas autoridades nacionais, chegando a provocar um massacre na Praça Celestial, em Pequim.

[4]  SUTTER, R. G. et al. Balancing acts:  the U.S. rebalance and Asia-Pacific stability. Disponível em:. Acesso em 13 set. 2016.

[5]  Para uma visão mais aprofundada acerca do TPP e de outros mega-acordos comerciais, ver: VALDEZ, R. O Brasil e os mega-acordos comerciais. Panorama Internacional FEE, Porto Alegre, v. 1, n. 4, 2016. Disponível em: . Acesso em 14 set. 2016.

[6]  Em 2010, a Índia recebeu apoio explícito dos EUA para assumir um assento permanente em uma eventual reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Pode a América sentir-se grande de novo?

A recente eleição norte-americana apresentou uma polarização raramente vista no cenário político dos Estados Unidos da América ao longo do século XX. As eleições primárias dos dois grandes partidos do País foram extremamente disputadas e apresentaram características fratricidas. Do lado republicano, a constelação de políticos tradicionais foi superada por Donald Trump e sua retórica populista, gerando uma grande divisão no seio do partido. Já do lado democrata, a vitoriosa candidatura do establishment, representada por Hillary Clinton, defrontou-se com a plataforma de matizes socialistas de Bernie Sanders, causando fraturas que puderam ser observadas na convenção nacional do partido ocorrida em julho de 2016.

Várias disputas eleitorais norte-americanas ao longo do século XX apresentaram grandes clivagens em torno de temas políticos e sociais. Ao mesmo tempo, em conjunturas econômicas adversas os eleitores norte-americanos tenderam a punir os governos incumbentes. As turbulentas eleições de 1968, em meio ao movimento dos direitos civis e à guerra do Vietnã, a eleição de 1976, ocorrida sob a égide do caso Watergate, e mesmo a contestada eleição de 2000, ocorrida sob o impacto do escândalo Clinton-Lewinsky, podem ser consideradas como disputas de caráter social e político. Por outro lado, as eleições de 1932, em meio à Grande Depressão, as de 1980, ocorridas nos estertores dos choques do petróleo, e as de 2008, no auge da crise subprime, resolveram-se em incontestáveis substituições do partido situacionista pelo partido opositor. A eleição norte-americana de 2016, à primeira vista, reproduziu as disputas de distintas concepções sociais e políticas. Temas como conflitos raciais, imigração, questões de gênero e o combate ao terrorismo encontraram-se em evidência na mídia e nos discursos políticos. Entretanto a interpretação do significado das candidaturas de Donald Trump e Bernie Sanders passa por uma relevante transformação econômica ocorrida nos Estados Unidos, nas últimas décadas do século XX.

A partir de meados da década de 70 do século passado, a sociedade norte-americana apresentou aumento na desigualdade de renda. Isso representou uma inflexão na trajetória virtuosa da “Era de Ouro” iniciada no pós-Guerra. A “Era de Ouro” caracterizou-se como um período em que se compatibilizaram crescimento econômico e distribuição de renda relativamente equitativa. Dessa forma, tanto a distribuição pessoal da renda (DPR), que indica a renda apropriada por indivíduos ou domicílios, como a distribuição funcional da renda (DFR), que indica a parcela da renda nacional apropriada pelos ofertantes de capital (parcela dos lucros) e pelos ofertantes de trabalho (parcela salarial), apresentaram modificações ao longo do período.

Conforme o Gráfico 1, o coeficiente de Gini[1] para os domicílios norte-americanos apresentou marcada elevação para o período entre 1967 e 2014. Os dados demonstram uma tendência persistente de incremento na desigualdade de renda dos domicílios norte-americanos iniciada em meados da década de 70 e que se estende até o último ano com dados disponíveis, que é o de 2014.

texto_3-grafico-1Por sua vez, a distribuição funcional da renda também se modificou. Em relação aos dados, cabe mencionar algumas questões associadas à mensuração da parcela salarial. Os padrões de contabilidade social estabelecem que a parcela salarial inclui o total de compensações pagas aos trabalhadores, sendo computados para esse fim os salários pagos, bem como inclusas as contribuições previdenciárias. Por sua vez, a parcela do capital constitui-se na agregação dos lucros, bem como em rendimentos de propriedade e outras rendas de fontes distintas do trabalho. Um terceiro componente reside nos denominados rendimentos mistos. Esses rendimentos são obtidos em atividades nas quais não há distinção clara entre rendimentos do trabalho e do capital. O Gráfico 2 apresenta a evolução da parcela salarial com correção para os rendimentos mistos[2]. Observa-se uma suave tendência de crescimento dessa parcela até o início da década de 80. Essa tendência é sucedida por um período de maiores flutuações, que ocorrem dentro de uma tendência geral de queda da parcela salarial.

O processo de concentração da DPR nos EUA gerou uma vasta literatura que discute as várias características individuais ou domiciliares com vistas a explicar esse fenômeno. Temas como educação, raça, gênero, idade e escolhas profissionais subsidiaram uma profusão de estudos replicados ao redor do planeta. O objetivo nesse tipo de analise é o de apreender a desigualdade entre os salários.

Já a DFR passou a receber maior atenção a partir do final da década de 90. A crise de 2008 e suas fortes consequências, tanto econômicas quanto políticas, aprofundaram tais análises, e, desse modo, gerou-se um estímulo para novas pesquisas sobre a DFR e sua relação com a DPR nos EUA. Em outras palavras, além da desigualdade entre os salários, busca-se compreender a desigualdade entre as rendas do trabalho e as rendas do capital. Independentemente do grau de relevância da contração da parcela salarial sobre a distribuição pessoal da renda, o fato é que a sociedade norte-americana padece de questões distributivas que pareciam estar superadas em meados da década de 60.

texto_3-grafico-2As explicações para essa trajetória são muitas, e algumas delas carregam em si elementos que se articulam com a retórica política presente no conturbado cenário eleitoral estadunidense. Podem-se citar dois grandes grupos de explicações: um centra-se nos efeitos do neoliberalismo e da financeirização sobre os Estados Unidos; o outro versa sobre os padrões recentes de progresso técnico.

A adoção de políticas de corte neoliberal no início da década de 80 caracterizou-se pela mudança do objetivo principal de politica econômica, passando o foco da obtenção do pleno emprego para o controle da inflação. Isso coincidiu com o avanço do processo de financeirização, em que o capital financeiro progressivamente aumentou sua importância relativa frente ao capital produtivo, moldando tanto a estrutura econômica do País como o comportamento das empresas. Em termos macroeconômicos, a contrapartida da ênfase no combate à inflação correspondeu a uma tolerância com maiores taxas de desemprego em um contexto geral de enfraquecimento do poder de barganha dos trabalhadores e de seus sindicatos, observada ao longo da década de 80. Isso se associou à redução da participação da indústria no emprego bem como à maior exposição à concorrência internacional com países de custo do trabalho baixo, que foram observadas nos anos 90.  Conforme é exemplificado no Gráfico 3, essas modificações associam-se a uma nova relação entre as remunerações dos trabalhadores e a produtividade do trabalho. Os salários passaram a crescer abaixo da produtividade, rompendo com o padrão da “Era de Ouro”.

Já o comportamento das empresas apresenta uma passagem das tradicionais estratégias de investimento e crescimento, voltadas a resultados de longo prazo, para a priorização na redução de custos, a distribuição de dividendos de curto prazo e a valorização de suas ações. Isso se encontra expresso na orientação geral de “priorizar a geração de valor para os acionistas”. Inseridos em um contexto de flexibilização das relações de trabalho e de enfraquecimento dos sindicados, cujo marco inicial foi a derrota da greve dos controladores de voo em 1981, durante o Governo Reagan, esses processos resultaram em um aumento da dispersão salarial em detrimento dos salários mais baixos articulada com uma redução da parcela salarial.

texto_3-grafico-3O padrão progresso técnico também é apontado como uma das causas para o aumento das desigualdades nos EUA. Sob uma ótica convencional, discute-se a existência de progresso técnico portador de duas características: com viés em favor do trabalho qualificado e, ao mesmo tempo, com incremento da produtividade do capital. Essas duas características teriam colaborado no sentido de incrementar as desigualdades de renda. Entretanto os estudos recentes têm apresentado limitações em demonstrar que processos dessa natureza efetivamente causaram o aumento da desigualdade de renda.

Com a retomada da economia após a crise de 2008, as discussões sobre a desigualdade de renda novamente ganham corpo devido à aceleração do padrão concentrador de renda. No enfrentamento dessa crise, o Governo Federal e o Federal Reserve (FED) lançaram mão de medidas fiscais e monetárias pouco usuais, que injetaram milhares de dólares em instituições financeiras e empresas com balanços problemáticos, bem como atuaram como “negociador de última instância” ao comprar títulos privados, impedindo o colapso do mercado financeiro e o risco de paralisia da economia. No mercado de trabalho, porém, a recuperação seguiu o padrão verificado desde o final dos anos 80, conhecido como “jobless recovery”, em que a produção se recupera mais rápido que o emprego e com o mercado de trabalho se estabilizando em condições piores para a classe trabalhadora do que no ciclo anterior.

Além da recuperação mais lenta em termos de produto desde a Segunda Guerra, a atual fase da economia dos EUA é a que apresenta resultados mais dramáticos em termos de concentração dos ganhos adicionais de renda. Do período pós-guerra até o final dos anos 70, a expansão da renda média dos 90% mais pobres foi superior à dos 10% do topo, padrão que se inverteu a partir da década de 80 e foi-se aprofundando. Entre 2001 e 2007, 98% do aumento na renda média foram destinados aos 10% mais ricos, padrão que se intensificou ainda mais no pós-crise: de 2009 a 2012, os 10% mais ricos se apropriaram de 116% do crescimento da renda no período, o que significa uma queda de 16 p.p. na renda média dos 90% mais pobres, sendo que 95% dos ganhos acabaram nas mãos do 1% mais rico da sociedade.

Considerando o fato de que a maior parte da população norte-americana se encontra em condições materiais piores do que as vividas no período pré-crise, temos elementos suficientes para o surgimento de forças políticas não vinculadas ao atual status quo. Tais forças, expressas nas candidaturas de Trump e Sanders, parecem representar as frustrações enfrentadas por grande parte da sociedade norte-americana. A recuperação do slogan utilizado na campanha de Ronald Reagan em 1980 por Donald Trump em 2016 — “make America great again” — é o indicativo de que vários setores da sociedade norte-americana buscam uma volta do padrão da prosperidade compartilhada vivenciada no período anterior ao neoliberalismo. Aparentemente, a América somente poderá sentir-se grande de novo quando reverter as tendências regressivas de sua distribuição de renda.


[1]  Cabe destacar que o coeficiente de Gini varia entre 0 e 1 e mensura a desigualdade na distribuição pessoal da renda. Assim, quanto mais próximo de 0, mais igual é a distribuição de renda, quanto mais próxima de 1, mais desigual é a distribuição.

[2]  A correção é efetuada considerando que a proporção dos rendimentos do trabalho contida nos rendimentos mistos é idêntica à observada entre as compensações pagas aos trabalhadores e a parcela do capital.

Dilemas da política monetária nos EUA

Os rumos da política monetária dos EUA têm implicações financeiras e econômicas tão abrangentes que o futuro das taxas de juros norte-americanas é conhecido como “a questão de um trilhão de dólares” entre os analistas e especuladores financeiros. Ela ganha maior relevância — e se torna mais difícil de responder — quando se sabe que os caminhos percorridos após a crise de 2007-08 pelo Federal Reserve (Fed), o banco central do País, levaram a uma situação inédita de taxas de juros muito próximas a zero, situação comum aos demais países desenvolvidos. E, ainda menos convencional, isso ocorre em um contexto econômico global de crescimento relativamente baixo e com recorrentes pressões deflacionistas, acrescentando elementos que tornam imprevisível o timing da retomada da situação pré-crise, de taxas de juros reais positivas. Não se trata de mero acaso que as expressões “estagnação secular” e “novo normal” estejam tão em voga no jargão econômico criado após 2008, denotando a ideia de um ciclo longo, de baixo crescimento, no qual as políticas monetária e fiscal têm capacidade de amenizar, mas não de resolver, o baixo crescimento.

Os condicionantes da atuação do Fed, hoje, ultrapassam os limites dos EUA. Embora desde que o dólar se tornou efetivamente a moeda de reserva internacional inconteste, ou seja, a partir dos anos 50 e, ainda mais, a partir da liberalização financeira dos anos 70, as decisões de política monetária nos Estados Unidos afetem decisivamente os demais países, é na atual década, após a crise financeira de 2007-08, que o Fed assume que a situação financeira em outros países pode influenciar de forma importante suas decisões. O combate aos efeitos da crise financeira ampliou o papel do Fed na conformação de uma rede de bancos centrais pelo mundo todo, a partir de uma sucessão de acordos de ajuda mútua em caso de crises. Além disso, pode-se inferir que, tendo sua atuação posta em xeque no episódio da quebra do banco Lehman Brothers em 2008, que deflagrou uma crise no sistema financeiro internacional, o Fed tenha adotado elementos de cautela quanto aos efeitos inesperados de suas decisões.

Em um momento em que a solidez do sistema financeiro, sobretudo na Europa e no Japão, não está consolidada e em que diversos países apresentam taxas de juros nominais negativas, o Fed parece não desejar adotar a tradicional postura norte-americana de tomar suas decisões de forma relativamente independente e deixar que o mundo reaja de forma adaptativa. Embora seja reconhecido que uma elevação nas taxas de juros nos EUA fortaleceria ainda mais o dólar, com consequências para o crescimento que ultrapassam em muito as fronteiras dos Estados Unidos, não seria esse o elemento externo crucial na mira do Fed, mas sim aquilo que se sabe que irá ocorrer e cujos efeitos são desconhecidos (known unknowns), ou seja, as consequências sistêmicas radicalmente incertas sobre os mercados financeiros interconectados que uma elevação das taxas de juros poderia ocasionar a partir das mudanças nos preços dos ativos que certamente ocorreriam. Cabe aqui destacar que a manutenção de taxas de juros muito baixas por razoável período de tempo tem levado a mudanças no portfólio das carteiras de aplicações financeiras em direção a ativos de maior risco e formado novas bolhas — como nos mercados de ações e em alguns mercados de imóveis —, o que seria impactado em caso de uma rápida retomada de juros reais positivos pelos EUA, com consequências sistêmicas desconhecidas. Também a possiblidade de redução do ritmo de crescimento da economia mundial e dos efeitos aí encadeados parece ter sido levada em conta, ao menos no episódio do início de 2016 que apontava uma desaceleração do ritmo de crescimento chinês, o qual influiu nas decisões norte-americanas quanto à elevação dos juros. Ao que parece, prudentemente, o Fed não está disposto a correr o risco de ser apontado como partícipe de um novo episódio de crise com consequências mundiais e tem considerado também as consequências externas de sua atuação em suas decisões.

Entretanto, é sabido que a situação interna dos EUA ainda é o elemento principal na tomada de decisões pelo Fed. E, aqui, as informações disponíveis revelam um quadro contraditório capaz de afetar o ritmo da normalização das taxas de juros, em tela desde 2013. É necessário relembrar que o Fed, no combate aos efeitos da crise financeira, aumentou sua carteira de ativos de US$ 1 trilhão para US$ 4 trilhões entre 2007 e 2014, com adoção de sucessivas rodadas de aquisição de títulos públicos e privados, com o objetivo principal de dar liquidez a mercados específicos e reduzir as taxas de juros de mercado.

Essa política inédita de expansão monetária, replicada por outros bancos centrais de países desenvolvidos e, com especificidades e maior agressividade, pelo People’s Bank of China (PBOC), teve resultados controversos até o momento. Sendo uma política com objetivos primordialmente financeiros, essa, não por acaso, teve seus melhores resultados justamente nos mercados diretamente relacionados às finanças. Assim, foi inequivocamente bem-sucedida na tentativa de estabilizar a crise financeira e dar uma aparência de normalidade aos diversos mercados, apesar dos efeitos já mencionados sobre os portfólios de ativos. No entanto, foi incapaz de promover um ritmo crescente de avanço na atividade econômica, com um crescimento abaixo das expectativas de mercado na primeira metade de 2016. E, para piorar o quebra-cabeça envolvendo as decisões de política monetária pelo Fed, a inflação não atinge a meta proposta pela instituição de 2% ao ano, enquanto o desemprego se encontra em um nível relativamente baixo, flutuando em torno de 5%. Assim, os principais indicadores não fornecem, até o momento, uma clara direção quanto à conveniência e à funcionalidade de uma elevação dos juros no curto prazo.

É certo, no entanto, que o Fed, ao encerrar a política de facilitação monetária em 2013 e aumentar pela primeira vez sua meta de juros, em dezembro de 2015, para uma faixa entre 0,25% e 0,50%, tem promovido a ideia de uma normalização futura nas taxas de juros, o que tem sido capaz de trazer um equilíbrio instável aos mercados de ativos, funcional ao objetivo de ganhar tempo no sentido da busca de um consenso mínimo que reduza a dramaticidade dessa prometida normalização monetária. O ritmo tem sido lento, e essas expectativas, instáveis. O ano de 2016 se iniciou com expectativas de mercado de até três elevações de juros pelo Fed. Até setembro não ocorreu nenhuma, e as expectativas haviam-se modificado no sentido de que apenas um único aumento ocorreria no ano, em 0,25 ponto percentual, embora nem mesmo essa elevação possa ser considerada certa.

As expectativas majoritárias no mercado norte-americano até meados de 2016 sinalizavam taxas de juros em torno de 1,5% ao final de 2017 e 2,5% em 2018, antes de se estabilizarem em 3% em prazo mais longo.

Como já afirmado, nada garante que, tal qual no passado recente, essas previsões não possam ser revisadas. E, pior, considerando-se as seguidas idas e vindas da instituição, embora plenamente justificáveis dada a complexidade do cenário econômico atual, o mercado financeiro começa a apontar uma falha do Fed em orientar de modo crível as expectativas futuras. A pesquisa CNBC Fed Survey[1] realizada ao final de agosto de 2016, na qual 60% dos agentes de mercado afirmaram que falta ao banco central dos EUA um quadro de análise claro quanto à orientação de suas decisões, demonstra essa crescente desconfiança. Ao mesmo tempo, a baixa taxa de juros tem levado tanto os bancos comerciais quanto as seguradoras e os fundos de pensão a demandarem uma revisão premente da política monetária nos EUA, dado o impacto dos juros reais negativos sobre sua rentabilidade. Ou seja, o Fed vem sendo pressionado pelo mercado a afirmar mais claramente aquilo que é determinante para suas decisões, abandonando a conveniente dubiedade prevalente entre 2014 e 2016.

Na ponta produtiva, é reconhecido desde os anos 50, quiçá desde os anos 30, que apenas condições favoráveis do lado da oferta são incapazes de alavancar novos investimentos, caso a oportunidade para tal não esteja claramente afirmada também pelo lado da demanda. Como mostra o economista Phillip Arestis, a efetividade das políticas de facilitação monetária para o crescimento econômico depende do que os agentes afetados (detentores de títulos e bancos) pretendem fazer com as somas adicionais de recursos e, ao mesmo tempo, do modo como os mercados financeiros e as empresas reagem em suas expectativas de gasto, especialmente quanto à inflação futura. Ora, ao mesmo tempo em que frações dessa riqueza são destinadas aos mercados de risco, a despeito das baixas taxas oferecidas, os mercados de dívidas governamentais batem recordes de demanda, exacerbando as contradições quanto ao destino desse excedente monetário e reforçando a proeminência da preferência pela liquidez.

Ademais, o contexto da economia mundial não ajuda em nada a conformar condições mais favoráveis para que as decisões acima expostas se resolvam positivamente. A realidade é que o comércio internacional e a produção industrial mundial têm crescido a taxas em ritmo lento, ao mesmo tempo em que prossegue o deslocamento do dinamismo capitalista em direção à Ásia. Isso aumenta as dúvidas sobre a capacidade de condições favoráveis de endividamento em trazer efeitos duradouros sobre os investimentos produtivos nos EUA. Em contraposição, a capacidade de geração de empregos de sua economia se reafirmou após 2010. Entretanto, esses empregos reproduzem em sua característica o padrão do ciclo de crescimento anterior (2002-07), ou seja, estão ligados ao crescimento do setor de serviços, à recuperação da renda e da capacidade de endividamento das famílias e aos efeitos das novas bolhas financeiras na geração de uma sensação de normalidade. A propalada retomada do investimento industrial em território norte-americano segue, até o momento, ligada principalmente à indústria de extração de petróleo, também abalada em sua capacidade de expansão pela queda nos preços dessa commodity após 2015.

Em suma, a estabilização precária dos mercados financeiros soma-se a uma frágil retomada da atividade produtiva, em condições internacionais adversas. De momento, a única certeza que esse conjunto de variáveis nos impõe é que o horizonte do retorno das taxas de juros reais positivas de forma consistente nos Estados Unidos ainda deve ser bastante lento.


[1] LIESMAN, S. Fed doesn’t have real plan to make policy: CNBC survey respondents. CNBC, 24 Aug. 2016. Disponível em: . Acesso em: 04 out. 2016.